Os inúmeros livros e filmes que apresentam os lobisomens como personagens refletem a universalidade desse ser fantástico, pois no folclore mundial são incontáveis as narrativas sobre o assunto. Busquei alguns subsídios para entender essa criatura na obra do maior especialista brasileiro em folclore: Luís da Câmara Cascudo. Segundo Cascudo, o lobisomem é um motivo mítico universal. Foi citado por Plínio o Antigo, Heródoto, Pompônio Mela, Plauto, Varrão, Santo Agostinho, Isócrates, Ovídio, Petrônio e vários outros escritores.
Note-se que tais autores não encaravam o lobisomem como um personagem literário, mas como uma realidade – um ser fantástico, porém real. Na Grécia chamavam-no licantropo; em Roma, versiopélio; para os eslavos, volkdlack; para os saxões, werwolf ou werewolf; para os germanos, wahwolf; para os nórdicos, hamramr; em russo obototen; em francês, loup-garou; em espanhol, lubizon ou lobinsón. Consta que existem ainda versões na China e no Japão, e que “na África existe a tradição sagrada das transformações animais, homens-lobos, homens-tigres, homens-hienas etc.” [1]
Até existe, na realidade, uma doença chamada Hipertricose Lanuginosa Congênita, conhecida como a Síndrome do Lobisomem. As pessoas que sofrem dessa doença acabam cobertas por pelos, com exceção das palmas das mãos e dos pés. Há uma lanugem que aparece nos recém nascidos e deveria desaparecer normalmente pouco antes do nascimento. Mas algumas pessoas não a perdem, e são então diagnosticadas com hipertricose, tornando-se parecidas aos lobisomens da ficção: um pelo fino e felpudo cresce sobre quase todo seu corpo.
Consta que foram registrados apenas 50 casos, no mundo, de hipertricose congênita. Existe ainda a Hipertricose Adquirida, quando o crescimento de pêlos se dá após o nascimento. Para tal condição os pesquisadores ainda não encontraram cura, apenas desenvolveram tratamentos com técnicas de depilação que utilizam laser e eletrólise.
Como virar Lobisomem
Mas esse tipo de doença não tem nada a ver com os contos populares, nos quais o lobisomem é descrito como um metamorfo ou transmorfo: um ser humano que se transforma em animal. A autora britânica J. K. Rowling o chamaria de uma variação do Animago… embora na série Harry Potter criaturas como o lobisomem Remus Lupin sejam mais temidas que admiradas. E nessa série de livros parece que a transformação pode atacar tanto homens como mulheres, enquanto nas histórias do povo quase sempre o licantropo pertence ao sexo masculino.
Voltando ao folclore, explica-se que a transformação ocorre por estar o homem sujeito a um fado, uma maldição, um castigo. Há inúmeras explicações para seu surgimento. Ele pode ser filho de uma união incestuosa (pai e filha, mãe e filho, irmão e irmã, ou filho de compadre com comadre, de padrinho com afilhada). Pode ser o primeiro filho homem após uma série de sete filhas. Em certas regiões da Rússia, dizia-se que quem nascesse no dia 24 de dezembro tornar-se-ia lobisomem; na França e na Alemanha havia a tradição de que, se alguém dormisse ao relento numa noite de Lua Cheia, sofreria a transformação. E há, é claro, a ideia da passagem do fado pela contaminação do sangue: o homem mordido por lobisomem também se torna um, e se alguém se sujar com seu sangue pode ser contaminado.
Em algumas narrativas oriundas do interior do Brasil, ainda segundo Cascudo, a metamorfose ocorreria às sextas-feiras, da meianoite às duas horas. Outras histórias dizem que, se quisesse virar um bicho sanguinário, a pessoa precisaria, na noite de quinta para sexta-feira, procurar uma encruzilhada onde os animais tivessem o costume de espojar-se; em seguida, tirar as roupas e esfregar-se no chão de terra como as bestas. E a transformação se faria…
Acreditava-se, na Idade Média, que as pessoas acusadas de ser lobisomens poderiam ser desmascaradas cortando-se sua pele, pois o pelo do lobo apareceria sob a ferida. Há narrativas de lobisomens que devoravam corpos recém-enterrados, e daqueles que, nas noites de Lua Cheia, caçavam as crianças que encontrassem para se alimentar. Outras dão conta de que a metamorfose era obra de feiticeiros malignos em rituais demoníacos. Havia até quem jurasse que pessoas excomungadas pela Igreja Católica se transformariam em lobisomens.
O Ciclo do Noivo Animal
Podemos traçar o caminho que tais narrativas fizeram, vindas dos mitos, até chegar ao folclore e, dele, à literatura. Na mitologia de várias regiões há histórias antiquíssimas que falam de homens ou mulheres transformados em animais. E, em muitas delas, a magia que causou a transformação e a prisão na animalidade é desfeita apenas quando o personagem principal encontra um parceiro do sexo oposto.
Essas histórias foram agrupadas num corpo de estudos que se convencionou chamar de Ciclo do noivo animal. Sua versão mais ancestral parece ser o mito grego Eros e Psichê, conhecido através de um texto de Apuleius, filósofo e escritor nascido no século II em uma colônia romana na Numídia (hoje Algéria). Nessa história temos vários dos motivos que depois aparecerão em contos de fadas: a união de um homem (ou mulher) transformado ou disfarçado de animal com uma jovem (ou rapaz); várias provas pelas quais ele, ela, ou ambos devem passar; e a redenção de um deles ou de ambos, através da coragem e do amor do parceiro(a).
Algumas histórias populares pertencentes a esse ciclo são bastante conhecidas. Temos, dos Irmãos Grimm, Rosa Branca e Rosa Vermelha, na qual um urso pede abrigo durante o inverno severo na casa da floresta em que moram duas irmãs e sua mãe. Depois de várias peripécias com um anão maligno, o urso se transforma em um belo príncipe e se casa com uma das irmãs. Também recontada por Grimm, O Rei sapo traz um sapo nojento a quem a Princesa deve convidar para comer em sua mesa e dormir em sua cama, em agradecimento por ele ter recuperado sua bola de ouro caída em um poço. Naturalmente, o sapo se desencanta pela ação da princesa, revelando-se humano, e um Rei.
Na história francesa A Bela e a Fera, a jovem Bela é obrigada a ir morar num castelo habitado por uma fera repugnante e ameaçadora; a princípio ela o detesta, mas aos poucos vai aprendendo a amá-lo e, quando Fera está prestes a morrer, Bela o salva demonstrando seu amor. Ele então se desencanta e retoma a forma humana
Um conto romeno chamado O Porco encantado tem como protagonista a filha mais nova de um rei, destinada a se casar com um porco. Destino tão ingrato é amenizado pelo fato de que, à noite, o porco se transforma em homem. Porém, ao tentar desfazer a transformação com a ajuda de uma feiticeira, a moça só consegue perdê-lo. E terá de passar por inúmeras provas, sendo a última terrível, para reencontrá-lo e tê-lo como marido na forma humana.
No conto norueguês A Leste do Sol e Oeste da Lua, encontramos os mesmos elementos, embora o marido a quem a protagonista é prometida seja um urso branco; e sua transformação em homem é complicada, pois ele cai sob o poder de um grupo de trolls e só depois de muito sacrifício, e da ajuda dos quatro Ventos, a moça o encontra e casa-se com ele.
Dizem os estudiosos que, na verdade, todas essas histórias falam sobre a jornada do ser em busca de sua humanidade, da necessidade que toda pessoa tem de alcançar a maturidade. Apenas quando o homem e a mulher se desligam do mundo infantil e lutam por seu crescimento como pessoas, é que poderão ser felizes, completos – a completude simbolizada pelo encontro com o parceiro ideal. Mas recuperar a humanidade, quando se está preso na animalidade, não é fácil. Os heróis das histórias, sejam homens ou mulheres, devem passar por muitos sacrifícios e provar sua maturidade através do sofrimento, para obter a transformação. [2]
Mitologia Lupina
Na cultura Greco-Romana houve mitos e rituais envolvendo homens-lobo, como a história de Licaon, da qual encontramos uma versão nas Metamorfoses de Ovídio. [3]
Licaon (Grécia)
Zeus, o senhor do Olimpo, às vezes descia do monte em que viviam os deuses e percorria a terra disfarçado de mortal. Numa dessas viagens, horrorizado ao ver como o mal se disseminava entre os homens, ele parou na região da Arcádia. Anoitecia, e o mais poderoso dos deuses pediu abrigo no palácio do governante: Licaon, que era tido como um tirano infame. O povo da Arcádia sabia que um deus estava entre eles, pois Zeus não ocultou sua natureza divina. Porém Licaon, o rei, duvidou e zombou das reverências e preces que seu povo fazia ao visitante. Rindo, declarou:
– Descobrirei se este é mesmo um deus ou um mero mortal!
O rei planejou naquela noite matar seu hóspede, quando ele adormecesse. Mas antes preparou-lhe um jantar macabro: tomou um prisioneiro, cortou sua garganta, retalhou sua carne ainda quente e mandou que seus pedaços fossem cozidos e assados.
Ao ver a carne humana servida diante dele como uma iguaria, Zeus se enfureceu. Com um golpe na mesa do jantar, atraiu um raio que trouxe a maldição ao rei tirano e a todos os seus descendentes!
Licaon tentou falar, mas não conseguiu. Tentou fugir da ira de Zeus e disparou a correr, deixando o palácio e ganhando os campos. Conforme corria, sua boca espumava, seus braços se tornaram pernas, suas mãos viraram patas. Ele chegou ao local em que pastava um rebanho de ovelhas e caiu sobre elas com uma fúria bestial; só pensava em matar e destroçar.
Era ainda o mesmo Licaon, mas não era mais um homem.
Transformara-se em lobo.
Outra história interessante, e que teria dado origem a rituais que hoje nos parecem estranhos, é a que veio da lenda sobre a fundação de Roma.
Luperci Sodalis – os Amigos do Lobo (Roma)
Conta-se que a cidade de Roma nasceu da disputa entre dois irmãos. O trono de Alba-a-Grande, capital das terras italianas ocupadas pela linhagem de Enéias, de Tróia, era disputado pelos descendentes de seu duodécimo rei: Amúlio e Numitor. Amúlio se apoderou do reino assegurando que o irmão não tivesse descendentes: matou o filho dele e obrigou Réia Sílvia, a filha de Numitor, a se tornar uma Vestal. Como sacerdotisa de Vesta, ela seria obrigada a permanecer virgem e não deixaria herdeiros ao trono.
O deus Marte, porém, engravidou Réia Sílvia, que deu à luz dois meninos. O rei Amúlio, descobrindo, mandou prender a mãe e jogar as crianças no rio Tibre. Aconteceu, contudo, que as águas do rio transbordaram e certas partes do leito secaram, deixando os bebês num terreno seco e cercado pela mata selvagem. Ora, uma loba que passava ouviu o choro de ambos. Diz a tradição que ela dera à luz mas perdera os filhotes; carregou os gêmeos para uma caverna próxima e amamentou-os.
Fáustolo, um pastor da região, seguiu a loba e encontrou os bebês. Então levou os gêmeos para sua esposa, que os criou. Receberam os nomes de Rômulo e Remo. Quando adultos, descobriram de quem descendiam, libertaram sua mãe e restituíram o trono de seu avô, Numitor. Na região em que foram encontrados pela Loba, fundaram uma cidade que receberia o nome derivado de um deles: Roma.
Um mito romano dizia que a Loba fora na verdade o deus Pã transformado em animal; e julgava-se que certa gruta, nas colinas que cercavam Roma, teria sido o local em que Rômulo e Remo foram amamentados. Sacerdotes romanos passaram a realizar rituais nessa gruta e em suas cercanias. Eles se autodenominavam luperci sodalis, os amigos do lobo, e ali realizavam cerimônias de purificação. Em certa época do ano, sacrificavam lobos ou cães, vestiam a pele ainda sangrenta dos animais e entravam em transe. Segundo a tradição, tornavam-se lobos, ou homens-lobos.
O povo acorria aos rituais, chamados Lupercalia ou Lupercais; eram festas em honra ao deus Pã. Os sacerdotes, sob as peles de lobos e ungidos com sangue, uivavam. Munidos de chicotes, com eles fustigavam os fiéis, que através do açoite se sentiam purificados. Essas práticas duraram séculos, e considera-se que as Lupercais foram uma das origens do Carnaval. Só deixaram de ser realizadas no ano 494, quando um Papa as proibiu por serem ritos pagãos. Mas elas espalharam a crença de que era possível homens se transformarem em lobos.
A Lua cheia e a Prata
Já as referências à ocorrência da transformação com a chegada da Lua Cheia vêm de textos medievais, como os do cronista católico inglês do século XIII, Gervase de Tilbury, que escreveu um Descriptio totius orbis, espécie de miscelânea contendo narrativas diversas que na época eram consideradas “científicas”, e somente mais tarde seriam vistas como folclóricas. Desde que as histórias de Tilbury se tornaram populares no século XIII, então, a maioria das narrativas associa o lobisomem à Lua. Mas por que associá-lo à prata?
Algumas tradições dizem que as balas de prata são a única coisa que pode matar um lobisomem. A primeira referência a esse método parece ter vindo das histórias, aparentemente reais, das Bestas de Gévaudan, na França do século XVIII. Consta que eram lobisomens que teriam matado dezenas de pessoas. O escritor Chevalley, ao contar sobre Jean Chastel, um dos matadores de tais bestas, declarou ter fabricado balas de prata com as quais conseguiu matar uma delas. Parece ser a primeira referência a esse metal como letal para os metamorfos.
Porém as tradições sobre a prata sugerem que não é o mero contato com ela que é nocivo ao lobisomem, e sim o poder simbólico do metal, associado tradicionalmente à Lua. Objetos de prata eram oferecidos à deusa grega Ártemis, mais tarde chamada pelos romanos Diana, senhora da Lua. E assim como o poder da prata estaria na Lua, que comanda a transformação dos lobisomens, o poder das velas de cera estaria na consagração que elas teriam sofrido em um templo religioso.
Isso, sim, o elemento sagrado, é que seria capaz de afetar uma maldição tão profunda quanto a que infecta os homens-lobo. Talvez seja por isso que, nas tradições da Península Ibérica, que trouxeram os mitos do licantropo ao Brasil, existe uma forte conexão com o Cristianismo. É dito que, para fazer efeito contra esses seres, uma arma de fogo deveria ter suas balas untadas com cera. Porém não pode ser cera comum, e sim a cera de uma vela benta. Tais velas podem ter sido consagradas de várias formas: ter recebido a bênção de um sacerdote, terem sido acesas dentro de um templo, ou ter ardido durante a missa. Cascudo nos fala da necessidade de a vela estar presente durante três missas ou um rito especial, como a Missa do Galo, na noite de Natal.
Seja qual for a origem da cera, as narrativas indicam que, assim como no caso da prata, sua força não está na vela e sim na ligação com o ritual sagrado.
Entre os autores modernos, há visões diferentes. Em The Graveyard book, de Neil Gaiman, por exemplo, encontramos a afirmação de que os lobisomens são benignos. Chamados os Cães de caça de Deus, eles seriam seres guardiães do Bem e perseguidores dos que praticam o Mal. [4] Na obra da polêmica Stephanie Meyer, em Lua Nova o jovem Jacob se transforma em lobo pois a capacidade de metamorfose faz parte de sua herança indígena, não tem nada a ver com um fado ou castigo. E, para quem quer ficção fantástica genuinamente brasileira, podemos indicar nosso próprio Sangue de Lobo, que tem como protagonista um licantropo em busca de cura para a maldição da Lua Cheia…[5]
A Reversão da maldição, ou: é possível desencantar um lobisomem?
Se, na série Harry Potter a maldição que persegue Remus Lupin só termina com sua morte,[6] as narrativas do folclore brasileiro propõem que a maldição dos homens transformados em lobo não é irreversível, pode ser desfeita. Mais uma vez citando Câmara Cascudo, descobrimos que para dar fim à sina dos lobisomens, é preciso feri-los, fazer seu sangue correr. Note-se que Cascudo fala em sangramento, não em lobicídio – não se cogita matar o lobisomem, pois imagina-se que a morte do lobo seria também a morte do homem.
Além da exigência de “correr sangue”, existem ainda as sugestões de que faz parte da sina do licantropo a corrida, a peregrinação. A maldição lançada (seja pelo destino, pelo demônio ou por seus próprios pecados) traria consigo a obrigação de o homem-lobo sair do lugar em da transfiguração e percorrer sete locais, voltando ao começo da corrida para readquirir a forma humana.
Algumas fontes dizem que a corrida aos sete lugares deve começar numa sexta-feira à meia noite e terminar às duas horas da manhã. Outras dizem que na verdade são sete vezes sete locais: sete cemitérios, sete igrejas, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, sete espojadouros.
O “7” como número mágico ou sagrado é comum em muitas culturas. A razão de o lobisomem ter de peregrinar por sete locais é, contudo, inexplicável. Talvez faça isso para fugir dos cachorros que, dizem as histórias, o perseguem. Talvez a corrida diminua a força da Lua Cheia sobre o homem condenado a ser lobo, ou talvez a peregrinação por locais sagrados (igrejas, cemitérios) seja importante para a quebra do encantamento. Uma coisa é evidente: o local original da transformação em lobo deve ser o ponto de partida do peregrino.
O que concluímos? Que o fascínio dos leitores pelas histórias de maldições, transformações, vampiros, lobisomens e outros seres fantásticos é muito antiga. Sua razão pode estar na busca das pessoas pelo encontro com o parceiro ideal, como ocorre no ciclo do Noivo Animal. Ou no fascínio pelo nosso próprio sangue, líquido misterioso que é o fluido da vida e que causa um misto de repulsa e atração… Seja como for, as histórias de lobisomens estão aí, perpetuando-se, emocionando e encantando – no bom sentido! – leitores e ouvintes.
*
Luís da Câmara Cascudo. Dicionário do Folclore Brasileiro. Ed. …
[2] Veja-se a esse respeito A Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim. Ed. Paz e Terra.
[3] Ovídio. Metamorfoses. Ed. Madras.
[4] Neil Gaiman. O Livro do Cemitério. Ed. Rocco.
[5] Helena Gomes e Rosana Rios. Sangue de Lobo. Ed. DCL / Farol Literário. Veja também p Blog do livro: http://sangue-de-lobo.blogspot.com/
[6] J. K. Rowling. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Ed. Rocco.