Conto inédito e inacabado de J. R. R. Tolkien foi lançado no Reino Unido nesta última quinta-feira (27/08/15) e aborda o universo fantástico da mitologia finlandesa que tanto apaixonou e inspirou o criador da Terra-média.
Tolkien descobriu a lenda de Kullervo ainda menino, quando frequentava a escola em Birmingham. Pouco antes de terminar seus estudos primários, ele leu a obra mitológica finlandesa Kalevala, que entre outras tramas traz a de Kullervo.
“Ele foi muito influenciado por toda aquela mitologia. Em cartas, ele se mostrava entusiasmado com esta ‘história muito boa'”, disse à BBC Verlyn Flieger, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, que editou o mais novo e desconhecido manuscrito de Tolkien.
Ele começou a escrever a sua própria versão do mito finlandês ao entrar na universidade, em Oxford, no ano seguinte. Curiosamente, após trabalhar nela por alguns meses, a deixou de lado. O manuscrito de cerca de 26 páginas termina com uma frase inacabada.
“Ele tinha acabado de chegar ao clímax, à cena mais dramática, e ali parou. Não há sequer um ponto final ou qualquer tipo de continuação. Só as palavras ‘a sua pressa era tão terrível’. Não sabemos por que ele não o concluiu”, disse Flieger.
Inacabado, o manuscrito passou quase 50 anos praticamente esquecido em uma estante da biblioteca Bodleian, de Oxford. Tolkien passou os anos seguintes se dedicando as suas próprias línguas élficas e dando forma a sua Terra-média. Isso tudo no tempo livre entre as suas atividades como professor de anglo-saxão na universidade.
A História de Kullervo é uma das 50 canções no épico Kalevala, uma obra que narra em 22.795 versos as aventuras de Sampo, um objeto mágico que confere poderes mágicos a quem o possui. Muitos elementos da narrativa estão nos escritos de Tolkien, de O Silmarillion ao O Senhor dos Anéis, como objetos mágicos poderosos, incesto e heróis órfãos que saem em busca de aventuras.
“Kullervo é a história que deu origem ao Hamlet, de Shakespeare – um príncipe que lança uma terrível vingança contra o tio que assassinara o seu pai, o rei. É provável que Tolkien soubesse que Shakespeare havia se inspirado nela”, afirma Verlyn Flieger.
No livro O Silmarillion (iniciado em 1914, mas publicado postumamente em 1973), Tolkien transforma Kullervo em Turin Turambar, o seu herói guerreiro. Já os poemas contidos na Kalevala foram colhidos por um médico que percorreu a região de Karelia para registrar a tradição oral da Finlândia. Os mitos se tornaram um importante símbolo da identidade nacional finlandesa durante os séculos em que o país foi dominado pela Suécia.
“Tolkien gostava do fato de se tratar de um mito nacional. Ele queria que a Inglaterra tivesse algo parecido. A Grã-Bretanha tem histórias dos celtas, mas a Inglaterra não preservou uma mitologia. Com O Senhor dos Anéis, ele queria criar uma Kalevala para a Inglaterra”, afirmou um dos biógrafos de Tolkien, John Garth, da universidade americana de Nevada.
A influência dos mitos finlandeses foi tão grande que Tolkien aparentemente se dedicou a aprender o difícil idioma, emprestando um livro sobre a gramática finlandesa diversas vezes de uma biblioteca da universidade.
A professora de finlandês Riita-Liisa Valijarvi, da Universidade College London, diz acreditar que o interesse pode ser visto na língua dos elfos criada por Tolkien, mais precisamente a língua élfica Quenya.“O sistema de sons é muito fácil, muito básico, e foi isso que inspirou o élfico”, diz Valijarvi.
Tolkien teria ficado intrigado com os longos sons de vogais em finlandês e com o uso de trema. Frases em élfico como “Mindon Eldalieva” (“As Imponentes Torres do Povo Élfico, em tradução livre) e “Oron Oiolosse” (Pico da Neve Eterna) usam tanto sons quanto o estilo da língua.
Para Tolkien, a língua inventada veio antes da terra em que ela teria sido falada, a Terra-média, segundo Flieger. “Com A História de Kullervo, Tolkien se deu conta de que língua, cultura e mitologia são indissociavelmente relacionados. Ele criara um idioma, então inventou uma mitologia.”
Mas a inspiração de Tolkien não se limitou a fontes finlandesas. Ele também se inspirou em imagens românticas medievais, paisagens rurais do País de Gales, a mitologia do Rei Arthur e nas próprias experiências na Batalha de Somme, entre julho e novembro de 1916.
Porém, Verlyn Flieger diz que o aspecto mais finlandês da obra de Tolkien é o clima. Assim, entre as influências finlandesas mais marcantes na obra de Tolkien estaria o pessimismo.
“Há uma veia profunda de tragédia e pessimismo em todos os livros, mesmo em O Hobbit, certamente em Senhor dos Anéis. A História de Kullervo é, sem dúvida, o conto mais sombrio que ele escreveu. É a primeira vez que podemos testemunhar este lado sinistro.”
A editora Martins Fontes lançará A História de Kullervo no Brasil, com previsão para o fim de 2016. Já para o fim deste ano, a editora prepara outros dois títulos de J. R. R. Tolkien, Ferreiro de Bosque Grande (Smith of Wootton Major) e Beowulf: tradução e comentários.