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Beowulf: os monstros e as idéias de jerico

Depois de assistir “A Lenda de Beowulf” com o devido olhar tolkieniano, acho que é relativamente seguro dizer que o filme baseado no poema anglo-saxão não é nem de longe tão ruim quanto as pessoas andaram dizendo – mas poderia ter sido infinitamente melhor, e até virado um clássico, se tivessem dado mais atenção a Tolkien ao fazê-lo.

 

 

Não é segredo para ninguém que o poema original, conhecido simplesmente como “Beowulf”, foi uma das paixões literárias mais duradouras do velho Professor. Aliás, há muitos pesquisadores sérios, como o britânico Tom Shippey, que vêem fortes paralelos estruturais entre “Beowulf” e “O Senhor dos Anéis” – as duas obras são, entre outras semelhanças, magistrais no uso de alusões a um passado distante, alusões que ajudam a criar uma aparência de realidade histórica profunda e cheia de significado.

De quebra, em seu magistral ensaio “Beowulf: the Monsters and the Critics” (ainda inédito em português), produzido nos anos 1930, J.R.R. Tolkien provavelmente foi responsável pela maior mudança de foco já ocorrida nos estudos sobre o poema. Até essa época, os estudiosos da literatura medieval inglesa achavam que “Beowulf” era uma obra totalmente incongruente: embora seu autor tivesse grande sensibilidade poética e grande nobreza de estilo, estaria “estranhamente” preocupado com coisas “infantis”, como monstros e dragões.

Bem, o Professor virou essa afirmação de ponta-cabeça. Em seu ensaio, Tolkien defende que os monstros, como o ogro Grendel e sua mãe e o dragão que Beowulf enfrenta no fim de sua vida, são justamente a chave da visão poética da obra. Os monstros representariam um embate mais do que humano, ou que representa a humanidade como um todo: a luta dos seres humanos contra um Universo hostil numa época em que o paganismo dominava, e portanto não trazia a esperança cristã de uma salvação futura.

Síndrome de Sandman?
Há momentos em “A Lenda de Beowulf” que até dão a impressão de que a visão tolkieniana, afinal de contas, vai ser seguida. Muita gente andou dizendo que o roteirista Neil Gaiman, badaladíssimo criador da série “Sandman” e de outros clássicos dos quadrinhos, deveria estar arrancando os cabelos por aceitar participar do filme, mas o fato é que a história que ele escreveu parece justamente refletir sua visão sobre Tolkien. Em algumas entrevistas e textos, Gaiman já disse duas coisas: 1)ele adora Tolkien; 2)ele acha que é preciso se libertar um pouco da influência pesadíssima que o Professor tem sobre a fantasia moderna.

No fundo, acho que isso explica muita coisa. Por um lado, o filme mostra grande fidelidade a alguns aspectos da visão filológica e mitológica de Tolkien sobre o passado anglo-saxão e germânico. Lembremos que o autor achava possível reconstruir, em grande parte, o antigo mundo germânico usando como base palavras, poemas e canções que chegaram até nós em forma fragmentada. Com a ajuda da filologia, ou seja, da ciência que estuda a evolução dos idiomas, o sentido original daquele mundo pode ser recuperado.

É o caso do próprio nome do personagem-título. Quando Beowulf desce até a caverna onde vive a mãe de Grendel (Angelina Jolie, gostosa até em CGI – vejam só, até rimou!), a criatura diz: “Are you the one they call Beowulf? The bee-wulf? The bear?” (em português “Você é aquele que chamam de Beowulf? O lobo das abelhas? O urso?”).

Ora, essa é justamente uma das descobertas trazidas pela filologia: a maioria dos estudiosos acredita que o nome do herói quer dizer “lobo-das-abelhas”, uma comparação abreviada conhecida como kenning, muito comum na poesia anglo-saxã. O significado é “o animal que é para as abelhas o que o lobo é para o homem”, ou seja, o urso, que tem grande apetite por um melzinho. Há quem diga que esse aspecto de Beowulf inspirou o personagem Beorn, de “O Hobbit”. E repare que o brasão de Beowulf no filme é um lobo. Como diria Michael Drout, estudioso do anglo-saxão e da obra de Tolkien, “Angelina Jolie está praticando filologia! Angelina Jolie está praticando filologia pelada!”.

Existem outros ecos legais do antigo mundo germânico no atual filme. Não dá para não lembrar de “O Hobbit” quando o rei Hrothgar diz a Beowulf que os dragões possuem um “ponto fraco” na parte ventral do corpo, coisa que o arqueiro Bard explorou muito bem, como sabemos. Outro toque interessante é a aparição de Finn da Frísia, um invasor do reino de Beowulf que é outro personagem muito importante das antigas sagas anglo-saxãs, tendo combatido Hengest, o líder da invasão da Bretanha que criou o povo inglês moderno.

No entanto, talvez os toques mais sutis e interessantes tenham vindo da caracterização do monstro Grendel. Não é preciso quebrar muito a cabeça para perceber que a criatura se enfurece com os sons de música e alegria que vêm do salão do hidromel do rei Hrothgar. Essa característica aparece no poema e é citada por Tolkien como parte do papel de Grendel como inimigo da civilização e da humanidade. Mas é claro que, no texto original, ela faz bem mais sentido, porque lá Grendel é classificado explicitamente como um descendente de Caim, o vilão bíblico. Assim, ele representaria o lado negro da humanidade, adversário de tudo o que é bom e civilizado. “Grendel fica enlouquecido pelo som das harpas”, escreve Tolkien.

Outro toque interessante de Gaiman que pouca gente, ou talvez ninguém, comentou é o uso do próprio idioma anglo-saxão, ou inglês antigo. Tá certo que a distorção na voz do bicho não ajuda muito, mas dá para perceber que Grendel usa essa língua, e não inglês moderno. O mesmo ocorre quando um menestrel canta os feitos de Beowulf quando ele já está velho. A sonoridade certamente seria apreciada por Tolkien.

Ladeira abaixo
OK, se existem tantos acertos assim, porque o filme não merece um Oscar? Duas palavras: faltou seriedade. Até os críticos antigos, que não tinham percebido o valor dos monstros na narrativa, viam “Beowulf” como uma obra de grande peso e dignidade. Apesar de algumas gracinhas, a sensação que a Trilogia do Anel de Peter Jackson também é essa.

Já em “A Lenda de Beowulf”, vemos um Hrothgar embriagado e quase nu que não consegue controlar a própria mulher, guerreiros cantando músicas sobre as donzelas que levaram para a cama em toda a Escandinávia e por aí vai. A obsessão com temas de natureza sexual – o verdadeiro erro de Beowulf nessa versão, aliás, é a luxúria, e não o orgulho desmesurado, como no poema – também é típica de Gaiman e do cinema moderno. Mas o fato é que ela acaba soando “errada”, deslocada, dentro do contexto mítico do personagem, assim como a visão cínica de que as lendas são construídas em benefício daqueles que detêm o poder. E é claro que o lado religioso do poema também está todo bagunçado – o autor de “Beowulf” via a chegada do cristianismo como um evento altamente positivo, sendo ele próprio cristão, e até onde sabemos a fé em Cristo NÃO tinha chegado à Dinamarca por volta do ano 500.

Em suma, trata-se de um filme que poderia ter sido muito melhor do que é. Mas vários de seus aspectos podem servir como introdução interessante ao mundo heróico germânico. 

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