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Faça amor, não faça guerra? O caso de Númenor

Uma das críticas mais manjadas (e infundadas) contra a obra de Tolkien é que ela seria “unidimensional”. Em linguagem de homem: tudo estaria preto no branco demais. Bonzinhos são muito bonzinho, mauzinhos são muito mauzinhos, enquanto “todos nós” (aquele “nós” malandrinho que inclui todas as pessoas tão inteligentes quanto o sábio que está falando) sabemos que “no mundo real” a coisa é mais complicada, com inúmeros tons de cinza.

Pode até ser — embora às vezes eu desconfie que essa conversa seja a desculpa perfeita pra lavar as mãos quando a situação exige uma forma de clareza moral semelhante à tolkieniana. De qualquer maneira, quem vem com esse papinho talvez devesse ler “Contos Inacabados” direito.

Exemplo esquisito, eu sei — talvez a personalidade de Gollum ou a de Boromir fosse um exemplo melhor de como Tolkien é perfeitamente capaz de enxergar os tais tons de cinza. Mas a passagem dos “Contos” à qual me refiro é exemplar por tratar do tema da guerra.

Os críticos do Professor costumam descer a lenha na suposta sanção à violência na obra tolkieniana. Os “bonzinhos” recebem licença ilimitada para trucidar os “malvados”, afirmam eles. Tá na cara que eles nunca prestaram atenção no que Tar-Meneldur tem a dizer.

A Sombra de volta
Tar-Meneldur, vocês se lembram, é o rei de Númenor, pai do príncipe-navegador Aldarion, que recebe uma carta sobre o retorno da Sombra na Terra-média, assinada por ninguém menos que o rei élfico Gil-galad (pronuncia-se GUIL-gálad, meninos e meninas, não “jil-galád”, pelamordeEru).

O rei de Númenor, ao hesitar a respeito do envio de tropas para ajudar Gil-galad, coloca a coisa em termos claríssimos.

Será que é preciso matar outros seres humanos, mesmo em nome da justiça? “Dirão eles [os numenoreanos] a Eru: ao menos [os mortos] eram Teus inimigos?”. E se a decisão for de não lutar, e os aliados de Sauron se tornarem tão fortes que destruirão Númenor? “Dirão eles a Eru: pelo menos não derrubamos sangue?”

Esse é o eterno dilema de qualquer guerra. A não-violência é um caminho nobre, mas ela não leva em conta as vidas de quem depende dos responsáveis por tomar a decisão de não resistir ao mal. E o uso da força para proteger os indefesos do mal está a apenas um passo da tirania, como os próprios numenoreanos mostrariam de forma tão amarga nos séculos seguintes na Terra-média.

Então, você, manezão, que fica aí dizendo que Tolkien não conseguia ver a complexidade do problema: chupa. É lógico que ele conseguia — e melhor do que muita gente por aí.

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