Na ampla e clara sala do trono em Tirioninquë, havia, na parede oposta à entrada e atrás do trono, uma porta entalhada com muitos adornos; ali era o local de reflexão do Senhor Fëaruin, pois atrás daquela porta ficava uma passagem nas montanhas que levava a uma espécie de clareira em meio à pedra; ali, Fëaruin cultivara um jardim belíssimo com flores brancas e amarelas e uma árvore cinzenta, em homenagem a Helyanwë, sua amada, cuja vida havia sido tomada por servos de Morgoth Bauglir ainda na Guerra das Gemas, enquanto Fëaruin esteve cativo nos calabouços escuros de Angband.
Ingolon, filho mais velho de Fëaruin, havia acabado de receber notícias de um batedor que circundava pelos arredores de Alcarost; e ele estava inquieto, buscava o pai, e quando não o encontrou àquela hora da manhã, sabia bem onde encontrá-lo; subiu rapidamente as escadarias de mármore de Tirioninquë, com certa dificuldade por estar vestindo sua cota de guerra e espada a cinto. Chegou ao salão e viu o trono de pedra e prata desocupado, e logo se dirigiu ao Jardim de Helyanwë, como era chamado por alguns. Ultrapassou a porta de madeira com detalhes em prata, atravessou a fenda na montanha e chegou; era início de primavera, e ainda havia um pouco de gelo sobre a grande árvore cinzenta, mas várias flores já se abriam para o esplendor da manhã enaltecida; e lá estava o senhor Alcarintur: os longos cabelos, negros como o ébano, porém brilhantes, estavam presos por uma trança, e a longa capa azulada jazia no chão ao lado do banco onde o noldo estava sentado; e ele vestia uma túnica cinza e uma calça negra; um fino cinto de prata estava à sua cintura, segurando uma adaga curvada forjada pelo seu próprio talento. Ele segurava uma pequena flor branca com as duas mãos, e seus olhos estavam fixos nela. Ali, mesmo com a natural imponência dos noldor e com a glória inerente àquele senhor élfico, ele não parecia um rei destemido, mas apenas um elfo sozinho e amargurado. Ingolon pensou em se retirar e deixar o pai em paz, mas o assunto era de urgência, e a aguçada percepção do alto-elfo já havia notado a presença do filho. Ele se levantou e abraçou o filho apertado.
– Ah, Ingolon, meu filho! – disse ele feliz; mas ao olhar dentro dos olhos do filho viu que havia algo errado, e sua voz ficou preocupada – Vejo que seu coração está perturbado; diga-me, qual a causa da tua aflição?
– Pai, trago-lhe notícias nefastas: infelizmente, o Elfo-Negro se reergue com um novo exército ao sul. São homens mortais fadados ao eterno sono, e seus números são assombrosos; pelo que os batedores dizem, eles superam a força militar de Alcarost em quase três vezes.
– São de fato funestas essas novas. Algum ataque?
– Não, eles ainda parecem estar marchando sem rumo; estão bastante longe de Alcarost, e não é para cá que eles estão caminhando. Partirei hoje ao meio-dia para reunir tropas e buscar mais informações.
– Sim, mas temos tempo. Sente-se, meu filho – as palavras de Fëaruin eram agora gentis e repletas de calor e conforto, como sempre foram, ainda mais para com seus filhos. Ingolon sentou-se, então, e seu pai a seu lado; aquele jardim parecia uma cura para o seu cansaço; o ar era límpido, e atrás da grande árvore, brotava da montanha uma água cristalina e leve; e dela, Ingolon bebeu um pouco, para aliviar a sede; e ele sentiu-se bem, como se sentia nos seus tempos de juventude ainda em Valinor, como quando sua mãe costumava niná-lo. Estar ali era como sonhar.
– Pai? – chamou Ingolon, com a voz macia – O senhor pensa muito em minha mãe?
Fëaruin abriu um sorriso e respondeu com ternura – Todas as horas, de todos os dias, de todas as semanas dos meses e dos anos desde que ela se foi dessas terras, e mesmo quando ela ainda estava ao meu lado.
E foi Ingolon que, à resposta do pai, sorriu – Sim, eu sei, apenas queria ouvir do senhor. E por um momento, os dois ficaram sem dizer nada.
– Filho, por que partiu de Aman, deixando lá quem amava? – indagou Fëaruin, quebrando o silêncio – Nunca pedi para que viesse comigo, nem a você nem a ninguém.
– Eu sei meu pai; pediu-me, inclusive, para que lá ficasse. Mas eu tinha que partir. E não me arrependo de tê-lo feito. Só gostaria que um alguém comigo viesse.
– Você sempre a amou com fervor, mas ela não quis partir. Você ainda a ama, não é?
– Tanto quanto ela ama outro – Ingolon tinha pesar nas suas palavras pela sua angústia.
– É uma trilha difícil. Você a queria? – o amor de pai de Fëaruin estava no seu olhar e na sua voz, na qual Ingolon encontrava conforto.
– Eu a amo mais que tudo, por isso não posso querê-la. Seria egoísmo de minha parte. Quero que ela tenha grande felicidade, mesmo que seja longe de mim; pois ela merece isso. E Finrod merece o amor de Amarië, assim como ela merece o dele.
– Mas você também o merece; não tê-lo não significa não merecê-lo.
– Talvez – repleta de tristeza estavam as palavras de Ingolon – Mesmo assim, às vezes desejo que eu fosse melhor. Superior a todos os príncipes dos Noldor. Quem sabe assim tivesse o amor dela. Mas eu nunca conseguiria ser melhor que nenhum deles. Queria ser grandioso pai, como o senhor. É como se eu me sentisse substituível; faço meu melhor, mas isso não parece ser o suficiente.
– Você é grandioso, meu filho; e substituível você nunca será. Nunca tente ser melhor que os outros, pois não é assim que se tem o que se deseja, não verdadeiramente. Eu aprendi que eu só posso ser melhor do que fui no passado se me cercar por quem é melhor do que eu; e isso inclui você. Estou certo que mereça o amor dela, mas pergunto-me se ela merece o seu.
– Agradeço por suas palavras pai – Ingolon tinha a voz trêmula, mas tentava retomar a austeridade de príncipe – Desculpe-me, mas preciso terminar meus muitos afazeres. Devo partir para o posto avançado de Hópatir, em Belegailin. Há muitos soldados de valor lá; devo trazê-los para cá; tenho um mau pressentimento.
– Temo que devo ficar, mas posso lhe acompanhar se você quiser. Maegnor deve retornar das fronteiras em dois dias, e eu poderia deixá-lo no comando.
– Não, meu pai, agradeço, mas a situação demanda o seu comando. Vou acompanhado de soldados de elite, e lá encontrarei outros; não vou me demorar.
– Está bem, meu filho. Assim será. Começarei o levante de armas em Alcarost amanhã – disse Fëaruin, que se levantava ao porte digno de um rei-guerreiro.
– Mais alguma palavra, meu pai? – indagou Ingolon com carinho.
E Fëaruin, com um sorriso, disse então as últimas palavras que Ingolon ouviria do pai: – A virtude está não em ser superior aos outro
s indivíduos, mas sim em ser superior àquele que um dia fomos. Nunca se esqueça disso.
Ingolon então se encheu de orgulho do pai e sorriu; levantou-se e saiu do Jardim com a graça imponente dos eldar – Até logo, pai – disse ele, e apesar da angústia, as palavras e o amor do pai o confortaram, como sempre. Ele saiu rápido, precisava terminar os preparativos para a viagem e partir logo em seguida.
– Você sempre foi o mais forte – sussurrou Fëaruin, sem que o filho ouvisse. Seu coração, entretanto, foi tomado por um temor pelo filho, e uma sombra passou pelo seu pensamento. Mas àquele momento, ele não sabia que aquela seria a última vez que ele veria Ingolon, já que a sombra que passou pelo coração de Fëaruin tomou forma, pois Ingolon partira para Hópatir, em Belegailin (que era como os alcarindrim chamavam o Mar de Rhûn), e lá ele morreria na sangrenta Batalha do Porto, onde lutou com o próprio Laitahero pela honra do pai e pelo seu amor perdido, e pela lâmina do Elfo-Negro foi assassinado. Seu corpo foi então esquartejado e jogado aos cães e aves de rapina.
E dessa forma atroz feneceu o nobre Ingolon, o Sábio, o mais generoso e o mais amargurado dos filhos de Fëaruin, que chorou e clamou por sua vingança, quando soube do acontecido pelos sobreviventes do ataque. Mas das últimas palavras que seu pai lhe disse, Ingolon jamais se esqueceu, e dizem que ele as sussurrava quando viu o momento de sua morte.