Poucos dentre nós fãs sabemos, sem culpa claro, que Tolkien foi bastante famoso já em vida e que bastante cedo após o lançamento do livro o mesmo foi adaptado (ou cogitou-se adaptá-lo) para outras mídias. Em 1955 (apenas um ano após o lançamento do SdA) a BBC de Londres transmitiu uma versão radiofônica do livro, um costume bastante comum àquele tempo. Não foram muito felizes, sob a ótica de Tolkien:
"Eu acho que o livro é bastante inadequado para dramatização, e eu não gostei da radiodifusão (…)" [Carta #175, 30/nov 1955]
Ele odiou especialmente Tom Bombadil e as besteiras que foram ditas na introdução – que Fruta dOuro era filha do Tom e que o Velho Salgueiro era um aliado de Mordor. Aparentemente os próximos meses foram bastante agitados para Tolkien, pois ele alega numa carta de dezembro do mesmo ano [Carta #177] que a correspondência dele havia aumentado muito por causa de fãs furiosos com a radiodifusão e/ou com os críticos do livro (viu, caros e inflados fãs inimigos do filme do Peter Jackson… vocês não estão sozinhos – há mais de 45 anos, aliás
Até aqui nada de muito novo ou inesperado – até chegarmos em meados de 1957. Tolkien recebe uma proposta de um cineasta americano para a produção de um desenho animado do SdA! Vou transcrever a carta na íntegra, pois vale a pena e nos revela detalhes bastante iinteressantes:
"Até o ponto em que estou interessado pessoalmente, eu deveria dar boas-vindas à idéia de um filme animado, mesmo com todo o risco de vulgarização; e assim além do brilho do dinheiro, embora a possibilidade de uma aposentadoria não ser uma possibilidade desagradável. E acredito que acharia a vulgarização menos dolorosa que a tolificação* alcançada pela B.B.C." [Carta #198, 19/jun/1957]
* sillification, no original
Ora, ora! Quanto nos é revelado em tão curtas linhas. Vamos lá:
a) Tolkien não se opunha às adaptações de sua obra, embora a achasse "inadequada à dramatização". Outra indicação disso é a venda dos direitos autorais para o cinema;
b) O brilhinho das moedas de ouro atraía nosso Bom Professor tanto quanto a Bilbo nO Hobbit. Fica a sincera impressão (por essa e outras cartas) que ele aprovaria a adapatação apenas pelo dinheiro (nada contra, acredito que todos temos o direito de usufruir do que produzimos);
c) O que incomodava Tolkien não era tanto a vulgarização da obras, mas sim que a mesma fosse mostra de forma tola ou bobinha (e disso não podemos acusar PJ!). No "On Fairie Stories" Tolkien bate bastante na tecla de que contos de fadas não devem ser tolos ou bobos… e nem são direcionados à crianças. Portanto a adaptação de Bakshi, de 1978, deveria ter provocado ascos em Tolkien;
Menos de três meses depois Tolkien recebe a primeira sinopse da animação e fica bastante contrariado por cair exatamente no que ele desejava impedir, a "tolificação". Aparentemente a animação estava muito comprimida, as pessoas "galopavam" em águias à primeira chance e Lothlórien fora transformada num castelinho de fadas com "delicados minaretes". Mas Tolkien não desiste e oferece-se pessoalmente para auxiliar com correções e conselhos – caso os produtores decidam que vale a pena.
Aparentemente ainda valia, pois em abril de 1958 Tolkien recebia um novo story line do filme… e quase surtou. A principal reclamação dele foi de que os diálogos do original não foram em nada respeitados, afirmando que o escritor do story line leu o livro rapidamente e gerou um script de lembranças pessoais, sem novas consultas ao livro, transformando Boromir em Borimor e Radagast em uma águia. Novamente fala sobre tolificação, mas, como ele afirma "eu preciso e logo deverei precisar muito mais de dinheiro" [Carta #207] e portanto se oferece pra tentar ajustar e consertar o que puder.
Mas em junho de 1958 finalmente a paciência de Tolkien se acaba e ele manda o escritor do story line praticamente às favas. Ele escreve uma longa carta, detalhando ponto por ponto o que ele não conseguia engolir… e agora é muita coisa. Dessa vez ele praticamente não aceita nenhuma alteração do que ele escreveu, embora aceite alguma compressão e adaptação. Coisas aparentemente sem maior importância, como fogos de artíficio em forma de bandeira durante a festa de Bilbo são motivos de reclamação de Tolkien. Ele reclama de tudo, desde a utilização constante das águias, passando pela incorreta utilização dos nomes chegando a canções que não deveriam ser cantadas em determinadas circunstâncias. E a Parte III "é totalmente inaceitável para mim. como um todo e em detalhes" [Carta #210]. Para finalizar, "The Doom of Tolkien": "O Senhor dos Anéis não pode ser deturpado dessa forma". [Carta #210]
E o assunto morre por aqui mesmo. É, realmente Tolkien não era muito amigo do cinema
Bom, agora entramos na boataria, coisas que provavelmente nunca saberemos em detalhes. Até meados de 2000 ou 2001 existia uma "lenda" bastante difundida de que Tolkien, por necessidade de dinheiro, teria vendido os direitos de filmagem dO Senhor dos Anéis por meros U$ 10.000,00. À época da espera da filmagem e lançamento do primeiro filme da trilogia do PJ, o Tolkien Estate veio a público desmentir tal afirmação, afirmando que os direitos foram vendidos
por "algumas centenas de milhares de libras e uma percentagem na produção", pois é, de bobo Tolkien não tinha nada e garantiu em vida o bem-estar de algumas gerações de "Tolkiens".
No final o que ficou foi a impressão de que, se tratado com respeito e envolvido desde o começo da produção, por gente séria e sincera, o envolvimento Tolkien x Cinema teria sim dado certo. Teríamos um filme muito próximo do que temos hoje mas sem os pontos grosseiros de alterações radicais (como a aparição de Gil-galad, Arwen e mais umas coisinhas). Tolkien não se enquadrava no que chamamos de "afável" e o pessoal de cinema é conhecidamente difícil de lidar, mas se ultrapassassem as primeiras fases o envolvimento poderia dar certo sim. Mas poderia se tornar um porre, já que a linguagem que Tolkien conhecia era a lentidão dos livros. Bom, mas é só um exercício (saboroso!) de imaginação.