Atenção aos possíveis spoilers!
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Pairando sobre a porta de entrada [da casa] há uma enorme pintura contemporânea de São Jorge e o Dragão, do pintor russo Viktor Safonkin. A originalidade do dragão de Safonkin: tudo cauda e sem corpo, enrolado em volta do cavalo de São Jorge como uma enguia gigante. Dragões, ele [Del Toro] me disse, eram seus “animais mitológicos favoritos”, e ele finalmente chegou ao projeto de um: Smaug, de “O Hobbit”, de JRR Tolkien.
Del Toro, com sua estética ornamentada, não era a escolha mais óbvia para acompanhar [Peter] Jackson, que em sua trilogia tinha colocado personagens mitológicos de Tolkien em paisagens realistas. Como Del Toro disse, Jackson teve de reconstruir a batalha de Gondor com a mesma exatidão que a Batalha de Gallipoli. Del Toro descreveu seu próprio estilo como mais “operístico”. Falando de Tolkien, disse: “eu nunca fui um fã louco da trilogia do Anel. O Hobbit, acrescentou, é muito menos ‘preto-e- branco’. Os monstros não são apenas maus. São charmosos, engraçados, sedutores. Smaug é um cara incrivelmente inteligente”. Del Toro depois disse que ele, inevitavelmente, impôs a sua sensibilidade sobre o material original: “É como se casar com uma viúva. Você tenta ser respeitoso com a memória do marido morto, mas vem a noite de sábado e… bam!”
Ele me disse que em cada um de seus notebooks há “um projeto de arte em si”. Ele abriu o notebook atual, que inclui esboços de “O Hobbit”. Fiz uma pausa no que parecia ser uma imagem de um machado duplo medieval. “Isso é Smaug”, Del Toro disse. É uma visão de cima: “Olha, ele é como um machado voando”. Del Toro acredita que monstros devem aparecer transformados quando vistos de um ângulo novo, para que o público não perca o sentimento de temor. Definir silhuetas é o primeiro passo no projeto de um bom monstro, disse. “Então você começa a jogar com o movimento. O próximo elemento do projeto é a cor. E então, finalmente, chega-se aos detalhes. Um monte de gente faz o caminho contrário, e vai acumulando um monte de detalhes”.
Atentei-me para uma imagem lateral do dragão. O corpo de Smaug, como Del Toro tinha imaginado, era anormalmente longo e fino. Os ossos de suas asas são ligados a parte dorsal do corpo, a lateral, dando a criatura uma suavidade escorregadia em toda a sua barriga. “É um pouco mais parecido com uma cobra”, disse ele. Pensei em sua grande pintura russa. Del Toro tinha escrito que a besta voaria “como um pássaro aquático”.
As pernas dianteiras de Smaug pareciam desproporcionalmente pequenas, como os de um T. Rex. Isso permitiria ao dragão assumir um aspecto diferente em close-up: a câmera poderia capturar os gestos e expressões faciais em um quadro fechado, evitando distrações com as asas e cauda. “Smaug é um dragão volúvel e manipulador; uma personalidade avassaladora”, é comoTolkien o descreve. “Os olhos de Smaug” Del Toro acrescentou, “são escondidos”. Isso dá à criatura um drama adicional quando Bilbo o acorda de seu sono.
Del Toro queria ser criativo com o posicionamento das asas. “Desenhos de dragões podem ser divididos basicamente em dois tipos”, explicou ele em um ponto. “A maioria têm asas presas em cima dos membros dianteiros. A outra variação é a anatomicamente impossível criatura de seis membros”, ou seja, de quatro pernas como um cavalo, com dois outros braços alados. “Mas não há grande criatura na Terra que tenha seis membros!” Ele fica frustrado com desenhos de dragões que seguem estas fórmulas. No computador há um modelo descartado. “Agora, isso é um dragão que você já viu antes”, disse ele. “Eu só coloquei essas pernas de ‘samurai’. Mas isso não funciona para mim”.
O design de produção de Del Toro para “O Hobbit” parecia ter a intenção de evitar as coisas que os espectadores tinham visto antes. Enquanto que as paisagens de Peter Jackson foram enquadradas num céu azul-celeste da Nova Zelândia, Del Toro planejou empregar “a substituição do céu” digitalmente para um com “efeito de pintura”. Em vez de filmar em uma floresta totalmente real, ele queria filmar em meio a árvores artificiais que imitariam os “desenhos no livro de Tolkien”. Também vi muitas criaturas que não existem no livro de Tolkien, como um troll blindado que se enrola numa bola de placas de metal. Del Toro disse que seria chato fazer uma adaptação literal e servil do livro.
Mesmo os personagens principais de “O Hobbit” têm a marca Del Toro. Em um esboço, o anão Thorin é representado na batalha, e usa um capacete surreal que parecia brotar chifres dele. “Eles são como espinhos, seu nome é Thorin, afinal”, disse.
Ele estava convencido de que havia deixado “O Hobbit” por vontade própria, mas sua fala parecia cuidadosa. “O aspecto visual estava sob o meu controle”, disse. “Não houve interferência nessa parte da criação”. Em colaboração com Jackson e dois roteiristas [Fran Walsh e Felippa Boyens], Del Toro tinha terminado os projetos para as Partes 1 e 2. Mas as revisões finais ainda deveriam ser feitas. No entanto, durante a revisão final, divergências profundas surgiram entre Del Toro e Jackson sobre a escolha de cenas que deveriam ficar. “Eu saí antes de entrarmos em um impasse”, disse o diretor. Perguntei-lhe se tinha havido uma tensão criativa. “Na Weta, disse ele, o atraso da produção deixou todos ansiosos, e não podia distinguir entre uma tensão real e uma tensão artificial.”
Revelou que houve desconforto sobre sua concepção de Smaug. “Eu sei que isso não era algo popular”, disse ele. Admitiu que chegou com várias inovações audaciosas. “Oitocentos anos desenhando dragões”, referindo-se aos chineses, “e ninguém pensou isso!”, Mas acrescentou que ele não poderia discutir, porque o projeto não era uma propriedade intelectual sua. “Eu nunca trabalhei com muito segredo”, ele disse sobre seu tempo na Weta.
Agora, a parte mais difícil é “fazer às pazes com o fato de que alguém vai ter controle de suas criaturas, o seu figurino, e alterá-lo ou rejeitá-lo, ou usá-lo. Todas as opções são igualmente dolorosas”, disse e acrescentou: “As coisas que eu deixei para trás são absolutamente lindas. Eu sou absolutamente apaixonado por elas”.
De repente, ele ficou animado, acenando com as mãos no ar como um maestro: “Nós criamos uma exposição grande nas últimas semanas, em preparação para uma visita ao estúdio. Eu tinha uma palheta de cores do filme: havia passagens em tons verdes, azuis, carmesim, uma passagem dourada. Em Tolkien, há uma passagem clara de estação para outono, inverno, verão e primavera na viagem. E eu pensei, ‘eu não posso simplesmente ficar em quatro movimentos em dois filmes. Vai tornar-se monótono’. Então pensei em organizar o filme dessa forma, e você tem a sensação de entrar em oito estações. Assim, uma determinada parte do filme foi feita em preto e verde, uma determinada parte em vermelho e dourado, e quando colocamos tudo em uma grande sala, nós tínhamos todos os figurinos, os adereços, todos os códigos de cores, arte e etc. . Quando você olhava, via que lindo arco-íris era, e você poderia entender que havia uma bela transição”. Seu esquema, provavelmente, será abandonado, ele disse mais tarde: “Não há muito mais o que fazer. Isso é o que sinto”.
Ele me lembrou que o subtítulo de “O Hobbit” é “There and Back Again” [Lá e de Volta Outra Vez], e disse: “houve um momento no roteiro, e eu não sei se ele vai sobreviver ou não, onde ficou claro que o objetivo da viagem era para Bilbo saber que o que ele quer, na verdade, é estar em casa, ou seja, ‘eu sei qual o meu lugar no mundo’. Para mim, minha viagem à Nova Zelândia foi assim”.
Fonte: The New Yorker