Havia cerca de três anos, desde o lançamento de Mestre Gil pela editora Martins Fontes em 2003, que os fãs brasileiros não tinham a chance de ler um novo livro de J.R.R. Tolkien em português. A espera terminou: a editora Arte & Letra, que já tinha começado sua incursão por temas tolkienianos com a publicação do Curso de Quenya de Helge Fauskanger, acaba de lançar “As Cartas de J.R.R. Tolkien” no país. E a Valinor apresenta, agora, a primeira resenha da nova edição!
A primeira coisa a notar nas Cartas em sua versão brazuca é que o conceito da capa parece ter sido um sucesso quase completo, depois de muita gritaria por parte dos usuários da Valinor quando a proposta original da capa foi apresentada. É espetacular o nível de detalhe que a impressão permitiu: as ranhuras e arabescos que dão a sugestão de “guarda de couro” na capa estão em alto-relevo, com uma textura granulada muito interessante.
Debaixo do letreiro e dos créditos, é possível ver marcas de selos e carimbos e o texto de uma carta genuína de Tolkien, escrita de próprio punho com sua característica letra floreada. Esse caminhão de elementos até poderia causar certa poluição visual, mas não é o que acontece, felizmente. A única crítica que se pode fazer à nova capa é mais de cunho econômico e industrial: ela não tem orelha nem é “semi-dura”, como a do Curso de Quenya, o que acarreta uma certa fragilidade ao material.
Mas o que realmente interessa é o “miolo” do livro, e nesse quesito as Cartas brasileiras cumprem quase tudo o que prometem. As fontes utilizadas para compor o texto são claras e de leitura agradável, e funcionaram bem com o papel branco (distinto do amarelado do Curso de Quenya). O grande achado, no entanto, é a tradução, indiscutivelmente. OK, para evitar qualquer acusação de conflito de interesse, vamos deixar claro que sou suspeito para falar, uma vez que o texto foi vertido para o português por Gabriel “Tilion” Brum, membro da Equipe Valinor.
No entanto, justiça seja feita, é preciso reconhecer que nenhuma tradução tolkieniana publicada até hoje no Brasil tinha conseguido enfrentar para valer o problema da linguagem e do estilo de Tolkien (quem mais tinha chegado perto disso fora Ronald Kyrmse em sua versão de “Contos Inacabados”). Explicando melhor a questão: Tolkien, em qualquer circunstância, tinha um jeito extremamente peculiar de escrever. Seu vocabulário e, principalmente, sua sintaxe e seu estilo nunca correspondem direitinho ao que você esperaria de um falante do inglês moderno, talvez pelo longo contato com a literatura medieval que ele tanto amava. Como diz o próprio Professor na carta 171:
“É claro, não sendo especialmente bem versado em inglês moderno e muito mais familiarizado com obras nas linguagens antigas e “médias”, meu próprio ouvido de certa forma é afetado; de modo que, embora eu pudesse lembrar de como um moderno usaria isso ou aquilo, o que me vem à mente ou à caneta não é bem isso.”
Ao mesmo tempo, Tolkien é capaz de uma mistureba interessante de estilos: usa linguagem altamente técnica e filosófica e, duas linhas adiantes, está fazendo uma piadinha ou satirizando a política contemporânea da Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial ou no período pós-guerra. Cita frases do inglês antigo sem tradução ali e usa gíria acolá. O resultado é um texto cheio de nuances, que é divertido, mas não simples ou simplório.
A maioria das traduções de Tolkien para o português, apesar de seus muitos méritos, não enfrentaram de frente esse lado “complicado” ou “resistente” do texto do Professor. A tradução das Cartas passa nesse quesito com louvor: ousaria dizer que o Tolkien do livro fala em português, pela primeira vez, mais ou menos como Tolkien falava em inglês – claro, com as transformações inevitáveis que a diferença entre os idiomas exige.
A preocupação com detalhes se reflete em coisas como a tradução rimada de pequenos trechos em verso inseridos por Tolkien em sua correspondência (que ficaram, via de regra, bastante simpáticos) e na presença de notas do tradutor, além das abundantes notas já presentes no original. Por sorte, não há uma sobrecarga: o recurso só é usado quando é estritamente necessário.
Numa primeira edição, é inevitável que um ou outro equívoco aconteça (o próprio Gabriel Brum já apontou alguns deles num texto recente aqui na Valinor), mas, no geral, o resultante é plenamente satisfatório quando se olha o quadro geral do que já foi feito em termos de tradução tolkieniana no país.
Deixando de lado os detalhes técnicos, o que importa mesmo é a janela – aliás, eu deveria dizer a tela de cristal líquido de 50 polegadas – que as Cartas abrem para o mundo mental, emocional, pessoal e literário de Tolkien. Algumas partes do texto sempre me levaram às lágrimas em inglês, e é ótimo ver que o texto no nosso idioma conseguiu fazer o mesmo, como na tocante série de cartas que o autor manda para seu filho mais querido, Christopher, que então lutava na África do Sul pela Real Força Aérea inglesa.
Na série, Tolkien compara o próprio filho a “um hobbit entre os Uruk-Hai”, fala de seu ódio contra o nazismo, mas exorta Christopher a sempre agir com misericórdia; e fala de como sua fé cristã e sua literatura são parte do mesmo impulso em sua vida.
Mas tem mais, muito mais. Eu me divirto particularmente com o “momento Samuel Blaunstein” (“fazemos qualquer negócio!”), no qual Tolkien acaba topando publicar “O Senhor dos Anéis” sem “O Silmarillion”, de forma a não ficar com sua obra maior encalhada. Outros momentos impagáveis incluem Tolkien classificando os gatos como “membros da fauna de Mordor”, emputecendo-se com o fato de que um hidrofólio tinha sido batizado com o nome de Shadowfax, ou oferecendo-se para criar nomes élficos para um rebanho de touros de uma fã (ele inventa, por exemplo, os nomes Aramund, “touro nobre”, ou Rasmund, “touro chifrudo”).
Espero com toda a sinceridade que a leitura atenta e sem preconceitos das cartas acabe com a mania dos leitores brasileiros de achar que há paganismo na obra tolkieniana. Com todas as letras e muita clareza, ele mostra que as lendas de Arda se encaixam numa visão de mundo monoteísta e cristã por excelência.
Finalmente, para os críticos desmiolados que sempre consideraram a obra do Professor um exemplo de escapismo, as Cartas são um verdadeiro tapa na cara. Vemos um observador interessado, inteligente e bem-humorado das mazelas de seu tempo, um dos mais complicados da história da humanidade, um conservador que desprezava as mazelas da democracia, mas que também recusava qualquer forma de totalitarismo. E, em tempos de doutrina Bush, é fantástico ver como ele desprezava o “novo império” dos Estados Unidos e atacava a destruição de culturas e modos de vida que o começo da “globalização” estava causando.
Parafraseando o que o próprio Tolkien disse sobre “O Senhor dos Anéis”, estas cartas estão escritas com o sangue da vida do Professor, com toda a paixão e todo o humor dos quais ele era capaz. Vale a pena lê-las.