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A Questão das Asas de Balrogs, sob o Ponto de Vista da Obra Literária do Autor

A discussão sobre terem ou não asas os Balrogs de Tokien se estende há vários anos, com os mais diversos argumentos pró e contra aqueles apêndices nos nefastos demônios corrompidos por Morgoth. Em vários sítios da Internet tais argumentos são apresentados, uma versão em português bastante completa e elucidadora encontra-se nas páginas Valinor (http://www.valinor.com.br) .

Entretanto, a análise efetuada quase sempre se prende a discussões de cunho secundário, que são mais baseadas na interpretação do texto, segundo a visão de cada um. Um exemplo claro desse fato é a argumentação sobre a dimensão das asas face aos vãos de Moria. Uma lacuna importante na discussão é a falta da abordagem original sobre o tema, ou seja, qual a opinião do autor do texto (SdA)[/B] sobre a existência ou não daquelas asas. Existem alguns pontos importantes que não são normalmente listados e que sugerem (fortemente, na minha opinião) de que Tolkien jamais cogitou dar apêndices de vôos aos Balrogs, mas apenas procurava realçar sua obra em termos da qualidade literária da linguagem empregada.

Nas obras de Tolkien encontramos os seguintes argumentos (que classifico de “fracos”?) sobre a questão dos Balrogs terem ou não asas:

1. Na versão do Silmarillion publicada (chamo a atenção para o fato de que a edição e revisão final não foram efetuadas por Tolkien mas sim por seu filho) quando Morgoth é ameaçado por Ungoliant seu grito desperta os Balrogs que correm em seu socorro:

“… and passing over Hithlum they came to Lammoth as a tempest of fire…”?

 

O uso do “passing over”? não caracteriza diretamente o vôo com asas, mas é uma maneira de indicar a travessia. Da mesma forma, o capítulo é denominado “The Fligth of the Noldor”? que é apenas uma alusão a sua viagem (fuga) de Valinor, sem a mínima conotação com o fato dos elfos voarem ou não. Na versão do Silmarillion revisada por Tolkien e enviada aos seus editores no final dos anos 30 aquela expressão é usada como


“to his aid there came the Balrogs that lived yet in the deepest places …”? (em seu socorro vieram os Balrogs que viviam anda nos mais profundos lugares)

 

isto é, sem nenhuma menção sequer a voar sobre Hithlum.

O uso daquela expressão é apenas figura de linguagem, da mesma forma que um autor pode se referir aos olhos da heroína como “brilhando como estrelas”? ou “lábios doces como mel”?. Assim não pode ser levada muito a sério… Até mesmo em português temos o hábito de dizer “vá e volte voando”? !

2. As descrições de lutas com Balrogs, como em “The Fall of Gondolin”?, embora sugiram que eles não possuiam asas não são também conclusivas.

3. Outro argumento é o uso frequente, nos textos de Tolkien, do adjetivo “winged”? para descrever os seres estranhos voadores. Isso ocorre no Silmarillion (Ancalagon) e no Senhor dos Anés (as montarias dos Nazgul). Entretanto em nenhum dos textos por ele escritos para as histórias da primeira ou terceira era, mesmo considerando as múltiplas versões encontradas nos volumes da “History of Middle Earth”?, os Balrogs recebem aquele adjetivo.

Por outro lado, existem dois argumentos que podem ser classificados (na minha opinião) como “fortes”? na discussão:

1. A descrição da luta de Gandalf com o Balrog de Moria na ponte de Khazad-Dum

Aqui se baseiam, de modo consistente, as afirmações de que o Balrog tenha asas, embora por alguma estranha razão não as utilize em seu favor durante a luta ou na queda da ponte. Esses argumentos estão exaustivamente analisados naquela referência já mencionada de modo que a discussão a seguir centra-se no aspecto literário da obra.

Em primeiro lugar, o texto publicado por Tolkien não se refere explicitamente a asas. Ao longo da descrição sobre a luta sobre a ponte de Khazad-Dum surgem as expressões :

(a) “…, and the shadows about it reached out like two vast wings”?

 

(b) “It stepped forward slowly on to the bridge, and suddenly it
drew itself up to a great height, and its wings were spread from wall to wall; …”?

 

Um pouco antes, quando é descrito o surgimento do Balrog, já Tolkien usava um indicativo de que o terror oriundo da besta se propagava ao seu redor:

(c) “… It was like a great shadow, in the middle of which was a dark form, of man-shape maybe, yet greater; and a power and  terror seemed to be in it and to go before it.”?

 

A expressão (a) não implica na existência das asas, apenas que as sombras (decorrentes dos poderes do Balrog) se estendiam como se fossem duas grandes asas. O verbo “to reach”? pode significar o desdobrar, estender de poderes (mentais). Por outro lado, no inglês se usa a mesma palavra (reach) como substantivo para indicar a envergadura de um movimento (com as mãos, por exemplo) ou o alcance no qual se podem usar poderes mentais. Assim, além de várias outras explicações já publicadas, a frase de Tolkien pode simplesmente estar se referindo à envergadura dos poderes do Balrog. O fato de estar sendo usada aquela palavra na forma verbal pode simplesmente ser uma maneira mais elegante de escrever.

A expressão (b), que justamente é onde se centram os argumentos a favor das asas nos Balrogs, por outro lado tem em inglês o sentido de “desenvolver poderes ao máximo”? ( spread one’s wings = develop one’s full power). Então aquela frase poderia ser traduzida (ou entendida, no caso dos leitores nativos em inglês e suficientemente versados em expressões idiomáticas) por “… subitamente ele se ergueu a sua grande altura e estimulou seus poderes ao máximo, por toda a extensão do salão”?. Essa interpretação é coerente com a visão que Tolkien já havia dado sobre o Balrog, traduzida na expressão (c) “… era como uma grande sombra, no meio da qual existia um ser escuro, de forma humana talvez, embora maior; e um poder e terror pareciam estar nele e ir na sua frente.”? Ou seja, o poder do Balrog permeava de seu corpo e assim, quando estimulado ao máximo (para combater Gandalf) conseguia preencher todo o ambiente existente.

Embora alguns argumentem que o uso do “from wall to wall”? se refira à dimensão de um objeto físico, novamente esse é um argumento fraco. Tem tanta força quanto o “brilho de estrelas”? para os olhos de uma pessoa ou “doces como mel”? para os lábios de Iracema. Trata-se apenas de uma metáfora, figura muito usada por autores. Tolkien preocupava-se com a “veracidade”? de sua obra para que ela fosse crível para os leitores, mas também era um escritor detalhista que revisava e re-escrevia inúmeras vezes um trecho de suas obras até que ficasse satisfeito. Muitas dessas versões diferiam apenas pelo uso de uma palavra ou expressão. Sendo ainda um profundo conhecedor do inglês (foi editor do Oxford English Dictionary) é razoável supor que procurou expressões que traduzissem o espírito daquele poder emanado pelo Balrog em uma forma literária mais alta.

Outros argumentos que evidenciam essa opinião sobre o uso literário do inglês para descrever na verdade os poderes do Balrog são dados nos volumes do “History of Middle Earth”?, no qual várias versões dos textos de Tolkien são apresentadas, com as sucessivas revisões, marcas e anotações do autor. Versões anteriores do capítulo “The Bridge of Khazad-Dum”? são encontradas no vol. VII, “The Treason of Isengard”?.

Observa-se ali (p. 197) que uma das primeiras versões é detalhista quanto à aparência do Balrog, embora não mencione nenhum apêndice voador:

“A figure strode to the fissure, no more than man-high yet terror seemed to go before it. They could see the furnace-fire of its yellow eyes from afar; its arms were very long; it had a red tongue… Its streaming hair seemed to catch fire.”? (Uma figura avançou para a fenda, não mais alta que um homem porém o terror aparentava vir na sua frente. Eles puderam ver o fogo intenso de seus olhos amarelos de longe, seus braços eram muito longos, ele tinha uma língua vermelha … Seus cabelos ondulados pareciam ser de fogo.”?

 

Mais adiante, na hora do combate, ele diz

“The creature made no reply, but standing up tall so that it loomed above the wizard …”? (A criatura não respondeu, mas ficou ereta aparentando ameaçar o mago).

 

Nessa versão, há uma nota a lápis nas margens indicando “alterar a descrição do Balrog, Ele parece ser de forma humana, mas sua aparência não é claramente discernível. Ele aparenta maior do que parece”?, logo após  Tolkien ainda adiciona “e uma grande sombra parece bloquear a luz”?.  Há um grifo original no “aparenta”? (felt) usado para indicar a sensação da forma.

Duas outras versões ainda existem da escrita desse capítulo, denominadas por B e C pelo filho de Tolkien. Nelas não há menção das palavras “to a great heigth”? ou “wings”? quando o Balrog enfrenta Gandalf na ponte.

Do conjunto desses textos percebe-se que em nenhum momento Tolkien pretendeu que o Balrog tivesse asas reais, ou que pudesse voar com elas. As indicações apontam mais para a forma (indefinida) da besta e do poder que dela permeava. Também não parece ser muito aceitável que Tolkien tivesse escrito sobre Balrogs alados sem ter feito alguma anotação nas margens para consolidar essa referência com suas outras obras (ligadas ao Silmarillion).

Um comentário final é de que a história da queda de Gandalf nas Minas de Moria estava prevista há bem mais tempo (era necessário retirar Galdalf da trama para que Frodo e Sam pudessem separar-se do resto da companhia), embora o seu adversário não estivesse definido. As primeiras versões do rascunho da história (HoME VI, p.462) trazem versões em que um dos Cavaleiros Negros seria tal oponente na ponte de Khazad-Dum e, como tal, a história foi originalmente concebida sem qualquer menção a asas.

2. A descrição da aparição de Ancalagon na Batalha da Ira

Outro argumento forte contra as asas dos Balrogs pode sem encontrado nos escritos do próprio Tolkien, quando ele finalizou sua versão do que hoje é o Silmarillion, enviando-o para apreciação de seus editores (Allen & Unwin). Essa versão descreve assim o aparecimento de Ancalagon durante a Guerra da Ira, ao final da primeira era (HoME V, p. 363):

“But he (Morgoth) loosed upon his foes the last desperate assault that he had prepared, and out of the pits of Angband there issued the winged dragons, that had not before been seen; for until that day no creatures of his cruel thought had yet assailed the air. … for the coming of the dragons was like a great roar of thunder, and a tempest of fire, and their wings were of steel.”? (Mas ele lançou sobre seus adversários o último e desesperado assalto que havia preparado, e das profundezas de Angband surgiram os dragões alados, que não haviam  ainda sido vistos, pois até aquele dia nenhuma criatura de seu cruel desígnio tinha ainda ameaçado os ares… pois a chegada dos dragões foi como o rugir do trovão, e uma tempestade de fogo, e suas asas eram de aço.”?

 

Claramente o próprio autor diz que nenhuma criatura de Morgoth tinha alçado aos ares antes do surgimento dos dragões alados, nos estertores do poder de Morgoth. Mais ainda, percebe-se uma preocupação em caracterizar as asas desses dragões não como apêndices normais (evolutivos) mas sim como uma “ferramenta de guerra”? neles “inserida”? (sabe-se lá por quais poderes). Isso está aparente na última sentença, onde as asas são ditas serem de aço. Esse subterfúgio de indicar criações de Morgoth como “maquinaria”? já havia aparecido no “The Fall of Gondolin”? onde dragões de aço (e outras máquinas bélicas assemelhadas) foram usados para assaltar a cidade (A versão desse texto é anterior à digressão de Tolkien sobre Morgoth não poder criar, apenas corromper.)

Ora, os Balrogs já tinham aparecido no início da era e tiveram papel importante em algumas batalhas dessa mesma era. Assim, se nenhuma criatura tinha ainda assaltado os ares, fica evidente que os Balrogs não possuiam apêndices voadores, na opinião de Tolkien (e não na interpretação de outros).

Conclusão:

Deve ainda ser fortemente considerada a qualidade do inglês usado por Tolkien. Provavelmente nenhum outro escritor inglês no século XX usou tão explicitamente o inglês em suas estruturas mais arcaicas ou antigas (nos primeiros volumes do HoME, Christopher Tolkien anexa um dicionário de termos e expressões antigas para auxiliar a compreensão). Exemplos claros dessas estruturas estão na Profecia de Mandos (Silmarillion) e nas histórias de Beren e Lúthien, Idril e Tuor. É assim muito mais lógico adotarmos uma linha de pensamento baseada simplesmente nos aspectos literários de suas obras. Sem necessidade de exaustivas explicações sobre o tamanho dos Balrogs, ou de suas asas, sem necessidade de criarmos hipóteses mirabolantes sobre tais bestas, sobre sua evolução ou “modus vivendis”?, mas apenas apreciando a criação literária, podemos ficar plenamente convencidos de que Balrogs não possuem asas!

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