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Guerra Racial na Terra-média – Parte 5 de 5

“A Guerra Interior da Alegoria”: Orques e a Guerra pela Alma

De fato, há uma defesa. O advogado de defesa começaria observando com que frequência Tolkien explorou a ‘aplicabilidade’ dos Orques ao nosso mundo primário. Ouvindo o ‘som selvagem’ de uma motosserra em funcionamento, ele exclamava ‘Orques!’ (Sayer 1995, 23). Um motociclista passando ruidosamente evocaria a mesma exclamação indignada: ‘ali está um Orque!’ (Ordway 2021, 7). Para Tolkien, o aparato moderno de ruído mecanizado, poluição e destruição estava em toda parte ‘manejados’ por Orques. Repetidamente, ao longo de sua correspondência e em entrevistas, Tolkien encontra Orques residentes na Inglaterra e em outros lugares entre nós. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, ele comentou com seu filho que

não há Uruks genuínos [Orques de elite], ou seja, pessoas tornadas más pela intenção de seu criador; e não há muitos que estejam tão corrompidos a ponto de serem irredimíveis (embora eu tema que deve ser admitido que há criaturas humanas que parecem irredimíveis a menos que um milagre especial ocorra, e que provavelmente há anormalmente muitas dessas criaturas na Alemanha e no Japão – mas certamente esses países infelizes não têm monopólio: eu as encontrei, ou assim pensei, na terra verde e agradável da Inglaterra).’ (Tolkien 1981, 90)

Ele pensou que seu filho também os havia encontrado. Sofrendo em uma base da RAF na África do Sul, ele foi retratado por seu pai como ‘um hobbit entre os Urukhai’ (Tolkien 1981, 78). Quer em sua correspondência, quer em seu legendarium, Tolkien, aquele gênio imaginativo, estava engajado em ‘transformar a experiência em outra forma e símbolo com Morgoth, Orques e os Eldalie [Elfos]’ (Tolkien 1981, 85). Como tal símbolo, os Orques foram imaginados como ‘horrivelmente corrompidos’, mas, Tolkien assegurou a seu correspondente católico Peter Hasting, ‘não mais do que muitos Homens que se encontram hoje’ (Tolkien 1981, 190). A defesa a partir dessas evidências? Que os Orques, nas ‘aplicações’ de Tolkien dessas criaturas demoníacas à sua própria experiência, eram sempre análogos de indivíduos malignos manuseando motosserras ou bombas atômicas, ‘homens que se encontram hoje’, mas nunca referências a alguma raça maligna do mundo primário. A alegoria fundamental no legendarium de Tolkien (e sim, Tolkien escreveu alegoria), em vez de ser uma correlação vulgar um-a-um entre personalidades ou povos no mundo de referência e seus análogos alegóricos (como o porco-Stalin de Orwell em A Revolução dos Bichos), é em vez disso um alinhamento sutil entre o universo imaginário de Arda e o mundo interior real de nossas mentes e corações onde cada um de nós, como indivíduo, deve escolher entre o bem e o mal que contendem por nossa alma. Em uma meditação virtualmente despercebida, mas enormemente significativa sobre seu gênero e a Segunda Guerra Mundial, Tolkien disse a seu filho que ‘romance’ cresceu da ‘alegoria’, e suas guerras ainda são derivadas da ‘guerra interior’ da alegoria em que o bem está de um lado e vários modos de maldade do outro. Na vida real (exterior), homens estão de ambos os lados: o que significa uma aliança heterogênea de orques, bestas, demônios, homens naturalmente honestos e anjos.” (Tolkien 1981, 82)

As romances de Tolkien manifestam exatamente esse conflito alegórico: uma ‘psicomaquia’ ou guerra da alma – um conflito que foi caracterizado como ‘a fábula Cristã arquetípica’, uma narrativa espiritual fundamental que relata ‘a batalha entre a alma e seus adversários’ (Sanford 1995, 17). Tolkien estaria familiarizado com a Psychomachia de Prudentius, a primeira grande alegoria cristã e um dos textos mais influentes da literatura medieval. Essa representação do século V da guerra pela alma entre vício e virtude é um progenitor alegórico óbvio para as fantasias cristãs de Tolkien, embora um progenitor que foi virtualmente ignorado pelos tolkienistas. Walter Scheps, no entanto, demonstrou que Tolkien sabia muito bem que a ‘moralidade de conto de fadas’ – a ‘guerra interior’ de alegoria de Tolkien – na qual ‘gigantes, bruxas e Judeus, orques, trolls e gobelins [são todos] genericamente malignos’ não era exportável para a realidade mundana e deveria permanecer ‘sequestrada em seu próprio mundo’: o mundo fantástico da fantasia alegórica (Scheps 1975, 54, 55).

Afinal, se os Orques são irredimíveis, e ‘o único Orque bom é um Orque morto’, quais seriam as implicações de encontrar raças de Orques no mundo primário? Isso significaria que ‘nós “caçamos orques” e matamos o pior tipo de humanos?’ (Bergen 2017, 117). Esse caminho leva ao nazismo, à guerra racial no mundo real, à limpeza étnica e ao genocídio. Certamente, para o humano Tolkien, os Orques, como uma raça envolvida em sua ‘guerra interior de alegoria’, tinham que permanecer ‘sequestrados’ em seu próprio mundo secundário. Sequestrados lá na terra da fantasia, as raças boas e más de Tolkien, alinhadas nas linhas de batalha da Terra-média, poderiam ser genuinamente dualistas, colocando o Bem absoluto de Ilúvatar/Deus contra o mal delirante de Morgoth/Satanás. Essas linhas de batalha exibem o que Colin Gunton nos diz ser um tema fundamental em nossa ‘arte e literatura’: a luta pela salvação em que ‘o mundo é um grande campo de batalha entre o bem e o mal, a luz e as trevas’, um campo de batalha no qual ‘nós escolhemos um lado ou o outro’ (Gunton 2001, 127). Aqui, no reino subcriativo da imaginação, não pode haver paz negociada, apenas guerra total levando à aniquilação abjeta ou à vitória gloriosa, à condenação ou à salvação. Como William Dowie observou, ‘os homens do Oeste podem ir à batalha com tanta intensidade feroz contra os orques… porque… [os orques] são totalmente malignos. A guerra em Faerie, ao contrário da guerra na realidade, não possui tons de cinza ambíguos’ (Dowie 1979, 276).

Os Orques estão aqui, na concepção tardia de Tolkien, completamente equivalentes aos monstros de Beowulf: “a infantaria da velha guerra”, “inimigos do único Deus” (Tolkien 1983, 22). Assim como na interpretação canônica de Tolkien da função alegórica desses demônios de Beowulf, os Orques, em seu papel mais essencial, representam o pecado e a morte que afligem a todos nós. As guerras de Arda entre o bem e o mal são travadas por exércitos de Elfos e Homens do lado do Bem e, do outro lado das linhas de batalha, por exércitos de Orques, guerreiros do inferno na Terra-média. Mas essas guerras alegorizam um conflito espiritual sendo travado dentro de cada um de nós (Garth 2019, 186-187), não as Guerras Mundiais I ou II, muito menos a Guerra Fria ou a guerra de Oxford sobre o currículo de inglês. Sugere-se que, no mundo primário de Tolkien, seus Orques imaginados tiveram origem em indivíduos como Ernst Jünger da Alemanha, que distorceu seus enormes talentos para a mitopoese para criar uma mitologia militarista de vontades de ferro e capacetes de aço a partir de sua experiência na Frente Ocidental (Kuehs 2019, 164). Tolkien teria encontrado Jüngers em seu próprio lado da linha de trincheiras, e teria temido e odiado eles. Ali, em guerreiros encantados pela batalha e enlouquecidos pelo ódio, está a etiologia do mundo primário dos Orques.

Durante as guerras reais da terrível época de Tolkien ou em sua rotina nem sempre pacífica em Oxford, ele encontrou apenas indivíduos em conflito incipiente, de todos os lados, ao longo de um continuum determinado por suas escolhas confusas entre o bem e o mal – um continuum que vai de santos a demônios, de Gandalfs mundanos a Orques do mundo primário. ‘A verdadeira batalha’ – como Tolkien a via em Beowulf, em seu legendarium e na vida de cada mortal – era ‘entre a alma e seus adversários’ (Tolkien 1983, 22): adversários alegoricamente incorporados no Grendel e dragão de Beowulf e nos Orques e Trolls da Terra-média. Tolkien nunca, em suas muitas aplicações da Orquidade ao nosso mundo, sucumbiu à obscenidade de ver uma raça inteira como maligna. Ele certamente deixou muito claro que nunca teve a intenção de fazer qualquer analogia entre seus Gobelins/Orques e os alemães que ele lutou no Somme. Diferente de suas guerras imaginárias na Terra-média, não havia nada maniqueísta na visão de Tolkien sobre os conflitos internos de Oxford, ou mesmo, ao contrário da maioria de seus contemporâneos, sobre sua perspectiva nas guerras mundiais. Ele apreciava plenamente a diversidade moral caótica até mesmo dos alemães em guerra. Jessica Yates está certa ao insistir que os Orques de Tolkien não acusam um povo, mas sim indivíduos que sucumbem ao ódio (Yates 1995, 235-236): os Ernst Jüngers deste mundo afligido, acólitos do ‘Morgothismo’, do ‘ódio e destruição’ (Tolkien 1993, 410) em todos os lados dos muitos campos de batalha da história. Não é por acaso que, na primeira aparição dos Orques no legendarium, lutando para chegar à ‘Queda de Gondolin’, eles são identificados como ‘o povo do ódio’, como ‘o povo do ódio terrível’, como ‘os gobelins do ódio’ (Tolkien 1984, 158, 161, 177). Os Orques, com seu juramento arrepiante ‘Morte à luz, à lei, ao amor!’ (Tolkien 1985, 275), ostentam o niilismo impulsionado pelo ódio que vazou das hecatombes da Primeira Guerra Mundial para envenenar tantos europeus do século XX, até mesmo aqueles tão esteticamente sensíveis como Jünger.

A acusação de Morgothismo se aplica a todos nós, em certos momentos de nossas vidas, em maior ou menor grau. Todos nós, em nossos piores momentos, somos ‘pessoas de ódio’. Talvez Tolkien se lembrasse de momentos na Frente Ocidental quando ele também sucumbiu à fúria berserker que convulsionou os Jüngers da guerra. Robert Blackham, afinal, apontou que ‘para sobreviver à brutalidade da guerra de trincheiras e à vida no exército, os soldados [como Tolkien] tiveram que se tornar um pouco como Orques’ (Blackham 2011, 8). Assim, como Verlyn Flieger nos diz, ‘vemos nossa sombra, o lado não admitido, o pior do caráter humano no comportamento não admirável, mas deprimente e humano dos Orques. E somos forçados a reconhecê-lo’ (Flieger 1999, 9). Helen Armstrong, com uma visão semelhante, argumentou que ‘os orques são os gobelins que assombram os sonhos mais sombrios de Tolkien’, mas que ‘eles não podem ser completamente separados do mal que os homens fazem’, pois, enquanto ‘os habitantes da terra das fadas são os habitantes de nossos sonhos, sonhamos principalmente com o que já conhecemos’ (Armstrong 1996, 247).

O que ‘já sabemos’ pode ser horrível: ‘um lugar onde um ser humano pode olhar para outro e encontrar algo totalmente alienígena, cruel, implacável e aterrorizante’ (Armstrong 1996, 248). Tolkien exemplifica esse insight em sua grande fantasia. Nu e perplexo na Torre de Cirith Ungol, o recém-resgatado Frodo, ao descobrir que Sam ganhou o Anel durante seu cativeiro, de repente percebe seu servo devotado como um Orque: ‘olhando lascivamente e apalpando seu tesouro, uma criatura vil com olhos gulosos e boca babando’ (Tolkien 2008b, VI.1 1193). Na realidade, é claro, é Frodo quem foi momentaneamente transformado em uma vileza órquica pelo mal avassalador inerente à posse do Anel. Aquilo ‘algo alienígena, cruel, implacável e aterrorizante’, o Orque, pode, muitas vezes, ser encontrado olhando dentro de nós mesmos. A analista junguiana Pia Skogemann de fato interpretou os Orques de Tolkien exatamente como um poderoso arquétipo de nossos ‘impulsos negativos e agressivos’ (Skogemann 2011, viii). Orques emergem rosnando de nossos, e dos ‘pensamentos noturnos’ de Tolkien (Burke 2008, 26), de uma intimação do mal nativo que nos assombra a todos. A vitória sobre esses monstros ‘deve ser individual, a conquista do ‘eu’ maligno interior’ (Filmer 1987, 21).

Neonazistas e Supremacistas Brancos podem, no entanto, facilmente, embora erroneamente, apropriar-se da fértil imaginação de Tolkien para suas causas vis, como têm feito, equiparando seus odiosos Orques aos seus muito odiados judeus e negros (e, mais recentemente e com mais frequência, aos recém-odiados muçulmanos). Como o Frodo transmutado, eles veem esses ‘Outros’ inofensivos como Orques por causa de sua própria odiosa Orquidade. Tal ‘resposta do leitor’ pode ser anarquicamente permissiva, até mesmo irresponsavelmente perversa. David Ibata, por exemplo, se pergunta como o filme ‘As Duas Torres’ de Jackson teria sido recebido nos EUA se tivesse sido lançado em 1942 em vez de 2002, e sugere que todos teriam visto os Orques como japoneses (Ibata 2003), em nítido contraste com o próprio ‘desgosto’ absoluto de Tolkien com o ‘imperialismo britânico e americano no Extremo Oriente’ e sua declarada falta de patriotismo na guerra contra o Japão (Tolkien 1981, 115). Após o ’11 de setembro’, os servos Orques de Sauron foram, é claro, reencarnados como terroristas islâmicos, em um contexto que Tolkien não poderia ter imaginado. Houve, e ainda há, muitas causas racistas além do antissemitismo e da Supremacia Branca, e os Orques de Tolkien podem, uma vez desvinculados de seu propósito original, servir valentemente para alegorizar todas elas com ‘a visão de monstruosidade mais pertinente na época’ (Armitt 2005, 10).

No entanto, embora a ‘morte do autor’, do nosso autor, tenha ocorrido em 1973, ainda podemos discernir a intenção final de Tolkien ao sub-criar seus Orques. Para o autor profundamente devoto, não havia absolutamente nenhuma relação alegórica entre as guerras raciais genocidas da Terra-média e os conflitos raciais de seu próprio tempo e lugar. Para ser fiel a Tolkien, sua raça de Orques não pode ser aplicada a nenhum povo do nosso mundo primário, sejam alemães, negros, judeus, japoneses ou muçulmanos. Na imaginação cristã-conservadora de Tolkien, desde a Beleriand marcada pela batalha e Gondor sitiada até os corredores do poder em Whitehall e as reuniões do conselho da Faculdade de Inglês (sem mencionar seu bairro poluído por motosserras e motocicletas), ressonâncias alegóricas ecoavam de um lado para o outro entre a Terra-média devastada pela guerra e a batalha totalmente individual travada dentro de cada um de nós aqui na terra de Deus – uma guerra entre o Bem de Cristo e o mal de Satanás, literalmente uma guerra até a morte. Os Orques são um destilado particular da alegoria abrangente de Tolkien: ‘uma alegoria da condição humana universal vista de um ponto de vista cristão’ (Filmer 1987, 19). Sua imagem monstruosa nos adverte contra o mal do Morgothismo, contra nossa sujeição individual ao pecado destrutivo do ódio. Apesar das primeiras aparências, os vis Orques de Tolkien não simbolizam as animosidades raciais, limpezas étnicas e genocídios sangrentos de nossos tempos atormentados, mais do que os demônios da mitologia cristã.

Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5 (final)

Tradutor: Fábio Bettega

Bibliografia

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