A neve se acumula no topo das colinas. Enquanto as vidas dos homens vêm e vão, o norte permanece inabalado. Frio, estéril, solitário. Pelas ruínas da Cidade dos Reis, sombras andam.
Desde as lembranças dos mais velhos, vivemos e lutamos sob essa escuridão. Protegendo aqueles que não tem a sensatez de partir, nem a coragem de lutar.
O inverno consome muitas vidas, e algo em mim desaparece pouco a pouco..
***
Chamo-me Arandil, vivo nessas terras desde que nasci. Ainda criança, treinei a arte da espada e do arco, da caça e da sobrevivência no ermo. Meu povo sempre lutou contra o ambiente, que parece quer nos expulsar. Às vezes, à noite, o vento traz lamentos, sussuros, de medo e ódio. A própria terra parece conter a essência das trevas..
Meu povo vive disperso, sempre mudando. Vencendo batalhas e perdendo guerras. Cada vez menos numeroso.. Quando alcancei a puberdade, recebi a notícia da morte de meu pai. “Ele se foi”, eles disseram, e muitos assim se perdiam. Simplesmente desapareciam uma noite, como se sugados pelas sombras que tanto se esmeravam em combater.
Mas, recentemente, um perigo mais real passou a nos ameaçar. Relatos confusos de feras espreitando florestas profundas, abominações lupinas que exalam a morte, começaram a aparecer. Nossos líderes enviaram caçadores, que foram encontrados feridos e mortos, balbuciando em terror. Vendo esses homens eu tomei minha decisão de investigar por mim mesmo, por isso viajei, até as bordas setentrionais das Colinas de Vesperturvo, onde o mal tem muitas formas.
Não tenho os sonhos de meus irmãos. Não consigo vislumbrar a nova era que tanto aguardam. O Mundo sempre foi feito de dor e sofrimento, e uma peleja eterna contra um inimigo intangível. Se houver um Rei, ainda que um dia ele alcance seu trono, o que poderá fazer que traga alguma mudança? O inverno sempre chega, e a morte e a destruição nos levam a todos. Assim foi, assim sempre será.
***
Agora estou perto do meu objetivo. Minhas botas estão se estragando, bolhas e calos machucam meus pés, e a sujeira dos charcos se infiltra nas frestas. É doloroso caminhar.
Todos os dias, afio minha espada. Ela não tem nome, não tem runas ou palavras inscritas. É apenas um instrumento de aço, a ferramenta com que nós que vivemos nos ermos do norte plantamos nossa existência no coração do inimigo. A espada de um guerreiro é sua vida. Portando, cuido da minha. E ainda que não lute por algum grande ideal como meus pares, a brando para me sentir vivo. Para dizer à escuridão que lutarei enquanto houver força em meu ser. Minha espada é um desafio, bem como minha própria vida.
Meu arco tornou-se inútil. Sua corda rompeu-se, e também as cordas reservas. Nesse frio é preciso oleá-la bastante, para que não se tensione além de seu limite. Mas em minha pressa para partir, esqueci de trazer o óleo. Agora pouca ração me resta, e começo a sentir o vazio da fome.
Ao menos mantive minha capa e meus cobertores. Do contrário a morte pelo frio seria inevitável.
Apesar da dificuldade e dos riscos, toda noite acendo uma fogueira. É difícil encontrar abrigo do vento, mas as árvores secas fornecem um bom combustível.
Na terceira noite, ouço uivos distantes. O inimigo me encontrou finalmente.
***
A matilha me cerca, doze ou quinze grandes lobos. Seguro firme minha espada à frente do corpo, com as duas mãos. Eles rosnam e ameaçam, mas não atacam.
Me estudam e esperam.
Vejo então seu líder, um grande lobo negro de olhos vermelhos, quase do tamanho de um pônei. Seu pelo grosso e sua juba se eriçam de antecipação. Suas presas, como adagas de prata pingam saliva num esgar de ódio que quase poderia ser o sorriso de um louco.
A uma ordem todos atacam.
***
Desci todo o peso do metal em minhas mãos no focinho de um atacante, que se abre sujando a neve com seu sangue pútrido. Uma das bestas salta sobre mim me derrubando, suas garras arranhando meu gibão e sua boca monstruosa ameaçando dilacerar meu rosto. Solto a espada e puxo uma adaga da cintura, uma arma simples, mas eficaz. Corto a garganta da fera e sinto seu sangue quente jorrar sobre mim.
Sinto um puxão no braço esquerdo, um dos lobos o prendeu em suas mandíbulas, e agora sacudia, tentando romper tendões e carne. Com o peso do inimigo morto sobre mim não conseguia me virar para revidar o ataque, e a dor excruciante me fez temer perder o braço. O medo se fez mais forte, e o puxei com violência, deixando pedaços meus na boca da criatura. Senti então o peso inerte do membro mutilado.
Urrando de pura ira, saltei sobre o lobo e esfaqueei suas costas, enquanto seus companheiros investiam contra minhas costas, arranhando, morrendo e cortando. Senti que minha hora chegava..
Súbito, me vi só. Os lobos se afastavam lentamente. Minha mente se perdia em devaneios febris. Eu suava e tremia, pelo frio e pela perda de sangue. Vi meu próprio sangue vermelho tingir a neve e me enchi de horror.
Então o grande lobo veio em minha direção, e olhar em seus olhos era como contemplar o próprio abismo. Não suportava encarar, mas não tinha a vontade necessária para desviar o olhar. Ouvi uma voz ecoando em minha mente, passo após passo que a fera dava perante mim, “medo.. desespero.. a solidão e o temor das noites do ermo pouco a pouco lhe despedaçaram o ser.. sua coragem tornou-se amargura, sua confiança, frustração, e você caminhou por uma trilha sombria”.
A voz me atingia dolorosamente, e eu não conseguia me mexer. “Você não veio aqui para encontrar glória, ou vingança, nem mesmo para proteger os seus.. você trilhou essa trilhou esse caminho por desespero, pelo mais negro e devastador desespero, buscando a própria destruição”.
Um uivo brutal me acordou do meu devaneio, apenas instantes antes de eu ver a grande ferra arremeter contra mim. Lágrimas escorreram pelo meu rosto, “foi tudo pra isso, então?”.
E antes do hálito mortal cair sobre mim, pude ouvir tênue e distante.. “aqueles que lutam contra a Sombra por tempo demais, podem cair nas Trevas”.
“Você foi o seu próprio Lobo”.