A idéia de que a Saga do Anel foi "escrita" originalmente por Frodo, Bilbo e Sam ajuda a dar peso histórico próximo do real às obras e, de quebra, até explica por que Gollum originalmente era "bonzinho" na primeira edição de "O Hobbit". Curioso? Entenda melhor lendo o texto abaixo:
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A obra de ficção do romancista e filólogo britânico J.R.R. Tolkien (1892-1973) continua a ocupar um lugar único entre a literatura de fantasia, seja por sua posição de permanente proeminência no gosto do público, seja por seu papel de paradigma. Mesmo quando um autor busca ironizar ou subverter os ditames da literatura de fantasia, a obra tolkieniana tende a permanecer no pano de fundo como um marco a ser suplantado, ou com o qual se dialoga. As razões que explicam essa permanência são variadas. No entanto, não seria simplificador demais afirmar que um dos principais fatores por trás dela é o poderoso “efeito mitológico” conjurado pela narrativa de Tolkien, em especial nos textos que o autor apelidou de legendarium da Terra-média. Nessas narrativas, das quais o romance O senhor dos anéis (1954) é o expoente mais acabado, Tolkien chegou muito perto de criar, com grau impressionante de detalhe, o equivalente ficcional de uma mitologia completa, dos textos teocosmogônicos familiares ao leitor da Bíblia ou de Hesíodo a um esboço – nunca completado – de narrativa escatológica, que mescla influências do islandês antigo e da tradição apocalíptica.
A recriação mitológica, se analisada detidamente, revela-se um caso especial de uma característica mais geral da obra de Tolkien, apelidada por Shippey (1982) – um tanto vagamente, é verdade – de “profundidade cultural incomum”. Com essa expressão, Shippey se refere a uma série de procedimentos tolkienianos cuja função é simular camadas estratigráficas de diversidade cultural, história e mito por trás do que está se desenrolando na trama mais imediata. Defrontado com esses procedimentos, o leitor torna-se capaz de intuir a existência pregressa de um enorme conjunto de acontecimentos históricos e mitológicos, que servem de base para os comportamentos e crenças dos personagens. Com algum grau de exagero, comentaristas variados da obra tolkieniana chegaram a afirmar que o autor se tornou, em algumas décadas, o equivalente de um povo inteiro, justamente por ser capaz de colocar em pé esse edifício de profundidade cultural simulada.
Grandiloqüência à parte, a afirmação faz sentido: os tijolos do edifício ficcional tolkieniano estão dispostos de tal maneira que seu efeito sobre o leitor é o de um equivalente funcional da história e da mitologia “reais”. Daí deriva, em parte, sua força imaginativa. O presente trabalho é uma tentativa de esmiuçar um dos fios dessa tessitura: a pseudotradição de manuscritos hobbits que seria a “fonte” dos textos apresentados em O senhor dos anéis e no romance que o precedeu, O hobbit (1937), bem como na coletânea poética As aventuras de Tom Bombadil (1962). Em ambos os casos, Tolkien se apresenta como o tradutor de manuscritos antigos escritos e/ou compilados originalmente pelos protagonistas dos dois romances, os hobbits Bilbo, Frodo e Samwise. Pretendo mostrar como essa tradição inventada de manuscritos se sobrepõe à história real de como ambos os livros foram escritos e acaba por fortalecer, de forma significativa, a ilusão de profundidade histórica e cultural que eles proporcionam.
Em primeiro lugar, é importante salientar como a perspectiva filológica ajudou Tolkien a formular essa estratégia. Embora tenha se tornado mundialmente conhecido por sua obra de ficção, o autor britânico construiu uma carreira longa e prestigiosa como filólogo na Universidade de Oxford, ocupando-se principalmente do estudo do inglês antigo ou anglo-saxão (fase da língua inglesa que abrange, grosso modo, o período que vai da invasão germânica no século V à conquista normanda em 1066) e do inglês médio (da conquista normanda ao século XVI). Com uma visão essencialmente transdisciplinar de sua área acadêmica, Tolkien empregava seus conhecimentos sobre a lingüística histórica germânica como ferramenta para iluminar a sociedade, a cultura e, principalmente, os monumentos literários da Inglaterra medieval, como os poemas Beowulf e Sir Gawain and the green knight. Shippey (1982, 2000), filólogo que ocupou a mesma cátedra de Tolkien em Oxford antes de se transferir para a Universidade Washington em Saint Louis (Estados Unidos), assinala que Tolkien compartilha com seus pares filológicos do fim do século XIX e começo do século XX uma paixão pela reconstrução lingüística, histórica e mitológica – em suma, pelo que Shippey chama de “realidade-asterisco”.
O termo deriva do uso que a lingüística histórica faz do asterisco para marcar uma palavra hipotética num idioma ancestral, cuja ocorrência nunca foi registrada diretamente, mas cuja existência pode, mesmo assim, ser inferida com certeza quase matemática. (A comparação dos plurais da palavra para “homem” nos vários idiomas germânicos, por exemplo, torna quase certo o fato de que, na fala-ancestral de todas essas línguas, esse plural era a palavra *manniz – marcada, como se vê, com um asterisco.) A confiabilidade dessas reconstruções se baseia em “leis” de transformação fonética que parecem valer para todas as línguas do planeta e derivam, em última instância, da própria estrutura do aparelho fonador humano. Mas os filólogos “reconstrutores” não se detiveram apenas na forma de palavras isoladas. Usando o método comparativo, abrangendo vastas quantidades de línguas, variantes dialetais e manuscritos (quando estes estavam disponíveis), eles se punham a desencavar o que teria sido o sentido original dos cognatos primitivos de palavras atuais em suas línguas de origem. Também empregavam as evidências lingüísticas para reconstruir o que consideravam as versões “originais” da mitologia e do folclore de um dado povo, a forma historicamente correta de um poema tradicional ou mesmo os elementos principais da cultura material dos falantes da “língua-asterisco”. Na prática, portanto, tratava-se de uma mistura peculiar de ciência lingüística e atividade criativa. {mospagebreak}
Torna-se, portanto, um pouco mais fácil de entender porque autores como Fauskanger (2004) chamam Tolkien de “filólogo criativo”. A designação pode parecer algo pleonástica em vista da exposição feita no parágrafo acima, mas ela é verdadeira no sentido especial de que, em vez de trabalhar com idiomas e manuscritos já existentes, Tolkien aplica os métodos da filologia à criação lingüístico-histórica “do zero”. Isso fica mais evidente nos idiomas ficcionais criados pelo autor – um conjunto de oito a dez línguas, com vocabulário que pode chegar a milhares de palavras e detalhada evolução histórica que segue à risca as leis fonológicas obedecidas, por exemplo, na transformação da variante galaico-lusitânica do latim vulgar no português moderno. No entanto, elementos dessa mesma tradição filológica se revelam em outros aspectos da obra tolkieniana – em especial na tradição de manuscritos imaginada em detalhes pelo autor. O olhar de filólogo sobre a história e o mito ajuda a explicar por que Tolkien afirmava que a invenção de línguas era o principal fundamento de sua ficção:
‘Invention’ of course comes from Latin invenire, ‘to find’; its older sense, as Tolkien knew perfectly well, was ‘discovery’. If one were to say of nineteenth-century philology that ‘the discovery of languages was its foundation, one would be stating literal truth; as often, probably, Tolkien was playing with words, jusxtaposing the languages he had made up out of his own head with those that others had found or ‘reconstructed’ all over the world, so aligning himself yet again with his professional inheritance (SHIPPEY, 1982, p. 22-23)
Alguém poderia perguntar, no entanto, se não haveria um elemento de exagero em criar, do nada, todo um conjunto de idiomas ficcionais, ou toda uma tradição imaginada de manuscritos antigos, para alcançar o objetivo proposto por Tolkien. A explicação está ligada à visão muito peculiar que o autor tinha a respeito da tradição literária e mitológica de seu próprio país, a Inglaterra. Nas palavras do próprio Tolkien:
I was from early days grieved by the poverty of my own beloved country: it had no stories of its own (bound up with its tongue and soil), not of the quality that I sought, and found (as an ingredient) in legends of other lands. There was Greek, and Celtic, and Romance, Germanic, Scandinavian, and Finnish (which greatly affected me); but nothing English, save impoverished chap-book stuff. Of course there was and is all the Arthurian world, but powerful as it is, it is imperfectly naturalized,associated with the soil of Britain but not with English. (…) I had a mind to make a body of more or less connected legend, ranging from the large and cosmogonic, to the level of romantic fairy-story – the larger founded on the lesser in contact with the earth, the lesser drawing splendour from the vast backcloths – which I could dedicated simply to: to England; to my country (TOLKIEN, 1981, p. 144)
Ou seja, como filólogo e como ficcionista, Tolkien encarava com profunda frustração a falta de uma mitologia genuinamente inglesa que tivesse a amplitude e a coerência interna encontrada em outras culturas da Europa. Para o autor, esse “empobrecimento” era um resultado histórico direto da ruptura trazida pela conquista normanda, que quase eliminou a poesia e a mitologia em inglês antigo e fez com que a Inglaterra fosse dominada por modelos culturais de matriz latina e/ou franco-normanda. Algumas obras, como Beowulf, sobreviveram a esse naufrágio, mas a unidade cultural anglo-saxã foi perdida. A única reconstrução possível teria de ser feita começando de novo – e, essencialmente, é isso que o legendarium da Terra-média busca fazer.
A tradição de manuscritos que supostamente teria dado origem a O hobbit, O senhor dos anéis e As aventuras de Tom Bombadil recebe o nome coletivo de “Livro Vermelho do Marco Ocidental” (um nome que, em si, evoca manuscritos medievais do mundo real, como o Livro Negro de Carmarthen, coletânea importante de lendas do País de Gales). O Livro Vermelho é mencionado pela primeira vez no Prólogo de O senhor dos anéis e, apesar do que o nome pode dar a entender, trata-se não de um manuscrito único, mas de toda uma “família” de códices os quais, embora derivem de um original escrito de próprio punho pelos protagonistas da narrativa, apresentam uma variedade considerável em seu conteúdo, confiabilidade de informações e outras características importantes.
Tolkien se apresenta como o tradutor e editor dessa massa de antigos textos, o que, de acordo com Toury (1995) e Gonçalves (2007), enquadra as três obras tolkienianas na categoria de pseudotradução. Não é o propósito deste artigo discutir em detalhe a natureza da pseudotradução, procedimento já venerável e empregado em narrativas tão diferentes quanto as de Cervantes (Dom Quixote de la Mancha) e Eco (O nome da rosa). É suficiente assinalar, no entanto, que a pseudotradução tolkieniana aparentemente se insere na busca por profundidade cultural simulada que caracteriza os demais aspectos da obra do autor.{mospagebreak}
Vejamos como Tolkien apresenta o Livro Vermelho a quem está iniciando a leitura de O senhor dos anéis:
This account of the end of the Third Age is drawn mainly from the Red Book of Westmarch. That most important source for the history of the War of the Ring was so called because it was long preserved at Undertowers, the home of the Fairbairns, Wardens of the Westmarch. It was in origin Bilbo’s private diary, which he took with him to Rivendell. Frodo brought it back to the Shire, together with many loose leaves of notes, and during S.R. 1420-1 he nearly filled its pages with his account of the War. But annexed to it and preserved with it, probably in a sigle red case, were the three large volumes, bound in red leather, that Bilbo gave to him as a parting gift.(TOLKIEN, 1995, p. 14)
A descrição explica o porquê do epíteto do livro, obviamente. Mas o primeiro detalhe interessante a notar sobre a tradição de manuscritos do Livro Vermelho é que Tolkien a trata como qualquer filólogo trataria uma tradição de manuscritos do mundo real. Conforme explica Bassetto (2001), há uma série de procedimentos estabelecidos para que a comunidade filológica possa determinar a versão mais correta (do ponto de vista lingüístico e semântico) de um texto encontrado em manuscritos antigos. Esses passos canônicos são, em geral: recensio (o recenseamento de todos os códices e/ou rolos que registram o texto de interesse – uma peça de Ésquilo, como Os persas, por exemplo); collatio codicum (a comparação cuidadosa de um manuscrito com outro, de maneira a detectar variantes, “cochilos” do escriba ou mesmo distorções deliberadas do texto por motivos ideológicos, digamos); a classificação dos códices segundo sua origem, levando em conta se foram produzidos de próprio punho pelo autor original, entre outros detalhes; a chamada estemática, em que se estabelece a “árvore genealógica” dos manuscritos usando indícios lingüísticos, históricos e materiais; e, finalmente, emendatio (corrigir possíveis erros dos textos originais na edição final).
Ora, quase todos esses passos, de um jeito ou de outro, estão laboriosamente presentes na tradição do Livro Vermelho. A realização de alguma forma de recensio e de collatio codicum estão implícitas na passagem a seguir:
The original Red Book has not been preserved , but many copies were made, especially of the first volume (…) The most important copy, however, has a different history. (…) It was written in Gondor, probably at the request of the great-grandson of Peregrin, and completed in S.R. 1592 (F.A. 172). Its southern scribe appended this note: Findegil, King’s Writer, finished this work in IV 172. It is an exact copy in all details of the Thain’s Book in Minas Tirith. That book was a copy, made at the request of King Elessar, of the Red Book of the Periannath, and was brought to him by the Thain Peregrin when he retired to Gondor in IV 64. (TOLKIEN, 1995, p. 14)
A quantidade de pormenores de local e data pode parecer esmagadora para o leitor não-iniciado, mas o importante aqui é notar que se trata de uma cadeia de transmissão cultural ininterrupta que abrange mais de um século e meio – a abreviação “S.R.” corresponde a “Anos do Registro do Condado”, o que significa que, enquanto Frodo concluiu sua participação no Livro Vermelho no ano 1421 dessa contagem, a cópia do manuscrito que serviu de base para a pseudotradução de Tolkien só foi concluída no ano 1592. Não se trata de um caso isolado: até o leitor mais desatento, diante de pistas como essa espalhadas pela narrativa, é capaz de perceber o enorme peso da profundidade cultural simulada que esses detalhes sugerem. Além do mais, pensando ainda nos procedimentos filológicos canônicos, o pequeno trecho acima nos permite traçar a genealogia de manuscritos do Livro Vermelho, qual seja: cópia original de Frodo – Livro do Thain – cópia feita por Findegil, escriba do Rei. Estamos lidando, portanto, com a terceira geração de pseudomanuscritos.{mospagebreak}
Seria fácil argumentar que tamanha atenção a tais detalhes não passaria de um “jogo de paciência” literário, sem maiores implicações para a obra como um todo, caso esses procedimentos ficassem restritos à “moldura” da trama – a prólogos, prefácios, pós-escritos ou apêndices. Mas não é o que acontece. Tolkien faz questão de eliminar a ilusão de onisciência do narrador, tão típica do romance “clássico”, recorrendo justamente à polifonia da tradição dos manuscritos. O procedimento faz todo sentido quando se leva em conta que, se as narrativas foram compostas originalmente pelos hobbits Bilbo e Frodo, não há como supor que eles tivessem conhecimento ilimitado sobre a Terra-média e seus habitantes.
Assim, por exemplo, ao relatar o encontro de Frodo e seus companheiros com um grupo de elfos na floresta de Lothlórien, o narrador de O senhor dos anéis registra: “Frodo could understand little of what was said, for the speech that the Silvan folk east of the mountains used among themselves was unlike that of the West” (TOLKIEN, 1995, p. 333). Trata-se, no entanto, de um desvio de perspectiva por parte de Frodo, a fonte primária da história, como nos assegura o livro centenas de páginas mais tarde.
In Lórien at this period Sindarin was spoken, though with an ‘accent’, since most of its folk were of Silvan origin. This ‘accent’ and his own limited acquaintance with Sindarin misled Frodo, as is pointed out in the Thain’s Book by a commentator of Gondor (TOLKIEN, 1995, p. 1101).
Ou seja, o que Frodo havia percebido como uma língua desconhecida (devido ao seu próprio conhecimento limitado dos idiomas élficos) era, na verdade, o mesmo idioma que ele dominava rudimentarmente, o chamado sindarin, ou élfico-cinzento. O hobbit, nesse ponta da história, é como o turista que aterrissa na Jamaica e tende a achar que ninguém fala inglês por ali – sendo corrigido, décadas após sua morte, por um erudito que comenta sua narrativa.
Mais uma vez, alguém poderia argumentar que se trata de um detalhe menor. Tolkien, porém, fez questão de incorporar essa mesma ambigüidade e variedade de perspectivas, derivada dos pseudomanuscritos hobbits, num dos eventos centrais de seu legendarium, a descoberta do Um Anel, o instrumento máximo de poder do vilão demoníaco Sauron. O problema com o qual o autor tinha de lidar era espinhoso. Afinal, quando o Anel surgiu, na primeira edição de O hobbit, não havia nada que sugerisse sua natureza de mal transcendental. Tratava-se de um simples objeto mágico, um anel de invisibilidade, presente em mais de um conto de fadas infantil da tradição européia. O objeto chega às mãos do hobbit Bilbo num desafio de adivinhas, travado com a estranha criatura subterrânea conhecida como Gollum. Nessa primeira versão, Gollum não só aposta de bom grado o Anel como prêmio pela vitória na disputa como, ao ser derrotado, aceita com elevado fair play a situação e até pede desculpas a Bilbo por não poder dar ao hobbit o Anel prometido (Gollum não sabe que, num lance de sorte, Bilbo já havia se apossado da jóia).
“I don’t know how many times Gollum begged Bilbo’s pardon. He kept on saying: ‘We are ssorry; we didn’t mean to cheat, we meant to give it our only only pressent, if it won the competition’. He even offered to catch Bilbo some nice juicy fish as a consolation.” (TOLKIEN, 2003, p. 129)
O problema é que, entre 1937, quando O hobbit foi originalmente publicado, e 1954, data da primeira edição de O senhor dos anéis, as concepções sobre o Anel no legendarium tolkieniano tinham mudado radicalmente. O Anel deixou de ser um mero aparelho gerador de invisibilidade para se transformar no recéptaculo da essência e do poder do demoníaco Senhor do Escuro, Sauron. Como tal, o objeto seria uma influência profundamente corruptora e viciante sobre seu portador, de forma que Gollum preferiria a morte a ser separado do Anel. O resultado é que Tolkien reescreveu O hobbit de forma que, agora, Gollum se despedia de Bilbo Baggins de forma bem menos delicada. “Thief, thief, thief! Baggins! We hates it, we hates it, we hates it forever!” (TOLKIEN, 1996, p. 81).
Essa tensão entre o conteúdo da primeira e da segunda edições do livro foi resolvida precisamente por meio da tradição de manuscritos. No Prólogo de O senhor dos anéis, Tolkien conta que Bilbo, querendo evitar qualquer acusação de ter roubado o Anel de Gollum, registrou em sua versão do Livro Vermelho que havia recebido o objeto como um presente da estranha criatura. A verdadeira história teria sido revelada mais tarde pelo hobbit ao seu parente e herdeiro Frodo, o qual, sem coragem de apagar deliberadamente a narrativa do velho hobbit, simplesmente registrou a versão correta lado a lado da anterior. No fim das contas, algumas cópias do Livro Vermelho acabaram apresentando a versão falsa, enquanto outras continham a versão correta (TOLKIEN, 1995, p. 13). Dessa forma, alterações literárias do mundo real foram firmemente ancoradas na tradição imaginada do “mundo secundário” da Terra-média.{mospagebreak}
Os poemas apresentados na coletânea As aventuras de Tom Bombadil, um dos últimos livros publicados por Tolkien antes de sua morte, representam, de certo modo, o ápice dessa tradição imaginada de manuscritos. Ele descreve detalhadamente os vários tipos de poemas que podem ser encontrados dentro da narrativa principal do Livro Vermelho, associados às crônicas que a acompanham ou simplesmente como folhas soltas ou até marginália (coisa muito comum em determinados manuscritos medievais do mundo real). No Prefácio do livro, há informações sobre as diferentes mãos de escribas em cada poema – outra pista muito usada pelos filólogos para identificar a contribuição de múltiplos autores e/ou copistas no interior do mesmo códice, julgando-a pela “letra” de quem escreve. A influência das tradições poéticas das várias culturas da Terra-média (como os elfos ou os homens do reino de Gondor) sobre a poesia hobbit também é discutida, assim como a probabilidade de atribuir determinados poemas a personagens de O senhor dos anéis, mesmo quando essa atribuição pareceria certa a julgar pela presença dos nomes desses personagens no cabeçalho dos textos. O conhecimento do autor sobre a evolução histórica do inglês ajuda a dar um toque arcaizante quando ele atribui a um dos textos o título (rabiscado pelo escriba, segundo sua descrição) de Frodos Dreme (“O sonho de Frodo”, em inglês médio).
Cabe ressaltar que a “tradição hobbit” não é nem de longe a única tradição de manuscritos que Tolkien deixa vislumbrar como fonte da diversidade cultural e histórica de sua Terra-média. Pelo contrário: em praticamente todas as suas obras de ficção, o autor inclui elementos que sugerem um conjunto de tradições escritas e não-escritas por trás da narrativa que está “na superfície”. A tradição do Livro Vermelho é a mais elaborada por se associar diretamente a O senhor dos anéis, a obra magna do autor, e ocupa, a rigor, posição de destaque: o leitor é apresentado a ela antes mesmo de chegar à narrativa propriamente dita, e os pressupostos estabelecidos por essa moldura de transmissão cultural nunca desaparecem de todo. Tomados em conjunto, eles conjuram uma ilusão poderosa: a de um mundo em que a complexidade, a polifonia e os acidentes da história são tão determinantes quanto no nosso próprio mundo.