Falar de realismo chestertoniano é falar de realismo aristotélico ou mesmo falar de realismo sem qualquer adjetivação. É puro realismo, em oposição ao idealismo moderno de Descartes, Kant, Hegel, Husserl e todos aqueles para quem o que existe é o mundo mental, ao qual a realidade está submetida.
Adjetivá-lo de fantástico (qualidade que meu pai atribui a tudo o que o alegra e impressiona) se deve ao fato de que, valorizando o mundo da imaginação e da fantasia, tem os pés mais fincados na terra do que aqueles que, desprezando o fantástico e o “admirável Mundo Velho”, vivem realmente no mundo da lua, das suas cogitações e ambições, colocando no próprio umbigo o centro do mundo e a contagem do tempo.
Fez-me rir (e retrata bem o quão arraigada se encontra no homem a tendência ao egocentrismo) a expressão daquele personagem do romance de Patrick O’Brian (1914-2000) “A Fragata Surprise” (Record – 2007 – Rio), um rapazinho indiano de uns 15 anos, guia do Dr. Stephen Maturin, médico do navio, que, perguntado pelo naturalista sobre quão antiga era uma determinada estátua de Bombaim, respondeu com toda a simplicidade: “Tem uma idade imemorial, pois está aí desde antes de eu nascer…”. Expressão que lembra muito a de um conhecido político brasileiro, monotonamente repetida ao falar de suas realizações: “Nunca antes na história deste país…”.
O realismo chestertoniano está primorosamente retratado no livro “Chesterton e o Universo” (Editora UnB – 2008 – Brasília), de Scott Randal Paine (tradução de Lenise Garcia Corrêa Barbosa), em que o autor apresenta a cosmovisão desse gigante na defesa do senso comum que foi Gilbert Keith Chesterton (1874-1936).
Paine, para mostrar a importância do realismo, percorre, no capítulo II (“A Grande Recusa da Filosofia Moderna”), o itinerário que o idealismo seguiu, a partir de Descartes, para chegar a negar as evidências da realidade extra-mental e tentar construir a realidade a partir do sujeito pensante:
a) Descartes (1596-1650): “O Universo Duvidado”;
b) Kant (1724-1804): “O Universo Postulado”;
c) Husserl (1859-1938): “O Universo entre Parênteses”.
2) A Trilha do Idealismo avesso à Realidade
Negar a realidade? É possível que a filosofia moderna tenha chegado a isso? Se Aristóteles (384-322 a.C.) já havia mostrado como se dá o processo de abstração das idéias, a partir da captação sensorial da realidade, como foi possível negar a evidência do mundo que se apresenta diante de nós? Algo impensável, se apresentado assim, com essa simplicidade. Mas é isso que vemos na filosofia moderna cartesiana, em que tudo deve ser matematizado, explicado e compreendido a partir do auto-conhecimento do sujeito pensante!
Essa desconstrução da realidade começa, efetivamente, com Descartes e sua dúvida metódica. Enquanto para Aristóteles e os filósofos gregos o início da filosofia era a admiração (o “mirandum”), ou seja, o impacto diante da beleza e riqueza da Natureza, que faz com que nos perguntemos sobre sua essência e significado, já Descartes, querendo ter uma certeza maior do que já temos, passou a ver na dúvida o início de toda filosofia, ou seja, não acreditar nos sentidos, que poderiam nos enganar, para confiar inteiramente apenas na sua própria reflexão, de modo a ter idéias claras e distintas, chegando finalmente ao seu conhecido postulado inicial de toda a filosofia moderna: “Penso, logo existo”.
Essa estapafúrdia crise existencial induzida é bem descrita pelo próprio Descartes em seu “Discurso do Método”:
“Considerarei não a Deus, que é muito bondoso e a suprema fonte da verdade, mas a um certo espírito do mal, não menos talentoso e enganoso do que poderoso, que tem aplicado todos os seus esforços para iludir-me. Considerarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as formas e os sons, e todas as outras coisas objetivas que vemos, não passam de ilusões e sonhos que ele usou para enganar minha credulidade. Considerarei a mim mesmo como não tendo mãos, olhos, carne, sangue, nem qualquer sentido, mas acreditando falsamente que possuo todas essas coisas. Permaneceria decididamente vinculado a essa hipótese e, se não conseguir alcançar o conhecimento de qualquer verdade por meio desse método, de qualquer forma estará em minhas mãos suspender meu julgamento” (pg. 8).
Descartes começa por duvidar de que esteja acordado; Kant vai mais além e afirma que vivia no sonho dogmático do qual o acordou Hume (1711-1776), começando por negar a cognoscibilidade do mundo extra-mental, ao afirmar que apenas as suas aparências poderiam ser captadas por nós. Daí que caberia à mente humana dar o conteúdo a essas aparências, através das categorias de tempo e espaço. Paradoxalmente, Kant chama à sua “Crítica da Razão Pura” (1781) de Filosofia Transcendental: “Chamo transcendental todo conhecimento que em geral se ocupe, não dos objetos, mas da maneira que temos de conhecê-los, tanto quanto possível “a priori”.
Como se pode conhecer algo “a priori”? Só mesmo invertendo a equação do conhecimento e admitindo, como o faz Kant na sua “Crítica”, que são os objetos que se devem regular pelo nosso conhecimento e não a nossa cabeça pela realidade extra-mental. Assim, sim, conheceríamos em nós as coisas e não a partir do mundo lá fora…
3) Do Subjetivismo Gnoseológico ao Subjetivismo Ético
Do subjetivismo gnoseológico (de “gnose”, conhecimento), bem retratado na repetida expressão “ninguém é dono da verdade”, ao subjetivismo ético, também representado por outra conhecida frase “o que é errado para você não é errado para mim”, é apenas um passo: se não existe um mundo real extra-mental e objetivo a ser conhecido, sendo o processo de conhecimento um exercício de humildade, ou seja, de adequação e submissão de nossa cabeça a essa realidade, então também não existirá um bem objetivo e adequado à natureza humana, a ser buscado pelo homem como aquele que o poderá aperfeiçoar e realizar. Daí tanta frustração e infelicidade, também no meio da abundância.
Paradigmática, nesse sentido, foi a resposta de Frank Sinatra (1915-1998), no começo dos anos 80, a um jornalista que lhe surpreendeu com a seguinte pergunta (lembrando um amigo meu ponte-pretano, que a todos filosoficamente coloca essa questão existencial): “Frank, você é feliz?”. “The Voice”, como ficou conhecido o fantástico cantor, o qual teve na vida tudo o que desejou – mulheres, poder, fama, dinheiro, capacidade de influência, amigos reais ou bajuladores, satisfazendo inclusive as mínimas vontades, como quando comprou o time de beisebol para o qual torcia, para fazer a escalação que queria… –, respondeu simplesmente: “Não… mas a felicidade não existe”.
O que diria Chesterton a tão inveterado pessimista? Responderia naturalmente com todo o otimismo de seu fantástico realismo: não são as grandes emoções, a posse de incomensuráveis riquezas, o domínio despótico sobre a vontade própria e alheia que fazem a pessoa feliz e bem postada neste mundo – “bem resolvida”, como diria uma pessoa que comigo trabalha –, mas a valorização do comum e do pequeno. O maravilhar-se de ter duas pernas e dois braços e uma cabeça acima do tronco, em proporções que variam nas mais singulares formas de beleza e diferenciação, como mostra da riqueza exuberante da Criação.
4) A Realidade e a Fantasia
Numa passagem antológica de seu “Ortodoxia” (LTr – 2001 – São Paulo, tradução de Cláudia Albuquerque Tavares e apresentação, notas e anexos nossos), Chesterton fala do realismo da criança, já não alcançável pela maioria dos adultos (que bom seria não perder nunca essa capacidade de se maravilhar com o mundo, como o faz a criança):
“Da mesma forma como todos apreciamos as histórias de amor, devido ao instinto sexual, também gostamos das histórias de terror, porque nos despertam o velho instinto da surpresa. Isso pode ser provado pelo fato de que, quando somos ainda criancinhas, não precisamos de contos de fadas: precisamos, apenas, de contos. A simples vida já é suficientemente interessante. Uma criança de sete anos ficará impressionada se lhe disserem que o pequeno Tomás abriu uma porta e viu um dragão: mas uma criança de três anos já ficará impressionada se lhe disserem apenas que o pequeno Tomás abriu uma porta. Os jovens gostam de contos românticos, mas as crianças gostam de contos realistas – exatamente porque os acham românticos. Na verdade, uma criancinha é quase a única pessoa, segundo a minha maneira de pensar, que poderá ouvir um moderno romance realista sem achá-lo enfadonho. Isso prova que os contos de fadas são, ainda, os únicos que fazem despertar em nós o sentimento quase inato de interesse e admiração” (pg. 76).
Quando Chesterton fala das histórias de terror que despertam o instinto de surpresa no homem, não deixa, em seu realismo, de reconhecer que o mundo real é mais terrificante do que qualquer história de horror. Li, recentemente, o livro “Sobrevivi para Contar” (Fontanar – 2008 – São Paulo) de Immaculée Ilibagiza (n. 1970), sobrevivente do genocídio dos tustsis pelos hutus em Ruanda, ocorrido no ano de 1994. Durante 3 meses, ela ficou escondida com outras 7 mulheres num banheiro de 1×1,5m2, enquanto perto de um milhão de tutsis eram mortos pelo simples fato de serem tutsis (o filme “Hotel Ruanda” retrata bem o ocorrido). Durante 3 meses, o país parou, os serviços públicos cessaram, para que a população hutu, a mando do governo, liquidasse com todas as “baratas” tutsis. Homens, mulheres e crianças eram trucidados sem piedade.
Mas o fantástico da história foi a capacidade de perdão de Ilibagiza para com aqueles que mataram toda a sua família! O perdão não era apenas a condição de se reconstruir o país: era condição para se voltar a ter paz interior, sob pena de se ficar eternamente com o corrosivo sentimento de ódio e desejo de vingança.
Paine, em seu livro, explora bem essa vertente do realismo chestertoniano, ao comentar o capítulo sobre “A Ética na Terra das fadas” (pgs. 126-152). Enquanto Lewis Carroll (1832-1898), em seu “Alice no País das Maravilhas” (Jorge Zahar Editor – 2002 – Rio, Tradução de Maria Luiza Borges), apresenta uma rota de fuga do mundo real, do qual podemos estar cansados quer por sua monotonia, quer pelo estresse que nos causa, Chesterton procura mostrar em seus livros que o mundo fantástico é aquele em que vivemos. Ao invés de entrar na toca do coelho para ter grandes emoções e surpresas, basta sair dela para ver no ordinário e corrente pessoas e acontecimentos fantásticos.
Há um paralelismo muito grande entre os Contos de Fadas: na maioria deles existem mundos paralelos – o real e o imaginário – que se ligam, mas cada um com sua realidade e lógica própria. Não é o caso da magnífica obra de J. R. R. Tolkien (1892-1973) “O Senhor dos Anéis” (Martins Fontes – 2002 – São Paulo), toda ela um mundo fantástico, que começa com os elfos e termina com a história humana.
Mas em obras como “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll, “As Crônicas de Nárnia” (Martins Fontes – 2009 – São Paulo) de C. S. Lewis (1898-1963), “A História Sem Fim” (Martins Fontes – 2009 – São Paulo) de Michael Ende (1929-1995), ou “Harry Potter” (Rocco – 1997 a 2007 – São Paulo) de J. K. Rowling (n. 1965), há esses mundos paralelos, o nosso e o da fantasia.
Em Nárnia se ingressa pelos anéis mágicos ou pelo guarda-roupa; no País das Maravilhas pela toca do coelho; em Fantasia por um livro; e no mundo dos bruxos pelos portais especiais. Ou seja, a imaginação humana não é tão imaginativa assim e a realidade ainda sobrepuja a ficção.
A própria poesia da criação desses mundos fantásticos segue cheia de paralelismo: tanto a “Terra Média” construída por Tolkien quanto “Nárnia” idealizada por Lewis têm início a partir da música: o “canto dos Ainur” e o “canto de Ashlam” materializam o espaço e o tempo, fazendo do mundo e da história uma grande sinfonia, com suas luzes e sombras, rompantes e sussurros, como é a vida comum.
5) A Literatura e Realidade
A rigor, toda a literatura, quer seja de ficção ou não, não deixa de ser uma fuga do mundo real do leitor, para entrar no mundo da experiência alheia. Tive essa sensação recentemente, por ocasião do nascimento de minha sobrinha Daniela, com Síndrome de Down. Recebi de uma colega o livro “O Filho Eterno”, de Cristóvão Tezza (Record – 2008 – Rio) e, ao começar a lê-lo, cheguei à conclusão de que a experiência pessoal é sempre única. Como a do personagem central de “A morte de Ivan Ilitich”, de Leon Tolstoi, que sempre acreditara no silogismo “Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é moratl”, mas que acaba dizendo que aquilo estava bem para Sócrates, não para ele, ao descobrir que tinha seus dias contados.
Aprendemos da experiência alheia, pois os problemas humanos são semelhantes, mas as reações são muitas vezes distintas. À surpresa inicial com as características especiais de minha sobrinha seguiu-se a reação sobrenatural de ver nessa criaturinha tão frágil, carente de carinho e verdadeira usina potencial de amor e afeto, justamente pelas características especiais de seu gênero, a mão de Deus, a pedir uma doação maior de cada um que com ela conviver, elevando o nível geral de virtude de pais, irmãos, avós, tios, primos e amigos. Como disse em seguida meu pai: “Fantástico!”. Um verdadeiro Conto de Fadas, só que com a beleza e a dramaticidade de ser real!
Ao receber a segunda foto da Daniela, com seu sorriso angelical, não pude deixar de pensar que será como uma fada madrinha para toda a família. Aliás, a personagem emblemática dos Contos de Fadas, e que lhes dá o nome, é justamente a Fada Madrinha. Vivendo neste nosso mundo atribulado e cheio de compromissos, quantas abnegadas fadas madrinha não encontramos ao nosso lado, que tornam o peso do dia e do calor menos intenso e a vida mais leve e aprazível. Penso agora em minha mãe, irmãs, sobrinhas e secretárias, com tantos detalhes de atenção e carinho, que me parecem de outro mundo: algo fantástico.
6) De Deus e do Mundo
Paine, em seu livro, fala da estreita relação que existe entre a poesia, a filosofia e a oração, como etapas de nosso contato com o Universo. Primeiro cantamos a beleza da natureza e da vida, com uma sincera admiração; depois começamos a perscrutar os seus mistérios tentando desvendá-los, nem que seja minimamente; finalmente, ao descobrir a existência de um Ser Pessoal por trás de tudo, caímos de joelhos em agradecimento e louvor:
“A poesia começa com prazer e termina em admiração, mas a filosofia começa com a admiração e termina em estupefação. (…) Se filosofarmos longamente, e bem, poderemos um dia deixar de lado nossos livros e construir uma igreja” (pgs. 199-200).
O problema que Chesterton encontra na “Postura da Mente Ocidental” a partir de Descartes e Kant é o de querer desvendar absolutamente todos os mistérios do Universo e querer ordená-los segundo a própria mente, partindo de premissas falsas, quais sejam, as de que a evidência do mundo deve ser submetida a demonstração pelo intelecto, e de que, lembrando Hegel (1770-1831), “o real é racional e o racional é real” (“Fenomenologia do Espírito” – 1807).
Ora, o que pensamos não existe necessariamente na realidade e nem tudo o que existe é compreensível pela mente humana. Assim, a atitude diante da realidade deve ser a da humilde submissão do intelecto, que reconhece seus limites e canta admirado o que pode ver e apreciar. No 1º capítulo de “Ortodoxia” (“Os Maníacos”), Chesterton oferece uma imagem perfeita do realismo poético frente ao idealismo lógico:
“O poeta procura apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo no qual ele possa se expandir. O poeta pretende apenas meter a cabeça no Céu, enquanto que o lógico se esforça por meter o Céu na cabeça. E é a cabeça que acaba por estourar”.
7) Conclusão
Admirar e amar este mundo tal como ele é, mais fantástico do que qualquer imaginação humana poderia engendrar, constitui o segredo da felicidade, que nos leva, como a Chesterton, a militar num otimismo existencial que em tudo vê a Mão do Criador, sempre esperando uma resposta. Daí que, voltando à minha admirável sobrinha Daniela, se possa ver nela não tanto a Síndrome de Down, mas, como me dizia outra colega de trabalho, a Síndrome de Deus.
Que o fantástico livro de Scott Paine sirva, mais do que a obra de Hume para Kant, como despertador do sonho idealista e egocêntrico que possamos ter, para o impacto da realidade do Universo em que vivemos, maravilhosamente cantada por Chesterton em suas obras, que faz respeitar suas leis e admirar suas excentricidades, tornando a vida diária uma aventura mais emocionante do que qualquer romance.
Quando estou desanimado diante de panoramas menos alentadores no trabalho ou na vida social, basta ler um pouco de Chesterton para que volte a brilhar em meu horizonte o sol do otimismo e da alegria contagiante. Um otimismo que explode em sincera gargalhada, pela contundência paradoxal e irônica com que o notável jornalista inglês consegue mostrar o papel minúsculo dos escravos da vaidade e a grandeza dos que sabem rir de si mesmos e ver a imensidão do Universo e a beleza interior dos que nos cercam, que nos superam e fazem sentir-nos tão a gosto neste mundo real e fantástico, cercado por nossos admiráveis familiares, amigos e colegas.
Muito obrigada pelas reflexões! Este e outros posts seus foram de grande valia para mim. Um abraço e boa semana!
Ótimo texto! Parabéns!
[…] Li uma pequena coluna, que julguei bem escrita e, digamos, boa. Falava sobre a perspectiva de Chesterton, opondo a tradição idealista da filosofia a um realismo aristotélico. Não vou falar muito mais sobre o artigo, ele fala por si e está disponível aqui. […]