No inverno de 2010, ouvi pela primeira vez, numa animada tertúlia em São Paulo, cantada a plenos pulmões por um grupo de rapazes, com violões e flauta transversal, fazendo contra-ponto 2 a 2, a música “Bola de Meia, Bola de Gude”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Copio a letra, se acaso alguém não a conhece, pois servirá de pauta para a reflexão que gostaria de fazer sobre não conformismo e melhora:
“Há um menino, há um moleque
morando sempre no meu coração.
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão.
Há um passado no meu presente
um sol bem quente lá no meu quintal.
Toda vez que a bruxa me assombra
o menino me dá a mão.
E me fala de coisas bonitas que eu
acredito que não deixarão de existir.
Amizade, palavra, respeito, caráter,
bondade, alegria e amor.
Pois não posso, não devo, não quero
Viver como toda essa gente insiste em viver.
Não posso aceitar sossegado qualquer
sacanagem ser coisa normal.
Bola de meia, bola de gude, o
solidário não quer solidão.
Toda vez que a tristeza me alcança
o menino me dá a mão”.
A música fala de valores recebidos na infância e prezados na juventude, que podem ser atropelados na maturidade, quando se ingressa na vida profissional, pela disputa, deslealdade, preconceito, sedução, inveja, bajulação e assédio, circunstâncias que caracterizam um ambiente adverso aos valores morais decantados por Milton Nascimento, que são a amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor.
Diante do dilema entre aquilo que podem nos dizer – Deixe de ser idealista! Caia na real! Mas em que mundo você vive? – e o que a consciência nos aponta como “la cosa justa da fare” (estrofe de música da Laura Pausini), a pressão social pode fazer com que se abdiquem dos ideais e valores que nos formaram, se esses valores não estavam arraigados e não estão sendo constantemente vivenciados.
Milton Nascimento nos fala de não conformismo, de “não aceitar sossegado que qualquer sacanagem seja coisa normal”, que um mundo de violência, exploração, rasteiras, corrupção, pornografia e mentiras seja o habitat natural do ser humano, com o qual ele deva se adaptar e amoldar.
Mas que se pode fazer, se a correnteza é forte e nos leva de roldão? O conhecido ditado – uma andorinha não faz verão – é sempre lembrado nessas horas para justificar a rendição pessoal diante de situações em que viver os valores morais supõe heroísmo e fortaleza. O “politicamente correto” passa a ser a cartilha seguida por quem deseja subir a qualquer preço, triunfar e ter sucesso na vida, satisfazer todas as suas ambições de prazer e de poder, ou simplesmente não ter dores de cabeça… A desculpa para negócios menos honestos ou compromissos escusos é sempre: Afinal, todo mundo age assim? Certo ou errada, a prática está generalizada…
Encantei-me com o comentário que um ex-colega de Tribunal, o Min. José Luciano de Castilho Pereira, conhecido pela sua retidão moral e competência profissional, fez, quando falávamos de alguns casos tristes que tivemos de julgar no Conselho Nacional de Justiça, envolvendo a conduta imoral de magistrados (felizmente poucos): Aquilo que não puder contar para Angela, não posso fazer! (Angela é sua mulher).
Pensando em seu comentário, podemos vislumbrar os três caminhos que se abrem diante de um ambiente adverso:
a) Depor as armas e conformar-se ao ambiente (caminho fácil);
b) Tornar-se amargo, reclamão e vingativo, partindo para uma luta contra as estruturas sociais, o que não deixa de ser um modo de agir “com as armas dos inimigo” (caminho acre);
c) Resistir de forma otimista, pela aquisição e exercício das virtudes em qualquer condição de temperatura e pressão, mudando paulatinamente o ambiente ao nosso redor (caminho eficaz);
Trataremos aqui apenas dos dois últimos caminhos, pois estas linhas se escrevem para não conformistas.
II) O CAMINHO ACRE: O ÓDIO E A VINGANÇA
Quando sofremos uma derrota em que a sensação de injustiça é grande, porque os meios usados pelo adversário não foram honestos, pode bater a tentação de pagar na mesma moeda, concluindo que, se todo mundo joga sujo, quem não adotar as mesmas armas estará naturalmente fadado ao fracasso. Agir assim é deixar-se arrastar pelos instintos e pelos sentimentos baixos de vingança ou de justiça vetero-testamentária do olho por olho e dente por dente. Reagir ao ambiente pela via da luta exterior não parece ser o melhor caminho a seguir.
No livro “Star Trek e a Filosofia” organizado por Jason Eberl e Kevin Decker (Madras – 2010 – São Paulo), em que os autores aproveitam os episódios da famosa série de TV do gênero ficção científica para trazer à prática grandes questões filosóficas, o tema da vingança é bem desenvolvido no capítulo “A Ira de Nietzsche”, no qual o pano de fundo e o filme “Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan”, onde o personagem principal é representado pelo renomado ator Ricardo Montalbán.
A descrição e a motivação que os autores do artigo (Shai Biderman e William Devlin) apresentam dos dois personagens principais, que se enfrentam no filme é muito sugestiva:
James Tiberius Kirk – É um “peixe fora d’água, pois sua missão de cinco anos havia acabado e a vida dele havia se tornado menos significativa, apesar de suas realizações e de suas honras. Uma vez tendo sido o mais jovem capitão na história da Frota Estelar, Kirk agora reflete sobre o significado e sobre o propósito de sua própria vida a partir da perspectiva da meia-idade. Ele foi promovido a almirante, mas sua promoção não o faz se sentir mais realizado”. Está desmotivado (pg. 68).
Khan Noonien Singh – É “um produto da engenharia genética do final do século XX…Depois de sua tentativa de assassinar Kirk e comandar a Enterprise, Khan e seus seguidores são sentenciados a uma vida inteira de exílio em Ceti Alfa V. Tendo sido uma vez um ambiente habitável, o planeta torna-se um punhado de terra improdutiva depois que o planeta irmão explode, e Khan perde muitos de seu povo nos anos que se seguem, incluindo sua amada esposa, a ex-tripulante da Enterprise, Maria McGivers”. As duas metas de sua vida, quando consegue escapar do cativeiro, são: roubar o projeto Genesis, “experimento científico que cria vida da ausência de vida”, e, mais importante subjetivamente, vingar-se do almirante Kirk (pg. 70).
Perguntam-se os filósofos autores do artigo, refletindo sobre a motivação existencial do Khan: “A vingança ajuda a criar uma vida significativa, que valha a pena ser vivida, ou a vingança obstrui a busca de um indivíduo por uma vida significativa, uma obstrução que pode até mesmo, por fim, levar à destruição da vida em si?” (pg. 68). E, afinal, pensando no Almirante Kirk, o que tornaria uma vida significativa?
Diferenciam os autores a santa ira, desejo reto de restabelecimento da justiça, da vingança selvagem, que visa ao sofrimento de outrem. A primeira é fruto da caridade que se entristece com a falta alheia e deseja a correção do infrator, porque o estima. A segunda é fruto do ressentimento e torna a pessoa que se deixa dominar por ela escrava do sentimento de vingança.
Khan é, mais uma vez, vencido por Kirk, e morre externando todo o seu ódio: “Do coração do inferno, eu o apunhalo. Pelo meu ódio, cuspo em você em meu último suspiro!” (pg. 76).
Um vida centrada em si mesmo e depois focada na vingança, frustra, mesmo se a vingança for bem sucedida, como é o caso do “Conde de Monte Cristo” (1844) de Alexandre Dumas (1802-1870). Edmond Dantés ao conseguir arruinar principalmente Fernand Mondego, que o havia denunciado falsamente para casar-se com sua noiva Mercedes e fora causa de seus muitos anos na prisão, sente um gosto amargo de vida desperdiçada em ódio, quando sabe do suicídio de Fernand.
O caminho da justiça vindicativa não tem se mostrado eficaz na transformação para melhor da sociedade. Punir por punir, num regime de medo da pena, não atinge o âmago do problema, que é a formação da pessoa nos valores morais mais elevados, os quais, uma vez assumidos como próprios, passam a ser efetivamente vivenciados, como se procura fazer na justiça restaurativa.
III) A LUTA EXTERIOR: MUDAR POR FORA
Já o caminho da luta exterior para a transformação das estruturas sociais segue o mesmo destino acre e pouco eficaz e duradouro do amargor individual diante das injustiças sociais que se vem. Exemplo paradigmático é o das revoluções socializantes.
É interessante notar que toda a ideologia marxista, que alimenta essas revoluções, é genuinamente não conformista. É célebre o grito de Karl Marx: “Até hoje os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo; trata-se agora de transformá-lo”. É também célebre a expressão jocosa – e também conformista – que se utiliza para debochar dos que acreditam nessa ideologia: Quem nunca foi marxista até os 40 anos é que não tem coração; quem continua a sê-lo depois dos 40 é que não tem cabeça.
Com efeito, o marxismo não é conformista. Deseja transformar o mundo, vendo a exploração de uns homens por outros. No entanto, escolheu o caminho equivocado, da luta exterior, da práxis revolucionária, uma vez que concebe a luta de classes como o motor da História. Daí que acredite que mudando as estruturas sociais mudará o mundo.
É admirável a figura de Antonio Gramsci (1891-1937), fundador do Partido Comunista Italiano, pelo seu genuíno, despojado e autêntico idealismo, muito diferente daqueles que abraçam ideologias socializantes e vivem como bons burgueses. Preso e condenado pelos fascistas italianos em 1926, ficou até quase a morte na prisão, onde escreveu seus “Cadernos do Cárcere”, nos quais traça perfeitamente a estratégia da “Esquerda” de conquista do poder:
a) na luta de classes, a classe proletária que busca a hegemonia na sociedade deve difundir, através de intelectuais engajados, sua cultura própria na sociedade civil (sindicatos, universidades, igrejas, imprensa, etc), até alcançar um consenso que lhe permita conquistar o poder político (Estado);
b) essa classe deve se organizar-se em partido, que seja o depositário da doutrina, ao qual todos se subordinem;
c) a revolução não se fará mais pelas armas ou pelo confronto direto, mas pela guerra de posições a serem gradualmente conquistadas: revolução no âmbito da cultura, exercendo verdadeiro patrulhamento ideológico em relação ao que não esteja de acordo com a ideologia socialista.
Não fora o desrespeito à liberdade – valor fundamental em qualquer Estado genuinamente democrático –, a difusão de idéias e valores pelos mais diversos ambientes sociais que propõe é salutar. O que falta é saber conviver com o pluralismo. Para isso é necessária uma mudança de mentalidade: a solidariedade é um valor que não se impõe; deve vir de dentro, de uma pessoa que, prezando e vivendo os valores morais, preocupa-se sinceramente com os outros e tem por ideal servir e não servir-se dos demais.
70 anos de marxismo no que então se denominava 2º Mundo (União Soviética e seus satélites) foram mais do que suficientes para demonstrar – naturalmente para quem quiser ver, pensando em que “o pior cego é aquele que não quer ver” – que a mudança das estruturas sociais não faz o paraíso na terra, porque o homem continua o mesmo. Deve-se trabalhar mais profundamente, transformando o próprio homem por dentro.
IV) LUTA INTERIOR: RACIONALIDADE VERUS SENTIMENTALISMO
Se o melhor caminho para afrontar um ambiente hostil aos valores morais não é o da luta exterior para transformar a sociedade – uma espécie de guerra inicial imoral, para depois voltar à moral (os fins justificam os meios, diria Maquiavel), como empreender o caminho da luta interior contra si mesmo, contra esses dragões interiores (lembrando o filme de Joffé “There Be Dragoons”), que estão soltos e, começando por fazer mal a nós mesmos, espalham seu fogo abrasador e destrutivo por toda a sociedade?
Lembrando o comentário evangélico, quantos não repetem, depois de suas quedas e negociatas, procurando justificá-las: A carne é fraca…
Afinal, como conter as paixões e os sentimentos? No fundo, a corrupção exterior é fruto do domínio das paixões sobre a razão. Haverá um modo da cabeça prevalecer sobre o coração? A razão sobre o instinto?
Aristóteles elencava as paixões em duplas, procurando mostrar que, consideradas em si mesmas, não seriam nem boas nem más: amor e ódio, alegria e tristeza, medo e audácia, esperança e desespero, desejo e ira.
No artigo “Humanos sorriem com tão pouca provocação”, da já mencionada coletânea sobre “Star Trek e a Filosofia”, seu autor, Harald Thorsrud, explora o tema do conflito interior entre racionalidade e sentimentalismo, utilizando-se de dois personagens da referida série televisiva: O Sr. Spock (Série Original) e o humanóide Data (Nova Geração). O primeiro, filho de mãe humana e pai vulcano, luta interiormente por controlar suas emoções, privilegiando a pura lógica vulcana no agir. O outro, verdadeiro robô programado logicamente, tem “inveja” dos humanos, ao perceber que o sentimento desempenha um papel importante na vida, algo que lhe falta.
Com efeito, controlar os sentimentos é uma tarefa desafiadora: Como raciocinar quando se está tremendamente apaixonado por alguém? Como perdoar do fundo do coração quando assoma uma ira raiando o ódio por alguém que nos atraiçoou ou nos passou uma rasteira profissional? Como controlar o medo diante de situações apavorantes pelo desconhecido ou por superar as nossas forças? Como não se deixar abater pelo desespero ao constatar diuturnamente nossas fraquezas?
Numa visão antropológica aristotélica, a alma humana é composta de inteligência, vontade e sentimentos. Cabe à inteligência, vendo racionalmente a realidade, mostrar à vontade os objetos adequados à pessoa, de modo a que impere sobre os sentimentos, aproveitando-os como força propulsora e não pedra de tropeço.
No entanto, essa equação não é fácil de fechar. Sem o exercício da vontade na prática das virtudes (vistas como boas pela inteligência), quem acaba mandando no homem são os sentimentos. Há, portanto, uma natureza ideal do homem, pautada pela razão, e uma natureza corrompida pela desordem das paixões. Cabe à vontade canalizar para o bem todos os sentimentos (inclusive os aparentemente maus, como o ódio ou a ira), gerando no homem uma segunda natureza, aquela construída sobre as virtudes.
V) A AQUISIÇÃO DAS VIRTUDES
E como se adquirem as virtudes? Mais do que isso: o que são, afinal essas virtudes?
Aristóteles definia as virtudes como hábitos bons que adquirimos através da repetição de atos bons. A coragem se adquire vencendo uma vez e outra o medo diante das dificuldades, até ser natural enfrentarmos qualquer adversidade, sem ficarmos paralisados diante dos obstáculos. O mesmo acontece com a paciência, que faz não reclamar diante das chatices do próximo ou das situações incômodas que se prolongam no tempo, uma vez que se acostumou o espírito com esse tipo de perspectiva.
A luta pelas virtudes não é um combate estóico, de alguém que consegue dominar-se à base de se desumanizar. Mais uma vez o exemplo do “Star Trek”, comparando o humano e o vulcano. Numa situação de extremo perigo, o Sr. Spock é o único que consegue controlar-se e se lançar imediatamente, arriscando a própria vida, para salvar a frota estelar de uma catástrofe. No entanto, sua frieza e destemor são contestados pelo Dr. McCoy:
“Você sabe por que não tem medo de morrer, Spock? Você tem mais medo de viver. A cada dia que você fica vivo, poderia escorregar e permitir que sua metade humana viesse à tona furtivamente. É isso, não é? Insegurança. Por quê? Você não saberia o que fazer com um sentimento caloroso, genuíno, decente” (“Star Trek e a Filosofia”, op. cit., pg. 58).
A análise da “coragem” de Spock feita por McCoy é de um realismo e profundidade impressionantes: retrata uma das posturas extremas do relacionamento do homem com o mundo. Com efeito, duas correntes filosóficas gregas apontaram para dois caminhos distintos para o comportamento do homem em relação aos bens e às pessoas: o estoicismo (Zenão, 333-262 a.C.) e o epicurismo (Epicuro, 341-270 a.C.).
O ponto nodal da discórdia entre as duas Escolas Gregas Clássicas – a Kepos (“Jardim”) e a Stoa (“Pórtico”) – é o papel que o prazer e as paixões desempenham na vida humana. Enquanto os epicuristas exaltam a busca do prazer como a razão de viver, já os estóicos sustentam que a felicidade se obteria com a impassibilidade: não sofrer com as dores, nem buscar os prazeres. Modernamente, essas Escolas Gregas encontraram eco em duas correntes filosóficas: o utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832), voltado “ao máximo prazer do maior número” e o idealismo de Emanuel Kant (1724-1804), focado no “cumprimento do dever pelo dever”.
O epicurismo utilitarista rebaixa o homem a uma condição animalesca, de busca desenfreada do prazer a todo custo, com avidez que embrutece o homem. Já o estoicismo idealista desumaniza e distorce o próprio ideal de aperfeiçoamento virtuoso, colocando-o acima e fora da condição humana.
Nesse, como em outros pontos, a postura aristotélica centrada no equilíbrio do “in medio virtus” aponta para a correta visão do papel que o prazer deve desempenhar em nossa vida e do que significa adquirir, viver e praticar as virtudes.
O prazer é o meio natural que estimula o cumprimento dos instintos vitais no animal e no homem. O prazer do comer e do beber garante a auto-conservação; o prazer sexual garante a conservação da espécie. O problema está na inversão de valores e funções: busca-se o prazer e se evitam os fins, até que estes aparecem como absolutamente secundários e a avidez do prazer leva ao sacrifício de pessoas e valores para a satisfação própria contínua e em doses cada vez maiores.
Encontrar o ponto de equilíbrio na busca do prazer é um dos segredos da felicidade humana: perceber a relação entre fins e meios, prazeres e seus instintos existenciais, moderação e verdadeira satisfação.
Daí a necessidade da luta interior, do império da razão sobre os instintos, com o uso da inteligência e da vontade para manter os sentimentos em seu devido lugar, como motor e não como entrave ao aperfeiçoamento pessoal.
VI) A LUTA INTERIOR CONTRA OS DEFEITOS
Lembrando a mitologia grega, especificamente a estória do semi-deus Aquiles, cujo único ponto vulnerável era seu calcanhar, pelo qual será ferido e encontrará a morte no final da Guerra de Tróia, podemos dizer que cada um de nós tem o seu “Calcanhar de Aquiles”, o seu defeito dominante, que se destaca sobre os demais, por ser a nossa principal fonte de quedas e dificuldades na vida.
Através da observação sobre si mesmo e sobre os demais, não é difícil se chegar a resumir em 3 grandes defeitos a variada gama de misérias humanas: o orgulho (aqui abrangendo a auto-suficiência e a vaidade), a sensualidade (incluindo a busca desenfreada do prazer em todas as suas modalidades) e a preguiça (ligada ao comodismo paralisante da realização de qualquer projeto maior na vida).
A vaidade e o orgulho são a principal fonte de desentendimento entre os homens, uma vez que faz desprezar as realizações alheias e querer sempre fazer prevalecer a própria opinião e aparecer a própria imagem. A sensualidade, no campo do sexo, tem como frutos amargos a vulgarização da mulher, a animalização do homem e a supressão da vida nascente, e, no campo gastronômico, todas as doenças decorrentes da obesidade, sempre por destempero na busca do prazer sensível. E o comodismo é a chave para fazer da vida uma “paixão inútil”, na expressão antológica do existencialista francês.
Como derrotar esses inimigos da autêntica auto-realização?
Em primeiro lugar, como em qualquer tática militar, detectando a presença do inimigo. O fator surpresa e a camuflagem que escondem a presença do inimigo são seus principais trunfos. Os nossos são a sinceridade conosco mesmo para reconhecer que somos vaidosos, sensuais e preguiçosos, numa medida ou noutra. Basta nos fazermos as seguintes perguntas e as respondermos com sinceridade para detectarmos as raízes do mal e sua virulência em nossa vida:
a) Falamos muito de nós mesmos e temos dificuldade de nos interessarmos pelas coisas dos outros?
b) Estamos tão preocupados com a imagem que os outros tem de nós, com o medo de errar, que ficamos paralisados no agir e no falar, especialmente em público?
c) Mesmo sabendo que vamos engordar ou que a gastrite vai piorar, atacamos com avidez aqueles pratos ou bebidas de que mais gostamos, sem pensar nas conseqüências (que acabam vindo “on line”)?
d) Deixamos passar o tempo na frente da TV, sem conseguir tomar a decisão de ir estudar ou concluir a tarefa que está gritando pelo nosso trabalho?
e) Não conseguimos nos controlar quando ficamos a sós no namoro, sem pensar nas conseqüências psicológicas e materiais de nossas ações?
Em segundo lugar, estar decididos a mudar. Temos medo de mudar?
Quando era pequeno e comecei a andar a cavalo, na Fazenda de meus pais em Avaré, ao mudar do passo ao trote, o incômodo do balanço era tão grande que tive medo do galope, pensando que daí nem conseguiria ficar no cavalo. Só depois da primeira galopada é que percebi que o chacoalhar contínuo na sela diminuía com a natural cadência espaçada do galope.
Ora, há pessoas que ficam, na vida, num eterno trote, imaginando dificuldades tremendas se forem mais ousadas ou generosas no campo das virtudes, achando que não conseguirão viver habitualmente a coragem nas dificuldades, a honestidade nos negócios, a fidelidade matrimonial ou a paciência e o perdão nas relações profissionais ou familiares.
Outros, há, que tem vergonha de mudar, como se sua personalidade estivesse definida desde a mais tenra idade e fosse um demérito reconhecer um defeito e passar a agir de forma diversa. Na verdade, deveríamos receber como um elogio o comentário de algum familiar, colega ou amigo que nos encontrasse depois de muitos anos sem nos ver, dizendo: Como você mudou? (obviamente, se foi para melhor…).
Mais perigoso é o medo de mudar por receio de ficar mal diante do ambiente. Esse é o conformista de que falávamos no começo. Se é isso o que nos impede de mudar, é preciso atacar mais fundo o inimigo, que é o mundanismo, sabendo dar “os nomes aos bois” a não inventar nomes ao que não tem. Em vez do “assumir as próprias fraquezas” como algo natural e invencível, aceitá-las como ponto de partida do esforço de mudança e melhora.
Finalmente, reconhecidos os defeitos, detectados os principais e perdido o medo de mudar, vem aí a luta por mudar, vencendo os defeitos pela aquisição das virtudes opostas:
a) Orgulho e vaidade – humildade;
b) Avareza – generosidade e desprendimento;
c) Luxúria – castidade;
d) Gula – temperança e sobriedade;
e) Preguiça – laboriosidade;
f) Ira – mansidão;
g) Inveja – magnanimidade.
Podemos dizer que o paradigma da luta interior está na luta por viver as virtudes da fortaleza e da temperança: saber enfrentar os sacrifícios necessários e fugir dos prazeres desordenados.
Como se vence a gula? Dizendo não ao que ultrapassa a necessidade no comer. Uma vez e outra, sabendo parar um pouco antes de estarmos plenamente satisfeitos, pois, organicamente, o sinal de satisfação chega ao cérebro um pouco depois da ingestão suficiente de alimentos.
O problema é que queremos permanecer esbeltos sem controlar o garfo! Muitos sonham com o dia em que, através de experimentos genéticos, poder-se-á chegar ao controle de todas as características físicas da pessoa, de tal modo que se chegará ao homem e mulher perfeitos. Mas do que adianta uma aparência simpaticíssima e um temperamento insuportável? A virtude vem de dentro, não de fora. Vem da alma, não do corpo.
Na Copa do Mundo de Futebol de 2010, realizada na África do Sul, ficou conhecida uma nova bola, com características de maior dificuldade de controle: a jabulani, fabricada especialmente pela Adidas. Num paralelismo muito apropriado, houve quem comparasse a barriga do obeso a uma jabulani, alertando a magros e menos magros: Cuidado com a jabulânia! Ou seja, sem luta diária pelo controle do garfo em cada refeição, não há como controlar o crescimento da jabulânia… (nome bem sonoro para a curvatura mais ou menos acentuada da barriga).
Mas se a analogia é esportiva, também leva em conta que não se mantém a forma esbelta sem exercícios físicos. A palavra grega askesis (ascética) significa esforço e exercício, aplicando-se tanto ao corpo quanto à alma, no ideal greco-romano da “mens sana in corpore sano”.
Nesse sentido, o princípio do esforço físico para manter a forma, com sacrifícios e lutas para superar obstáculos e tentações, é o mesmo que se aplica para a aquisição das virtudes morais. Sem esforço não há virtude: para chegar a ser natural o agir moral, tornando-se hábito adquirido, deve haver um inicial esforço para a aquisição dessa boa disposição.
Portanto, em relação à temperança, a receita é a mesma da forma física: constância no controle do garfo e perseverança nas atividades físicas, que combatem o sedentarismo e o comodismo, através de caminhadas, prática de esportes ou academia.
E como se vence a ira? Mordendo a língua e contando até 10 antes de responder, esperando que a racionalidade se imponha antes de falar, pois as feridas abertas por uma palavra ferina demoram a cicatrizar – quando cicatrizam. É preferível falar só quando se deixou esfriar a cabeça, para se dizer apenas o que seja necessário para restabelecer a justiça e esclarecer os fatos.
E a preguiça? Como se combate? Começando habitualmente, um dia e outro, a trabalhar nas tarefas que menos gostamos; permanecendo na mesma tarefa até concluí-la (ou a parte que havíamos fixado para esse dia); levantando-nos imediatamente da cama quando toca o despertador, sem ficar num diálogo interminável com o travesseiro; deixando de navegar a esmo na internet, vendo – sem perceber – as horas passar.
E a luxúria? Bem, podemos lembrar (e “escarmentar em cabeça alheia”) o caso do adultério do Rei Davi, narrado no capítulo 11 do II Livro de Samuel: contemplando Betsabá se banhando no rio, permaneceu em sua “morosa delectatio”, até que o desejo de tê-la para si levou-o a mandar chamá-la ao palácio, dormir com ela e ordenar a morte do marido, colocando-o na frente mais dura de combate. Ao adultério somou um homicídio. Tudo começou com o olhar solto, contemplando o que não lhe convinha. Daí o conselho: “Os olhos! Por eles entram na alma muitas iniquidades. – Quantas experiências como a de Davi!… – Se guardardes a vista, tereis assegurado a guarda do vosso coração” (S. Josemaria Escrivá, “Caminho” – 1999 – São Paulo, 9ª edição, ponto 183).
E a vaidade? Em primeiro lugar, reconhecendo que somos mesmo vaidosos e orgulhosos. Uma boa pauta para percepção do defeito em nós é a que S. Josemaria Escrivá nos apresenta no ponto 263 de “Sulco” (Quadrante – 2005 – São Paulo), com muito realismo:
“Deixa-me que te recorde, entre os outros, alguns sinais evidentes de falta de humildade:
– pensar que o que fazes ou dizes está mais bem feito ou dito do que aquilo que os outros fazem ou dizem;
– querer levar sempre a tua avante;
– discutir sem razão ou – quando a tens – insistir com teimosia e de maus modos;
– dar o teu parecer sem que te peçam, ou sem que a caridade o exija;
– desprezar o ponto de vista dos outros;
– não encarar todos os teus dons e qualidades como emprestados;
– não reconhecer que és indigno de qualquer honra e estima, que não mereces sequer a terra que pisas e as coisas que possuís;
– citar-te a ti mesmo como exemplo nas conversas;
– falar mal de ti mesmo, para que façam bom juízo de ti ou te contradigam;
– desculpar-te quando te repreendem;
– ocultar ao Diretor algumas faltas humilhantes para que não perca o conceito que faz de ti;
– doer-te de que outros sejam mais estimados do que tu;
– negar-te a desempenhar ofícios inferiores;
– procurar ou desejar singularizar-te;
– insinuar na conversa palavras de louvor próprio ou que dêem a entender a tua honradez, o teu engenho ou habilidade, o teu prestígio profissional…;
– envergonhar-te por careceres de certos bens…”
Depois de reconhecer os próprios defeitos e limitações, o caminho para vencer a vaidade e o orgulho é justamente valorizar os demais, como bem o fez o Ministro Lima Teixeira, nesta simpática poesia dedicada a seus colegas (in Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Ano de 1975, LTr – 1976 – São Paulo, p. 104):
“TST GRANDIOSO
Não sei se diga, que é certo
Ou que certo é o argumento:
Pois quanto mais longe, ou de perto,
Não encontro fundamento.
Somos vários magistrados,
E da maior projeção;
Há os que são mais versados
Outros com mais perfeição.
Há os que são tratadistas,
De cátedra transcendental:
E há os que são estilistas
De visão fenomenal!
Há os que são realistas
Dos aspectos cruciais:
Há os que são analistas
dos fenômenos sociais!
Que Tribunal fabuloso!
Tantos são os seus valores…
Parece até assombroso
Conjunção de tais pendores”.
É natural vibrarmos com as instituições às quais pertencemos – uma espécie de orgulho coletivo e desculpável –, pois esse entusiasmo profissional é um bom motor para servirmos melhor à instituição e aos que dela dependem, valorizando o trabalho de todos e de cada um de seus membros.
Enfim, para cada uma das virtudes, o meio de adquiri-la está numa luta interior para vencer, em cada momento, a tendência instintiva ao egoísmo, ao comodismo e à sensualidade. E uma luta esportiva, que sabe não desistir diante das quedas, das derrotas e dos fracassos. Com fair-play, recomeça o combate para, mudando a si mesmo para melhor, possa simultaneamente ir transformando o ambiente.
VII) CONFORMAR O PRÓPRIO AMBIENTE
No fundo, duas são as posturas que podemos ter diante do ambiente cultural, profissional e moral no qual vivemos, trabalhamos e nos divertimos: conformar-nos a ele ou conformá-lo. Deixar-nos arrastar por aquilo que todo mundo diz ou faz – o politicamente correto – ou enfrentar, como o salmão enfrenta a correnteza, os clichês e modismos, para agir como nossa consciência nos diz que devemos agir.
Exemplo paradigmático de não conformismo diante de um ambiente adverso, em que todos se conformam à ideologia dominante ou a aceitam passivamente, é o da jovem alemã Sophie Scholl (09/05/1921-22/02/1943), universitária que, com alguns colegas, tentou mostrar ao mundo que não era aceitável o atropelamento à liberdade e dignidade humana que o regime nazista vinha impondo à Alemanha, e foram pegos divulgando um manifesto na Universidade de Munique. Sua vida é muito bem retratada no livro “Sophie Scholl – The real story of the woman who defied Hitler” (Frank McDonough, The History Press – 2010 – Gloucestershire).
Na versão cinematográfica – “Sophie Scholl – Uma Mulher contra Hitler” (2005), o interrogatório final (a 18/02/1943) a que é submetida, antes de sua condenação e execução, mostra bem o perfil ético, a coragem e as convicções dessa jovem (as falas de Sophie estarão em itálico):
Robert Mohr (Agente da Gestapo): – Café?
Sophie: – Por que quer nos punir?
– Porque é lei e sem lei não há ordem.
– A lei a que se refere protegia a liberdade de expressão antes do Nazismo subir ao poder, em 1933.Quem opina hoje é preso ou condenado a morte. Isso é ordem?
– Só podemos confiar na lei, não importa quem a tenha escrito.
– E na sua consciência?
– Bobagem. Aqui está a lei e aqui está o povo. Como criminalista, devo descobrir se ambos coincidem e se não coincidem encontrar a maçã podre.
– As leis mudam, a consciência não.
– E se todos decidissem o que é certo ou errado individualmente? O que restaria se criminosos derrubassem o Fuhrer? Caos criminal…
– Sem Hitler e seu partido haveria lei e ordem para todo o mundo. Todos estariam livres de atos arbitrários, não só os capachos.
– Como se atreve a fazer comentários aviltantes.
– Aviltante é nos chamar criminosos por causa de alguns panfletos. Só tentamos convencer as pessoas com palavras.
– Você e seu grupo abusaram de seus privilégios. Estudam em tempo de guerra com nosso dinheiro. Eu era alfaiate no tempo da democracia. Sabe o que me tornou um policial? A ocupação francesa, não a democracia alemã. Sem o movimento seria um policial do interior. Aquele repulsivo tratado de Versalhes… Inflação, desemprego, pobreza. Hitler acabou com tudo isso.
– E levou o país para uma guerra sangrenta onde todos morrem em vão.
– Uma luta heróica. Você recebe os mesmos cupons que as pessoas que combatem. Você está em melhor posição que pessoas como eu. Você não precisa fazer isto. Como ousa elevar a voz? O Fuhrer e o povo protegem você.
– Aqui, no palácio Wilttelsbach? Prendendo minha família?
– Estamos libertando a Europa da plutocracia e do bolchevismo. Lutamos pela Alemanha livre. Nunca seremos ocupados.
– Até a guerra acabar e as tropas estrangeiras invadirem e o mundo apontar para nós com o dedo por tolerar Hitler.
– O que dirá quando a vitória final for nossa? Quando a liberdade e a prosperidade florescerem? Que essa era a sua visão quando se afiliou à BDM?
– Na Alemanha todos deixaram de acreditar em Hitler.
– E se eu estiver certo? Você é protestante?
– Sim.
– A Igreja também exige devoção, mesmo se tiver dúvidas?
– As pessoas vão à igreja voluntariamente. Hitler e o nazismo não oferecem outra opção.
– Porque se arrisca tanto por falsos ideais?
– Porque tenho consciência.
– Você é tão dotada… Porque não pensa como nós. Liberdade, honra, prosperidade. Um governo responsável. Esta é a nossa convicção.
– Não abriu os olhos com o terrível banho de sangue conduzido pelo nazismo em nome da liberdade e da honra? A Alemanha cairá em desgraça se a juventude não derrubar Hitler e construir uma nova Europa intelectual.
– A nova Europa só poderá ser nacional socialista.
– E se o Fuhrer for louco? Por exemplo, o ódio racial. Tivemos um professor judeu em Ulm. Ele ficou diante de uma tropa das SS e todos cuspiram no seu rosto. Naquela noite desapareceu. Como muitos em Munique. Supostamente foram trabalhar na Europa Oriental.
– Acredita nisso. Bobagem. Judeus são imigrantes.
– Soldados vindos do Leste falam de campos de extermínio. Hitler quer exterminar todos os judeus europeus. Ele pregava essa loucura há 20 anos. Como pode acreditar que os judeus são diferentes de nós?
– Essa gente trouxe infortúnio. Você está confusa, não tem ideia. Teve educação errada. Eu a teria educado diferente.
– Tem ideia do meu choque quando descobri que os nazistas eliminavam crianças deficientes mentais? Amigos de minha mãe nos contaram isso. Caminhões vinham recolher as crianças no hospital. As outras crianças perguntavam para onde estavam indo. “Para o céu”, diziam as enfermeiras. E as crianças subiam no caminhão cantando. Acha que não fui bem educada porque sinto pena delas?
– Eram vida inúteis. Foi treinada para ser enfermeira. Viu pessoas mentalmente doentes.
– Sim, por isso eu sei. Ninguém escapa do julgamento divino. Ninguém sabe o que passa na mente de um deficiente mental. Quanta sabedoria pode vir do sofrimento. Toda vida é preciosa.
– Deve entender que nasceu uma nova era. O que diz não tem nada a ver com a realidade.
– É claro que tem. Com decência, moral e Deus.
– Deus? Deus não existe. Não é verdade que confiou no seu irmão, que acha certo o que ele fez? Que você participou disso. Não devemos por isso no relatório.
– Não, porque é errado.
– Tenho um filho um ano mais novo do que você. Ele já teve ideias malucas. Hoje está na frente oriental porque sabe que tem um dever a cumprir.
– Acredita na vitória final?
– Se tivesse considerado tudo não teria se envolvido nisto. Sua vida está em jogo. A título de protocolo pergunto a você: Após nossas conversas considera que as ações com seu irmão podem ser vistas como um crime contra a sociedade e, em particular, contra as tropas em combate e que devem ser severamente condenadas?
– Não, do meu ponto de vista.
– Admitindo o seu erro não estaria traindo seu irmão.
– Mas trairia o meu ideal. Eu faria tudo de novo. Você está errado, não eu. Ainda acredito que agi no melhor interesse meu povo. Não me arrependo. Aceitarei as consequências.
Impressiona a coragem da jovem estudante diante do investigador da Gestapo. Temas como a liberdade de consciência e o direito à vida, diante de um regime totalitário e promotor da eugenia, são colocados em pauta nesse diálogo, que pode ser um retrato de tantas discussões em rodas de colegas sobre questões da atualidade como as leis do aborto, da homofobia ou da eutanásia, que se procuram impor à sociedade.
O grupo de resistência sem violência de Sophie Scholl, chamado “Rosa Branca”, do qual participava também seu irmão (executado com ela), poderia parecer uma “gota no oceano”, mas representou muito: o próprio Robert Mohr, como diria posteriormente, ficou muito impressionado com a firmeza de convicções da jovem, sua força argumentativa e exemplo de fortaleza diante da perspectiva do sofrimento e da morte. Sua vida e palavras, ainda que no pequeno ambiente de seus colegas da Universidade de Munique, dos agentes que a prenderam e interrogaram, e da Corte Popular que a julgou, condenou e executou no mesmo dia (!!!), impactaram em todos, com maior ou menor profundidade, conforme a abertura maior ou menor à força dos argumentos e da razão.
No final do filme se conta que cópias do manifesto que Sophie e seu irmão haviam distribuído na Universidade de Munique foram repassadas para a Escandinávia e, dali para a Inglaterra, onde os Aliados imprimiram milhões de cópias do “Manifesto dos Estudantes de Munique” e despejaram de avião sobre as cidades alemãs.
Esse exemplo de coerência entre convicções e vida, capaz de transformar o meio em que vivemos, não é e nem será nunca isolado. O potencial de “sinergia” que pode gerar alguém que, não concordando com a pressão social rumo ao hedonismo moral, fisiologismo político e egocentrismo cultural, tenha a coragem de dizer que não segue essa cartilha, faz com que muitos repensem seus valores.
No fundo, cada um de nós poderia escrever, mas num sentido diametralmente oposto à cartilha de Hitler, o seu “Mein Kampf” (Minha Luta), contando suas lutas interiores para vencer seus defeitos e enfrentar um ambiente hostil aos ideais de virtude e valores morais, sonhando com um mundo mais saudável, solidário e justo. Na prática, aqueles que não renunciam a esses ideais e vão transformando suas existências num serviço generoso ao próximo estão escrevendo esse livro com suas vidas.
Em suma, com a virtude da coragem e com a virtude da temperança estaremos em condições de arrostar o ambiente adverso à moral e ao direito, seguindo a canção de Milton Nascimento, sendo, pelo exemplo de conduta reta e honesta, esperança e alento para aqueles que também não se sentem bem num ambiente corrompido e corruptor e desejam uma mudança de ares.