Aos Cuidados de Galadriel
A Senhora Galadriel trabalhava em seu tear quando Niéle se aproximou:
– Minha Senhora.
– Sim, Niéle?
– Haldir está aqui, Minha Senhora. Trouxe consigo uma mulher edain em grande sofrimento, faz dois dias que está em trabalho de parto.
O elfo estava debruçado sobre o corpo quase sem vida que colocara na cama do quarto que Niéle lhe indicara, e levantou-se com uma profunda reverência à chegada de Sua Senhora.
– Minha Senhora, me perdoe…
– Você fez bem em trazê-la, Haldir – falou a Senhora de Lothlórien antes que o capitão continuasse.
Com outra reverência, Haldir se retirou, ante a ordem silenciosa de Galadriel.
– Então? – perguntou Rúmil, quando o irmão mais velho se aproximou dos outros dois. Não saberia dizer em que falhara mais com Seus Senhores: se em ter deixado a pobre mulher cruzar a fronteira, se em poluir a incomparável Caras Galadhom com a presença daquela criatura, ou ainda em deixar seu irmão apresentar-se aos olhos da Etérea Rainha no estado em que se encontrava.
– A Senhora Galadriel disse que fizemos bem em trazê-la. Estas foram suas palavras. Vamos agora. Vamos nos lavar, comer e descansar. Vamos!
A mão da Senhora refrescou a fronte ardente, embora ninguém pudesse imaginar como aquele ser depauperado ainda possuía energia para gerar calor. O corpo da mulher estava sendo lavado pelas damas da Senhora, e Galadriel o estudou brevemente, apoiando-se à cama.
– Minha Senhora – Niéle oferecia-lhe seus apetrechos de cura, mas a Senhora de Lothlórien dispensou-os com um aceno e pediu a outra de suas damas que lhe trouxesse uma faca limpa, pura e afiada.
– Não, Niéle, se o bebê não encontrou um caminho para nascer até agora, não encontrará mais.
Uma gota preciosa escorreu pela face madrepérola de Niéle. O fado dos edain era realmente triste.
Galadriel escolheu um dos frascos trazidos por outra de suas damas, e despejou seu conteúdo na boca da mulher. Os gemidos fracos já quase inaudíveis foram cessando por completo. A expressão de sofrimento abandonou suas feições, dando lugar à paz naquela fronte.
As damas da Senhora Galadriel entoavam agora um canto baixo, triste mas sereno, com expressão de misericórdia.
A Senhora Galadriel pegou a faca de prata que Maitera lhe entregou numa caixa. Incrustada em seu cabo havia uma esmeralda verde clara, que reluzia.
Era um gesto de piedade acabar com aquele sofrimento, pensavam as damas presentes. Mas a Senhora Galadriel não dirigiu a faca para o coração ou a garganta da figura mirrada, e sim para a base do ventre.
“Mas é claro, a Senhora vai tentar salvar a criança!” – Pensou Niéle correndo para o outro lado da cama, aparando o sangue que começava a escorrer do corte antes que atingisse a Rainha.
Como se houvessem recebido instruções silenciosas, as damas se entregaram a uma série de tarefas, até que uma criaturinha grande para o corpo do qual havia saído, mas roxa, inchada e quase morta foi ter nos braços de Niéle. As elfas começaram a limpar o corpinho suavemente, enquanto Maitera dirigia todo o seu pensamento em transmitir o sopro da vida para a criança inanimada.
De repente o bebê tossiu, como se houvesse engasgado e começou a chorar, primeiro baixinho, depois a plenos pulmões, para deleite de todas.
Niéle, Maitera e as demais damas de Galadriel voltaram-se em êxtase para Sua Senhora ainda sentada na cama.
O corte no ventre da mulher edain estava fechado.
A Ausência de Crianças
Poucos dentre os elfos tinham muitos filhos, e, naquela época de incertezas em que o mal crescia e seu domínio sobre a Terra Média declinava, os séculos haviam visto raras crianças em Caras Galadhom.
Na verdade, há muito não se via nenhum nascimento entre aqueles que sentiam o chamado das Terras Imortais. O filho da mulher edain foi uma fonte de encanto. Um encanto há muito adormecido, mas que se revelou forte e poderoso mesmo num reino de encantamento como o da Senhora Galadriel e do Senhor Celeborn.
A criança foi honrada com um quarto próximo ao dos próprios Senhores, mas não seria incorreto dizer que berços e colchões lhe eram desnecessários, pois sempre havia braços ávidos por segurá-lo, e colos macios para o embalar.
Mîleithel, o bem amado, ele foi chamado, pois no coração de todos o amor pelo pequeno se acendia. Seu doce perfume de recém-nascido inebriava os sentidos de Caras Galadhom.
Risonha, animada e disposta a prodigalizar seus dons a todos que caíam em seu raio de visão, a criança, tomava sempre o caminho reto e direto para o colo e o coração de tantos quantos se aproximassem. Só quando já se estava sob seu domínio é que se chegava a perceber a verdade, que então tornava-se desimportante: o menino era feio, ao menos para os padrões dos elfos.
Haldir Conquistado
Rúmil ainda felicitava a si e aos irmãos pela decisão de levar a mulher a Caras Galadhom, quando Haldir foi chamado novamente à Capital de Lórien.
Haldir aproximou-se de Caras Galadhom com reverência. Experimentava a idéia de que, se a distância imposta pela função na fronteira lhe impingia a ausência, através desta lhe renovava a incomensurável alegria do retorno àquele lugar.
Em sua admiração pela colina incendiada de estrelas em que a cidade das árvores se transformava à noite, quando suas lamparinas verdes, douradas e prateadas se iam acendendo, escolhera para si mesmo um talan fora das muralhas, onde passava as noites que não estava na fronteira contemplado o coração do Reino dos Elfos na Terra Média.
Niéle olhava com adoração para a criança que dormia, mas se perguntava se todas as crianças dos edain seriam assim, com essa assimetria de feições, a pele escura e manchada, a testa proeminente, o maxilar mal encaixado?
Acariciou a plácida face adormecida e dirigiu-se ao quarto em que se encontrava a mulher.
A dama élfica sentou-se na borda da cama, observando agora a mãe daquela criaturinha tão amada. Largos e fortes eram seus traços, rudes se comparados aos traços delicados e elegantes das eldar, mas ainda assim harmônicos, belos em seu vigor – pelo menos agora que um pouco de carne começara a tomar seu lugar entre a pele e os ossos. Quadrados o queixo e os malares salientes, forte o nariz, embora curto; cheia e bem desenhada a boca, mas não rosada como a das mulheres élficas, e sim cada vez mais vermelha à medida em que a convalescença avançava.
..
Três semanas a Senhora Galadriel lutara contra a febre e a exaustão do corpo mortal, até se fazer vencedora. Entretanto a mente da jovem nada revelara. Seu nome, sua origem, sua história permaneciam desconhecidos até mesmo para Galadriel, a Sábia.
– Um véu tolda toda sua mente, como se somente no oblívio total sua alma pudesse permanecer junto ao corpo – dissera a Rainha.
– Niéle – Haldir pronunciou baixo seu nome.
– Mae Govannen, Haldir. – Suave era a voz de Niéle, e meigo seu olhar. Os longos séculos de amizade pouco diminuíam a timidez da dama frente ao soldado. – Feliz é sua vinda nestes dias felizes que chegaram – completou baixando os olhos.
Um murmúrio alegre chegou às suas orelhas pontudas, e Niéle sorriu novamente, fazendo sinal para que Haldir a acompanhasse ao cômodo contíguo.
– Mîleithel, meleth tithen, seu benfeitor está aqui, veio conhecer seu protegido – balbuciava ela ao sorriso sem dentes que lhe estendia os bracinhos.
– Niéle, fui chamado pela Senhora, devo me dirigir à Sua presença.
– Então já o fez, Capitão – A voz da Senhora Galadriel era sorridente, enquanto o guardião se lhe curvava.
– Faça-se de seu conhecimento que, desde sua última vinda a Caras Galadhom, é deste cômodo que os Senhores de Lórien governam. – A Rainha aproximou-se da dama, que com uma pequena reverência passou a criança aos seus braços.
Galadriel contemplou o rosto pequenino, sentindo a fragrância do corpinho. Além de sua filha, ela acalentara também os netos, é claro, mas então ela ainda não havia partido…
– Minha Senhora, espero que minhas ações tenham trazido mais um alívio do que um peso.
– De certo ele está ganhando peso rapidamente – Galadriel sorriu ao Capitão um tanto desconcertado com a resposta. – Em poucas semanas, já parece ter vários meses. Cresce em ritmo acelerado essa criança, e eu já vi muitas dentre os segundos filhos desde o seu despertar.
O menino acompanhou o som da voz da Rainha até se dar conta da nova presença em sua volta. O pequeno se esticou em direção a Haldir, e a Rainha o estendeu ao elfo.
Sem jeito ante o gesto inesperado, Haldir segurou o bebê, que imediatamente agarrou com força uma mecha de cabelo loiro, rindo muito enquanto puxava com força.
– Senhora … ei … acho que temos aqui um guerreiro forte e poderoso. – Haldir lutava para segurar o pequeno e ao mesmo tempo libertar sua trança, enquanto Niéle e a Senhora Galadriel deliberadamente observavam sem interferir, deliciadas com a magia em operação.
– Ei, calma.
– Ahn A!
– Vou lhe arranjar uma espada para você agarrar com essa mãozinha de ferro.
– Ih Ih Ahn.
– Vamos, tithen, largue por favor.
– …
– Não vai largar?
Fora a conversa mais íntima que o guardião jamais sonhara em ter com a Senhora de Lórien, mas naquele quarto, ouvindo os balbucios do garoto, envolvidos por sua presença, parecia absolutamente natural.
– Ele realmente é muito desenvolvido e forte. A Lua mal retornou ao ponto onde estava quando deixei Caras Galadhom pela última vez – o guardião lutava para recuperar a compostura frente à Rainha.- Realmente – Galadriel retomou parte de seu tom sério habitual, fazendo o Capitão acompanhá-la para longe da criança no colo de Niéle – contudo enquanto sua semente desabrochava como se aquecida por um sol generoso, a mãe mergulhava ainda mais fundo nas sombras. Só agora ela começa a voltar para a luz, mas parece haver perdido a chave da própria existência. Sua mente é um deserto, no qual não se vislumbra sequer miragem de memória.
Maegovannem leitor,
Se você está a procura de romance veio ao lugar certo, afinal, onde Haldir de Lórien, o arrogante capitão do galadhrim, é encontrado, a temperatura sempre sobe…
Se você está lendo essa história, gostaria muito de saber o que você está achando, através do e-mail myriara@yahoo.com.br, mesmo que seja só para criticar.
Aguardo por você no próximo capítulo,