A gente percebe que está ficando velho e meio escravizado quando não consegue mais vomitar de imediato uma resenha gigantesca do filme tolkieniano que acabou de ver na pré-estreia de imprensa. Lembro que eu escrevia páginas e mais páginas de uma hora pra outra e tinha uma memória fotográfica de cada cena na época em que a Saga do Anel estreou nos cinemas (tinha gente que me zoava dizendo que eu tinha passado a sessão de cinema anotando tudo, o que definitivamente eu não fazia).
Acho que não vou conseguir a mesma façanha com “O Hobbit”, mas vou tentar chegar perto. Antes de mais nada, quero deixar claro que a resenha está REPLETA de SPOILERS. Muitos SPOILERS mesmo. Cheinha. Resenha sem SPOILERS não tem graça. Então, se você ainda não viu o filme, só leia o próximo parágrafo e depois pare de ler.
Bem, arrogando-me o direito de cagar regra um pouquinho e dar meu veredicto logo de cara: o filme não tem o impacto de assistir “A Sociedade do Anel” em 2001 pela primeira vez, claro. Exagera na ação desnecessária e dá umas escorregadas de caracterização dos personagens e de humor. Não tem, nem de longe, o tom mais infantil e inocente que predomina nos primeiros capítulos do livro. Mas ainda assim é um filme para os fãs, que captura uma quantidade impressionante de informações e texturas sobre o mundo de Tolkien e dá linda forma visual a elas. Ademais, as canções, Bilbo, Gollum e até as pontinhas de Smaug valem cada minuto. E a coisa só promete melhorar daqui pra frente. O filme é arrastado? Só nas cenas de batalha, paradoxalmente. Nas passagens mais “pensadas”, o tempo te ajuda a sentir os personagens, o cenário e a história. E isso é uma grande virtude.
OK, agora vamos aos SPOILERS.
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A coisa começa em Bolsão, pouco antes da Festa Muito Esperada de “A Sociedade do Anel”. O narrador, claro, é Bilbo (Ian Holm, como sempre ótimo). Vemos o velho hobbit escrevendo o Livro Vermelho e um simpático desenho dele quando jovem retratando, é claro, Martin Freeman, nosso “novo” Bilbo. Como todo mundo já viu nos trailers, Bilbo está contando a história para Frodo (Elijah Wood também aparece rapidamente, em mais de uma cena, o que me deu uma sensação de estranheza porque, afinal, o Elijah está mais velho, com uma cara bem diferente).
De qualquer jeito, Bilbo começa sua história contando sobre o reino anão de Erebor e o reino humano de Valle. As imagens são de deixar qualquer um zonzo. Com uma cara meio de Leste Europeu ou Rússia dos czares, a junção dos dois reinos é lindíssima. Vemos, por exemplo, a linhagem dos anões – o rei Thrór, seu herdeiro Thráin e, é claro, o então jovem príncipe Thorin (que ainda não era o Escudo de Carvalho).
Fica muito clara a paixão dos anões pela estrutura da terra, pelos metais e pelas pedras preciosas, aquela coisa #Aulefeelings que a gente conhece em “O Silmarillion”. E uma das cenas mais bonitas pra mostrar isso é o momento em que a Pedra Arken é encontrada — se um dia filmarem o Silma, é mais ou menos esse o look que uma Silmaril deve ter — embora a Pedra Arken NÃO seja uma Silmaril, claro.
Algumas coisas desnecessárias, porém: mostrarem o Thranduil inclinando a cabeça para o Thrór, como se fosse vassalo dele; e a ideia de que o Thrór “passou a achar que governava por direito divino”. Hein?
OK, vamos em frente. A maneira como resolvem visualmente o grande ataque de Smaug é genial, a começar pela delicada cena de uma pipa com forma de dragão antes da pancadaria. Não vemos o bicho em momento nenhum, só seu fogo e, em determinada cena, suas patas. Os pobres anões lutam bravamente, mas são detonados. E, em mais uma cena desnecessária, Thorin vê Thranduil e seu exército ao longe — desculpa, a Floresta das Trevas não fica na esquina de Erebor… — e pede ajuda. Thranduil, montado num cervo (!?), dá as costas. Essa é uma tendência do filme como um todo: tentar dar um up na inimizade entre elfos e anões sempre que possível.
Voltamos para o Condado e para o encontro fatídico entre Bilbo e Gandalf. É muito legal ver como o texto original é engraçadinho — a conversa sobre os vários sentidos da palavra “bom-dia”, o histórico familiar de Bilbo e o medão dele de aventuras etc.
Também é preciso dar muito crédito ao filme por fazer o que quase não aconteceu na Saga do Anel: realmente incorporar as canções do livro na trama. Eu fiquei cantando comigo várias vezes “that’s what Bilbo Baggins hates!” conforme os anões arrumavam a louça cantando. E a canção da Montanha Solitária, como já sabemos pelo trailer, é de deixar qualquer um arrepiado.
Falando sobre diferenças, e não semelhanças: Bilbo na verdade se recusa, inicialmente, a partir com os anões, e só muda de ideia de manhã, quando eles foram embora. Acho que OK, é só uma maneira mais “for dummies” de mostrar o medo e a indecisão dele.
A cena dos trolls é um bocado diferente também — nada de carteira falante, o que, cá entre nós, era esperado –, e começa aqui a tendência meio irritante de tentar mostrar os anões como superguerreiros o tempo todo, mas o humor funciona bem, em especial quando Bilbo tenta convencer os trolls a não comer os anões porque eles têm parasitas.
Enquanto nossos heróis continuam sua jornada rumo às montanhas, um parêntese: Radagast. Não é nem que seja um personagem de fazer você passar vergonha. É só meio… bobo. Desnecessário. OK, ele faz massagem cardíaca em ouriços de CGI, e isso é fofinho, e eu já sabia do tal trenó puxado por coelhos – “coelhos de Rhosgobel”, diz Radagast -, mas sei lá, a troco de quê?
Outra coisa que não me parece grande ideia é mostrar a transformação da Grande Floresta Verde em Floresta das Trevas “em tempo real”, durante a jornada dos anões. Isso tira um pouco do peso de estrutura histórica de milhares de anos que pra mim é um dos grandes charmes do legendarium da Terra-média. De novo, é muito for dummies a coisa. Pelo menos, ao falar com Gandalf sobre o mal que avança na floresta, Radagast diz que as aranhas parecem ser “filhas de Ungoliant”, o que é bacana.
Também acho que funcionou apenas mais ou menos a ideia de fazer com que o grande inimigo do primeiro filme fosse Azog, o Orc Fodão Albino. A perseguição e os combates constantes, bem como o flashback da batalha de Azanulbizar – a grande guerra entre anões e orcs na qual Thorin ganhou seu apelido ao usar um tronco de árvore como escudo –, até conseguem mostrar a antiga inimizade entre orcs e anões, mas acabam se tornando cansativos, e Azog, apesar de ser feioso e fortão, simplesmente não impõe muito respeito como vilão.
Ponto positivo em meio à correria: a cena em que os companheiros precisam se esconder numa “passagem secreta” que leva a Valfenda vale porque os anões são salvos pela “cavalaria élfica” de Elrond, e ela dá uma ideia muito boa, na minha opinião, de como eram os cavaleiros élficos da Primeira Era em Ard-galen, flechando os orcs de Morgoth.
A Valfenda do filme é aquela mesma que já conhecemos do das: linda e um tanto afrescalhada. Elrond até que se mostra um bom anfitrião para os anões. As cenas em que ele conta para os anões o nome das espadas Orcrist e Glamdring, bem como o momento da leitura das runas especiais do mapa de Thrór, ficaram muito bem feitas.
E, claro, temos Galadriel. Ela está bem mais bonita e bem menos creepy do que em “A Sociedade do Anel”, então ponto para o novo filme nesse sentido. Já a reunião do Conselho Branco é menos tosca que o Conselho de Elrond em “A Sociedade do Anel”, mas incomoda um pouco a ideia de que o Gandalf precisava da permissão do Saruman pra organizar a demanda de Erebor. E o papo sobre o Rei Bruxo ter sido enterrado não sei onde… alguém entendeu aquilo? Rápida nota pros fãs do livro: bacana o aspone do Elrond se chamar Lindir, não?
Seguindo em frente: a passagem das montanhas conta com uma versão absurdamente elaborada da batalha entre os gigantes descrita rapidinho no livro. Os anões simplesmente se veem presos entre os JOELHOS dos gigantes, que parecem Transformers de pedra dando porrada uns nos outros. Achei bobo, mas é questão de gosto, certo?
Mas tudo bem, isso é compensado com a chegada de Bilbo e dos anões à cidade subterrânea dos orcs e, finalmente, ao encontro entre Bilbo e Gollum. A coisa começa de um jeito assustador porque Bilbo acaba espiando, de longe, nosso preciossso amigo basicamente abatendo um orc pra comer no jantar, o que dá um certo medo dele.
Mas o jogo de adivinhas é simplesmente perfeito, até porque o texto original de Tolkien foi usado quase na sua totalidade. Que eu me lembre, só as adivinhas do girassol e a do homem, gato e peixe (four-legs, no-legs etc.) ficaram de fora – corrijam-me se eu estiver errado. E o “salto no escuro” – Bilbo, afinal, decidindo poupar a vida de Gollum – ficou genial, talvez um dos únicos pontos de sutileza num filme que não é lá muito sutil. Até o detalhe dos botõezinhos de latão caindo da jaqueta de Bilbo aparece.
Ufa – finalmente chegamos ao clímax da história. A batalha nas árvores, o fogo assustando os wargs etc. ficou bem coreografada. Thorin acaba tomando muita porrada num mano a mano com Azog, cena que em si é até bacana e emocionante. Eu só teria uma crítica mais ou menos séria a fazer: embora seja legal ver Bilbo arriscando sua vida para defender o nobre líder anão, parece-me cedo demais dar uma personalidade tão heroica ao pequeno hobbit. Por que não “guardar” isso para o confronto com as aranhas? Mas OK, é emocionante. E, quando as Águias chegam pela primeira vez, é de tirar o fôlego, certamente a cena mais caprichada envolvendo nossos amigos alados já feita, deixando no chinelo até as da Saga do Anel. Tudo coroado com o abraço de Thorin em Bilbo, reconhecendo o valor do hobbit, que me deixou emocionado.
Chave de ouro: o olhão de Smaug aparecendo debaixo do tesouro dos anões. Chega logo, dezembro de 2013!