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O Livro Negro de Arda – Capí­tulo 6

Continuamos a publicação da fanfic O Livro Negro de Arda, agora com o Sexto Capítulo: O Ferreiro e o Aprendiz. Os demais capítulos podem ser encontrados aqui.
 
 
PARTE PRIMEIRA. O CORAÇÃO DO MUNDO
O FERREIRO E O APRENDIZ. O COMEÇO DOS TEMPOS

Grande era o poder dos Valar, mas também os imortais podem cansar-se dos seus trabalhos. Por isso assim foi: o Rei do Mundo reuniu os Poderes de Arda e disse a eles:

– Tal como o Único criou os Ainur, frutos do pensamento Dele, agora criaremos nos também auxiliares para si, e eles serão parte do pensamento dos Grandes. E como Ainur – ferramentas na mão do Único, cuja vocação é realizar a vontade Dele, assim eles se tornarão ferramentas em nossas mãos, e ser-lhes-á dado o nome – Maiar. E eles serão nossos servos e nossos discípulos, povo dos Valar. E que crie cada um para si Maiar à própria imagem e semelhança. E Eru colocou no meu coração que este feito será do agrado Dele, e Ele dará vida às nossas criações como antes Ele deu a vida aos Ainur.

E foi de acordo com as palavras dele.

“Vocês serão meus discípulos, mas não meus servos, e serão diferentes de mim – pois para quê criar à própria semelhança, o próprio reflexo, a própria sombra? A noite de Ea dar-lhes-á a sabedoria, Arta – a força, e eu lhes darei a alma. Que os seus corações se abram para o Canto dos Mundos, que seus olhos vejam a beleza do Universo. A sua alegria tornar-se-á a minha alegria, e sua dor – a minha dor, meu discípulos: como poderia ser diferente?..”

O Maia mais velho abriu os olhos e, ao ver o rosto daquele que se inclinava sobre ele – belo, sábio e inspirado – sorriu, estendendo as mãos para o Alado, como uma criança. E Vala, sorrindo também, colocou as mãos sobre a fronte e o peito do discípulo. Maia fechou os olhos.

“Parte do meu pensamento, parte da minha força, parte do meu coração – meus discípulos…”

…Uma onda atordoante de ódio alheiro desabou sobre ele, derrubou-o, atirou-o à cratera uivante do vazio veloz, tirando a consciência e as forças. Ele deixou de ver e ouvir, ele perdia a si; ele não lembrava nem do que houve com ele, nem de quanto durou esta tortura. Somente quando isso tudo acabou, o escuro tocou suavemente o rosto febril, e estrelas olharam nos olhos dele…

– …Você sofreu mais do que todos por causa do Inimigo, Grande Ferreiro; que agora as criações do Inimigo tornem-se seus servos, para o golpearmos com as armas dele próprio. Ou talvez, com auxílio destas criaturas, nos poderemos penetrar na mente de Melkor, nas profundezas sombrias dos planos dele, pois essas criaturas são, em essência, parte da mente dele.

– Grande é a sua sabedoria, Manwe, realmente você é o Rei do Mundo, você, o mais poderoso de nos. Que seja assim como você diz.

…As mãos de alguém deitaram sobre os ombros dele. Não aquelas – fortes e carinhosas, apesar de que essas palmas também irradiavam força. Ele abriu os olhos. E o rosto, inclinado sobre ele, era outro…

– Quem é você?

– Eu sou seu criador, senhor e mestre, eu sou Aulë, o Grande Ferreiro, senhor de tudo que é corpo de Arda.

– E onde está – aquele?

– Quem? – o olhar dos olhos escuros de Aulë tornou-se tenso, quase assustado.

– Aquele, de olhos límpidos, alado… Quem era ele?

A voz áspera do Ferreiro arranhava os ouvidos:

– Isso foi uma visão sua. Alucinação. Você imaginou. Esqueça.

O Maia respirou baixinho. “Alucinação… que pena…”

– E eu? Quem eu sou?

– Você é Maia, criação da minha mente. E dar-lhe-ei agora um nome – Aulendil, servo de Aulë. Você se tornará o meu auxiliar nos meus trabalhos e realizará a vontade o Único e dos Poderes de Arda.

…Irmãos – mas quão diferentes um do outro, pelo espírito e pelo corpo… O melhor aluno – Artano, o mais habilidoso – Curumo. Um – zombeteiro, audaz, outro – calado, aplicado e esforçado. Um – mestre, outro – artesão. O mais velho tem os olhos de Melkor, o espírito de Melkor; o mais novo é quieto, bondoso e submisso, dá até tristeza: mandaria para longe do próprio olhar, só que não tem porquê… Mas com Artano, o Ferreiro freqüentemente era severo e pouco afável: temia as perguntas estranhas, quase heréticas, do Maia, para as quais não se atrevia a procurar respostas, as dúvidas dele, a impetuosidade dos pensamentos e decisões… Gerado pelas Chamas, ele próprio também uma chama furiosa e desobediente: Artano Aulendil, Artano Aikanaro… E era apavorante pressentir que algum dia a memória adormecida no fundo dos olhos iguais a duas estrelas luminosas acordará. E então ele partirá – e o castigo do Único o alcançará, tal como alcançou o seu criador…

Um dia, Artano trouxe-lhe um punhal – o primeiro objeto que fez sozinho; e novamente o medo despertou na alma do Ferreiro. Seres flexíveis com olhos de fogo se enlaçavam sobre o cabo, lembrando dolorosamente aquela, alada, que-dança-na-chama. Aulë via a ofensa amarga nos olhos do discípulo: e ele que pensava que o mestre compartilhará a alegria dele, pois é a primeira criação… E ouviu – palavras frias e indiferentes. “Será que você compreenderá – não sou eu que falo, é o meu medo, a minha dor… Você é querido demais para mim, e eu temo por você…” Não compreendeu. Não quis. E a partir daquela hora, era como se uma muralha de isolamento se tivesse se erguido entre eles.

O próprio Aulë há muito se conformou com o destino dele; da vida anterior restou somente a amargura, saudade abafada. Ele tentava não recordar – e, provavelmente, ele até conseguiria fazer isso, se não fosse Artano…

E o Maia ainda não conseguia esquecer aquele, o primeiro que ele viu ao acordar. À toa ele procurava os traços do Alado nos rostos dos Valar; e então um pensamento estranho nasceu na sua alma – pensamento que lhe pareceu insano. Ele expulsava-o, mas o pensamento não ia embora; e um dia ele se atreveu a fazer a pergunta ao Ferreiro:

– Eu ouvi muito sobre o Inimigo, mestre, mas até agora eu não sei quem ele é e que nome leva. Como é a aparência dele? Porque ele é hostil aos Grandes?

O medo piscou nos olhos de Aulë – agora o Maia via isso claramente; as palavras soaram decoradas e artificiais:

– Ele viu, ele, que leva o nome de Melkor – o que se ergue em poder, que Arda está se transformando num maravilhoso jardim, deleite para os nossos olhos, pois as tempestades dela foram domadas. E ele viu também que os Poderes de Arda adquiriram aparências belas e nobres, semelhantes às das Crianças do Único. E a inveja estava no coração dele, e ele também tomou uma forma visível – escura e terrível como o espírito dele, pois a raiva ardia dentro dele. Assim ele entrou em Arda, ultrapassando em força e grandeza os outros Valar; mas a destruição é a força dele, o mal – o poder, e na grandeza dele há somente horror. Ele se assemelhava a uma montanha cujo pico está acima das nuvens, com um manto de gelo e coroa de chamas, e o olhar dele queimava como fogo e era penetrante como frio. No passado, grandes dádivas de poder e de sabedoria foram dadas a ele, mas ele se atreveu a se rebelar contra o Único. Inveja e ódio secaram a alma dele, e agora ele não pode criar mais nada – além de zombarias com as criações dos outros. Por isso, a alegria dele está na destruição, e é por isso que o nome dele não se enumera mais entre os nomes dos Valar.

Artano pensou por muito tempo, e em seguida perguntou novamente:

– Mestre, responda, de onde há nele a raiva e o ódio? Você mesmo dizia que todos os Ainur são criações da mente do Único; e não há nada nos planos deles que não tenha Nele o seu início. Mas isso significa que o mal também fazia parte da mente de Eru…

Aulë ficou boquiaberto.

– …E conte-me, o que é que ele invejou – o mais poderoso entre os Ainur, que tinha parte nos dons de todos os seus irmãos?

O Ferreiro finalmente recuperou a fala:

– Como você se atreve a pensar algo assim! Como você se atreve a insultar o Criador de Tudo o que Existe! Ou você pensou, besta insignificante, servo indigno dos Grandes, que pode compreender toda a profundidade dos planos do Criador do Mundo?!

Maia recuou um passo involuntariamente – tão inesperado foi este acesso. A voz do Ferreiro soava irada, mas os olhos imploravam – cale-se, cale-se…

– Mas, Mestre, eu…

– Saia da minha frente!

O Maia se retirou, sem saber o que pensar; tanto essa ira demonstrativa, quanto o medo oculto eram igualmente incompreensíveis para ele. Ele entendeu: nem todo o pensamento pode ser dito em voz alta, nem toda pergunta pode ser feita – até para o mestre; e nem para todas as perguntas o mestre conhece a resposta.

E quando Artano retornou, Aulë perguntou a ele:

– Você arrependeu-se das suas palavras?

E, novamente, o Maia imaginou notar nos olhos do Ferreiro – a súplica; e cedendo à súbita compaixão, ele respondeu, baixando os olhos:

– Sim, – e adicionou, – senhor.

Senhor. Não mais mestre. “Está tudo certo – o que pode ensinar um covarde?” – com tristeza pensou o Vala, mas falou em voz alta uma outra coisa:

– Você expulsou os pensamentos rebeldes da sua alma?

– Sim, senhor, – sem levantar os olhos respondeu o Maia.

E o Ferreiro acreditou. Era apavorante demais – não acreditar.

– …O você está fazendo, Grande Ferreiro? Para que servirão estes cálices enormes?

– Assim disseram os Valar: que seja expulso do mundo o Escuro, que reine ali a Luz eterna. Por isso nos ergueremos as Lâmpadas no norte e no sul.

– Porque você não chamou nenhum de nos, seus discípulos, para que nos o auxiliássemos em seus trabalhos?

– Vocês ainda não compreenderam o suficiente a profundidade dos planos de Eru. Este é um feito para mim, os seus poderes não bastam.

– Senhor, você disse – Luz… O que é isso?

– Luz destrói o Escuro – o Mal: Luz é a vida, como o Escuro é a morte. Eru nos ordenou destruir o Escuro, para dar vida ao mundo. Como aquele que criou o Escuro foi expulso para lá dos limites de Arda, assim agora expulsaremos também o próprio Escuro, e haverá o dia eterno.

– …Veja quão belas são as Lâmpadas!

– Senhor, diga… Isso que é Luz?

– Sim, e porque você pergunta?

O próprio Artano não sabia porque duvidou das palavras de Aulë, mas não queria falar sobre as suas dúvidas. Ele desviou o olhar:

– Desculpe, senhor… Mas é que eu nunca vi a Luz…

– Sim, isso é a Luz. E agora você verá em toda a grandeza os Planos do Único!

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