A treta sobre o uso de termos como Orques e Gobelins nas novas edições da obra de Tolkien, publicadas pela editora HarperCollins Brasil, voltou com toda a força nos últimos dias. Eduardo Oliferr, do site Tolkien Brasil, que já tinha escrito uma série monumental (embora profundamente equivocada; stay tuned) de artigos sobre o tema condenando as novas traduções, iniciou uma verdadeira campanha em sua página do Facebook, conclamando outros fãs a manifestar sua contrariedade e praticamente exigindo que a editora altere os termos. Há uma ameaça mal-disfarçada de boicote no ar.
Bem, como vocês sabem, eu sou parte interessada nessa história. Sou o tradutor de A Queda de Gondolin, O Silmarillion e O Hobbit e membro do Conselho de Tradução da HarperCollins Brasil junto com os colegas tradutores Gabriel Brum (também aqui da Valinor) e Ronald Kyrmse. Creio firmemente, porém, que temos argumentos muito bons do nosso lado. E me parece claríssimo que a análise feita pelo Eduardo é parcial, enviesada e, em última instância, errada. Abaixo, explico o porquê disso ponto a ponto, aproveitando para citar várias críticas ou dúvidas das pessoas que estão atacando as novas traduções.
1)“Tolkien odiava/não aceitava adaptações fonéticas de qualquer tipo nos termos de suas obras”
Isso é, no máximo, sendo muito generoso, uma meia-verdade. O problema é tomar como verdade absoluta uma “fotografia” de UM momento específico citado nas Cartas de Tolkien, nos anos 1950, e extrapolar isso pra todos os lugares e todas as épocas em que foram feitas traduções da obra tolkieniana.
Não sei se vocês sabem, mas Tolkien era… gente. Um ser humano, que mudava de ideia, negociava, avançava e recuava, esquecia as coisas. Isso tem de ser levado em consideração.
Sim, Tolkien ficou chocado quando tradutores holandeses e suecos, nos anos 1950, resolveram traduzir ou adaptar a nomenclatura inglesa do Condado e dos nomes dos hobbits. A primeira reação dele foi vetar tudo, e aí teremos edições totalmente anglicizadas por aí. Mas lentamente ele foi levando em consideração que suas obras são, em tese, supostas traduções de manuscritos antigos em línguas que não têm nada a ver com o inglês, e que, portanto, tudo o que está em inglês – segundo essa teoria – seria “traduzível” ou adaptável foneticamente, em alguma medida.
Ele continuou meio infeliz com a ideia num nível visceral, mas sabia que era o certo a fazer.
E ele próprio sugere a possibilidade de adaptações ortográficas e fonéticas na Nomenclatura de O Senhor dos Anéis, documento que preparou para os tradutores nos anos 1960. Dois exemplos claros são os nomes Sharkey (o apelido de Saruman, traduzido como Charcote na edição da Martins Fontes) e Maggot, sobrenome do fazendeiro Magote.
Sobre Sharkey, Tolkien escreve: “A palavra, portanto, com uma modificação de ortografia para se adequar à LT [língua de tradução]; a alteração do sufixo diminutivo e quase afetuoso –ey para se adequar à LT também seria adequada”. Daí “Charcote” (a terminação lembra “mascote”, “filhote” em português).
Eis um trecho do verbete sobre Maggot: “A ideia é que seja um nome ‘sem significado’ (…) provavelmente é melhor deixá-lo intacto, embora alguma assimilação ao estilo da LT também fosse adequada”. Isso explica a remoção do “g” duplo e a vogal no final em “Magote”.
(Aliás, notem o “provavelmente”. Tolkien sabia que o trabalho de tradução comporta incertezas e soluções que variam – diferentemente de alguns de seus fãs…)
2)Mas ele jamais permitiria esse tipo de coisa com as palavras mais importantes de sua obra!!!
Errado. Um dos volumes da obra “The J.R.R. Tolkien Companion & Guide”, obra de referência organizada por Christina Scull e Wayne Hammond, mostra Tolkien totalmente aberto a negociar mudanças sutis e mesmo brutais para o termo “hobbit”. Sim, “hobbit”.
Em 1962, a editora Fabril, de Buenos Aires, estava negociando a publicação de uma tradução de O Hobbit, e Tolkien disse o seguinte: “Numa língua latina, o termo ‘hobbits’ parece horroroso e, se eu tivesse sido consultado antes, teria concordado imediatamente com alguma naturalização da forma: p. ex. ‘hobitos’, que combina melhor com ‘elfos’, palavra adotada há muito, além da boa sorte de conter o sufixo normal diminutivo do espanhol [-ito, no caso].”
A editora chegou a propor ‘jobitos’, uma vez que, como em português, o “h” do espanhol é mudo, enquanto o “j” do castelhano é aspirado. Tolkien disse que preferia “hobitos” e acrescentou que muitos hobbits provavelmente abandonavam o “h” aspirado no começo das palavras, tal como os camponeses da Inglaterra. Ou seja, alguns hobbits diziam ser “óbits”!
Em outra negociação, desta vez em 1968, com a editora francesa Editions Stock, a empresa propôs alterar “hobbit” para “hopin” porque “hobbit” parecia um palavrão francês (eles não dizem qual). Tolkien fez birra, jogou-se no chão e chamou os franceses de bobos, feios e chatos. Né?
Não. Tolkien embarcou na ideia.
“De qualquer modo, ‘hopin’ me parece uma solução apropriada e engenhosa: ‘hopin’ está para ‘lapin’ [“coelho” em francês] assim como ‘hobbit’ está para ‘rabbit’ [“coelho” em inglês].” Para quem não se lembra, essa comparação entre hobbits e coelhos aparece várias vezes no livro. Ele só pediu para os ilustradores não desenharem Bilbo com cara de coelho por causa disso.
Mas fiquem tranquilos – estamos sendo conservadores e não vamos mexer em “hobbit”. Mais conservadores que o próprio Tolkien, pelo visto…
3)Ah, mas nenhuma tradução europeia acabou seguindo essas ideias. Dois grandes especialistas em Tolkien também são contra elas. Vocês querem saber mais que eles?
Verdadeiro, porém irrelevante. Esse raciocínio parte de uma visão binária: se a nossa escolha de tradução é boa, a deles é ruim, e vice-versa.
Bom, em tradução isso é relativamente raro. A não ser que a gente estivesse errando o significado ou o tom de uma palavra (trocando um termo formal por gíria, por exemplo), não existe 100% errado ou certo nessa área. O que existe são ESCOLHAS que podem ser defensáveis ou não, por diferentes motivos.
Manter o termo original é defensável? Totalmente. Ligeiras adaptações ao estilo da língua de tradução são defensáveis? A resposta, como o próprio Tolkien deixou entrever, também é SIM.
Ah, e só pra arrematar, isso é, no fundo, argumento de autoridade. Ou seja, uma falácia lógica.
4)Vocês não estão traduzindo, estão só inventando palavra!
Bom, não sei se vocês sabem, mas palavras são inventadas o tempo todo. Tipo “futebol”, “upar”, e “shippar”. Isso normalmente acontece quando a língua de tradução não tem equivalentes considerados precisos para o termo designado na chamada língua de partida (o idioma original).
“Duendes”, em português, são entidades com associações fofinhas e naturebas que não dão conta dos “goblins” de Tolkien – daí a opção por “gobelim/gobelins”. Quanto a “Orc”, nunca tivemos uma palavra que sequer se aproximasse em sentido ou tom no nosso idioma.
A opção mais lógica é abraçá-las como neologismos – desde que a adaptação fonética necessária seja feita. Aliás, no caso de “Orc” a adaptação fica na fronteira entre o fonético e o gráfico. Ou você conhece algum brasileiro que pronunciasse “Orc” de um jeito que não soasse como “Orque” (aliás, “orqui”, né)?
5)O próximo passo vai ser “robitos” e “Tomás Bombadinho”! É um absurdo!
Temer essa possibilidade é simples falta de atenção com a maneira como temos trabalhado. As mudanças só afetaram essas palavras porque elas não foram criadas por Tolkien nem são nomes pessoais, mas estão em uso na língua inglesa faz tempo e, portanto, podem ser pensadas como substantivos comuns “adaptáveis”. E, de novo, Tolkien ressalta que o importante é o SOM de “Orc”, não a grafia.
Aliás, nota de rodapé: “hobbit” também tinha registro em certos compêndios antes da obra de Tolkien, mas parece que era o termo usado para falar de um ente sobrenatural que não tem nada a ver com Bilbo e companhia. Para todos os efeitos, faz mais sentido tratá-la como invenção de Tolkien e, portanto, mais “intocável”.
6)Mas gobelim é nome de tapeçaria!
Meia-verdade, mas irrelevante. Na verdade o termo preferido pelos dicionários, como o Houaiss, é “gobelino”.
Mas e daí? Será que, a esta altura do campeonato, preciso mesmo apresentar a alguém supostamente tão douto quanto o Eduardo o conceito de homófono e homógrafo?
“Pena” pode ser de galinha, de dó ou de tempo passado na prisão. Isso por acaso faz a palavra ser proibida em português? De mais a mais, quantas pessoas com nível superior que você conhece vão imediatamente gritar “tapete!” quando você diz “gobelim”?
7)Vocês estão fugindo do debate!
Parafraseando Bilbo, parece que tem gente que sabe mais do que acontece dentro da minha própria casa do que eu mesmo (ou da casa dos demais membros do Conselho de Tradução).
O convite para o debate veio em janeiro, o mês em que eu tenho duas crianças pequenas de férias em casa o dia todo, quando eu também preciso trabalhar como repórter, atualizar meu blog (que sou pago pra fazer), escrever meu próprio livro (que tá atrasado…), traduzir O Hobbit, cozinhar, arrumar a casa, cuidar das porquinhas-da-índia… e eu ainda não defini data pra debater com o rapaz porque estou com medo. Então tá.
Debato com a maior tranquilidade – quando eu tiver tempo, e quando houver honestidade intelectual e um mínimo de cortesia pra debater. Nem um minuto antes disso.
Essa história toda me lembra a obra do psicólogo Jonathan Haidt sobre como as decisões humanas são tomadas. Ele resume os achados dele da seguinte maneira: “As intuições vêm primeiro, o raciocínio estratégico vem depois”.
A estranheza inicial de “Orques” e “Gobelins”, a “feiura”, fez com que intuitivamente muita gente achasse que as traduções estavam erradas. Correram, então, atrás de todo tipo de argumento para tentar justificar racionalmente essa intuição.
Faltou, porém, olhar os argumentos por todos os lados possíveis. Tudo bem você achar as palavras feias ou, em termos tolkienianos, “pouco eufônicas”. Tudo bem você achar que outra solução seria melhor. Mas dizer que as nossas opções estão “erradas” e “contrariam Tolkien” não é opinião, meu amigo. É puro autoengano.
E agora, se vocês me dão licença, tenho de entregar a tradução de O Hobbit até o dia 10 de fevereiro.