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Sobre ananos, meões e traduções

Desde o ano passado eu tenho acompanhado, como revisor, o desenvolvimento da nova tradução de “O Senhor dos Anéis”. Em comemoração ao aniversário da nossa querida Valinor, trago a público pela primeira vez alguns dados sobre a nova tradução, com autorização da Martins Fontes.
 

O texto está sendo preparado, a pedido da Editora Martins Fontes, pela dupla de tradutores Waldéa Barcellos (a mesma de “O Silmarillion”) e Ronald Kyrmse, responsáveis, respectivamente, por verter as partes em prosa e os poemas para o português.

A análise abaixo não é exaustiva, mas dá uma boa idéia do que vem por aí. Como jornalista, sei mais do que ninguém que a tão falada imparcialidade não existe, no fundo; mas tentarei ser o mais equilibrado possível, descrevendo fatos e deixando que os leitores de Tolkien que conhecem a tradução atual e/ou o texto original tirem suas próprias conclusões. Os comentários se registrem, por enquanto, ao primeiro volume, “A Sociedade do Anel”.

Aqui vamos nós.

Clareza
Ao contrário das edições anteriores do livro, a nova deve incluir uma “Nota sobre a tradução brasileira”. A iniciativa deve acabar com as eternas dúvidas dos leitores de primeira viagem, mostrando que Tolkien na verdade recomendava a tradução dos nomes de personagens e lugares. O texto também conta quais as referências deixadas por Tolkien para que esse trabalho complicado acontecesse da forma correta. Dá, além disso, exemplos de alguns nomes traduzidos de acordo com essas regras. Em resumo, aumenta um bocado a clareza em relação à tradução.

Poemas
O Verso do Anel, assim como os demais poemas, ganharam versões totalmente novas (o Verso do Anel agora termina com “onde a Sombra desceu”). São tentativas caprichadas de reproduzir a métrica do original, mas pelo menos algumas delas parecem ter fracassado nisso.

Estou me referindo a uma citação, já na nota inicial, de um poema de Rohan. Dá para ver que Kyrmse tentou usar as famosas aliterações – a repetição da mesma consoante no verso, que é típica da métrica usada por Tolkien nesses poemas. Mas ela é usada de forma errada, porque o importante da aliteração nesse tipo de verso é que ela ocorra na sílaba tônica das palavras, e não em qualquer sílaba. Resta saber se nos demais livros isso poderá ser corrigido.

Nomenclatura
Chegamos ao quesito que, sem dúvida nenhuma, vai causar mais polêmica. Kyrmse e Barcellos decidiram fazer uma intervenção “cirúrgica”, mas crucial, nos nomes de duas principais raças da Terra-média. Os atuais anões estão batizados de “ananos” na nova tradução; os hobbits continuam sendo hobbits, mas seu “nome alternativo” (“pequenos”, na tradução atual; “halflings” em inglês) ganhou a tradução de “meões”.
A equipe diz ter baseado sua decisão nos próprios termos originais tolkienianos. Em seus comentários, Tolkien deixa claro que seus anões não têm nada a ver com humanos com nanismo, e conta que prefere usar um plural diferenciado – dwarves, em vez de dwarfs, que seria o gramaticalmente correto – para marcar isso. Seria uma forma histórica da palavra. A tradução brasileira segue essa linha, mas apaga a diferença entre o singular regular e o plural irregular – talvez, a rigor, o certo seria “anão – ananos”, e não “anano – ananos”, se a idéia era seguir Tolkien a risca.

Já “meão, meões” explora o fato de que “halfling” quer dizer algo como “alguém com metade do tamanho normal”. No entanto, a terminação da palavra em inglês sugere um diminutivo, outra junção adequada de forma e conteúdo, enquanto a da nova versão é… bem, com “ão”, sugerindo algo grande. Cria-se um ruído.

As outras mudanças são de menor escala. Um exemplo é a Terra dos Buques, que virou Boquelândia.    

Estilo
O estilo geral do texto é o que chama menos atenção na primeira batida de olhos, mas talvez seja o mais importante numa obra em prosa como “O Senhor dos Anéis”. Nesse ponto, a nova tradução não inova (sacaram? Sacaram?). Ela não segue de muito perto o estilo recheado de inversões e arcaísmos de Tolkien. Em português, optou-se por algo mais coloquial e modernizado.

Alguns exemplos: quando, no prólogo, fala-se das terras do Reino do Norte que estavam sendo abandonadas, a tradução diz “e todas as terras estavam se tornando improdutivas” (eu não consegui deixar de pensar nos sem-terra invadindo o Condado…). Mais tarde, diz-se que “os hobbits se alfabetizaram” (o original diz “aprenderam suas letras”). Na maioria dos trechos em que Tolkien usa uma sintaxe mais complicada, com inversões, a tendência é que o texto em português simplifique isso.

Conclusão
Ainda é cedo para fazer um julgamento de valor sobre a nova tradução, até porque ainda falta a análise detalhada dos dois próximos volumes, que pretendo fazer aqui na Valinor conforme for possível. (Segundo a Martins Fontes, não há pressa para o lançamento, porque eles ainda possuem muitos exemplares da edição atual em estoque.)

Contudo, a impressão inicial é que a nova tradução ousa onde talvez não precise ousar (mexendo em termos tão consolidados quanto “meões” e “ananos”) e acaba sendo tímida justamente onde poderia ser mais audaciosa, retratando o estilo de Tolkien em português de forma mais parecida com seu estilo na língua original. Isso provavelmente se deve a uma preocupação com o que os leitores seriam capazes de assimilar sem dificuldade de entendimento, segundo o padrão das editoras brasileiras. No final, é claro, quem deverá fazer esse julgamento é o próprio público.

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