A Valinor/Lothlórien tem a honra de dar continuidade à publicação de O
Livro Negro de Arda, publicando o segundo capítulo da segunda parte, chamado O PUNHAL. Leia mais sobre esta obra aqui na Valinor e confira os demais capítulos já publicados, no índice da obra
PARTE SEGUNDA. MANDARAM ESQUECER
O PUNHAL. A ERA DA ESCURIDÃO
E o primeiro ajudante dele na realização dos planos foi o mais velho dos discípulos dele – Artano Aulendil, igual ao próprio Ferreiro em poder e conhecimentos.
Porém os feitos de Aulë não estavam ocultos do Ilúvatar; e, no exato momento em que o trabalho do Vala se completava e ele começava a ensinar aos Anões tudo aquilo que ele mesmo sabia e conhecia, Ilúvatar dirigiu-lhe a palavra. E Aulë as palavras dele em silêncio.
– Por que fez isso? Por que tentou algo que sabe estar fora de seu poder e de sua autoridade? Pois tem de mim como dom apenas sua própria existência e nada mais. E, portanto, as criaturas de sua mão e de sua mente poderão viver apenas através dessa existência, movendo-se quando você pensar em movê-las e ficando ociosas se seu pensamento estiver voltado para outra coisa. É esse seu desejo?
Maia Artano sabia que não é assim; mas, ao ouvir a voz do Único, perturbou-se e não se atreveu a dizer nem uma única palavra.
E respondeu Aulë:
– Não desejei tamanha ascendência. Desejei seres diferentes de mim, que eu pudesse amar e ensinar para que também eles percebessem a beleza de Eä que tu fizeste surgir. Pois me pareceu que há muito espaço em Arda para vários seres que poderiam nele deleitar-se; e, no entanto em sua maior parte ela ainda está vazia e enfadonha. Na minha impaciência cometi essa loucura. Contudo a vontade de fazer coisas está em meu coração porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco entendimento que graceja com os atos de seu pai pode estar fazendo isso sem nenhuma intenção de zombaria, mas apenas por ser filho dele. E agora o que posso fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um filho ao pai, ofereço-te essas criaturas, obra das mãos que criaste. Faze com elas o que quiseres. Mas não seria melhor eu mesmo destruir o produto de minha presunção?
E, com lagrimas nos olhos, Aulë apanhou o grande martelo para esmagar os Anões. Então Maia Artano gritou:
– O que está fazendo, mestre? Eles são vivos, são suas criações; detenha a sua mão!
– Eu desobedeci à vontade do Único, do Criador de Tudo o que Existe, – gemeu Aulë e ergueu o martelo; mas Artano agarrou a mão dele, tentando impedir o golpe. E os Anões recuaram, amedrontados, e imploraram por clemência.
Então, vendo a humildade de Aulë e o arrependimento dele, Ilúvatar teve compaixão dele e do plano. E assim disse:
– Eu aceito a sua oferta. Veja agora: essas criaturas têm agora vida própria e falam com suas próprias vozes…
E Aulë abaixou o martelo e alegrou-se, e agradeceu a Ilúvatar:
– Que abençoe o Único as minhas criações!
E Ilúvatar respondeu assim: – Como Eu dei existência e carne aos pensamentos dos Ainur no início do Mundo, assim agora Eu darei um lugar no mundo para as suas criações. E serão eles assim, como você os pensou; Eu dei vida a eles, e não mudarei mais nada neles. Contudo não tolerarei o seguinte: que esses seres cheguem antes dos Primogênitos de meus desígnios, nem a sua impaciência será premiada. Eles dormirão sob as rochas, até que os Elfos, Minhas Crianças na Terra-Média acordem; e você esperará. Mas quando chegar a hora, eu os despertarei, e eles serão como filhos seus; e muitas vezes haverá discórdia entre os Meus filhos e os seus: entre os Meus filhos adotivos e os Meus eleitos.
E Aulë agradeceu Ilúvatar novamente, ajoelhado, e fez segundo a palavra dele; por isso, até o acordar dos Elfos, os Sete Pais dos Anões dormiram sob as rochas.
Mas a ira estava no coração do Maia, pois ele ouviu a mentira de Ilúvatar e viu a incompreensível obediência de Aulë. E ele disse assim:
– Eu o julguei meu mestre, mas hoje eu o renego. Somente um covarde poderia erguer a mão para as próprias criações.
– Você… – Aulë engasgou de tanta indignação. – Como você se atreve, uma ferramenta cega nas minhas mãos, servo, escravo, falar assim comigo!
– Atrevo-me. Eu não sou mais seu servo. E eu repito: você é covarde, como também todos aqueles que fugiram para Valinor!
– Você… você… – O Ferreiro não encontrava palavras; e, finalmente, expirou – Vê-se Melkor te fez a imagem e semelhança dele!
Aulë tremia violentamente.
– A-ah, quer dizer que não foi você que me criou.
– Sim! E se mande, vá até ele! E eu te amaldiçôo! Você ainda voltará, ainda implorará por perdão! – o desespero transparecia na voz do Ferreiro.
Artano mediu Aulë com um olhar de desprezo.
– Covarde.
E, cuspindo sob os pés de Aulë, ele virou-se e foi embora – para a escuridão. Aulë não teve coragem de ir atrás dele, não teve coragem nem mesmo para chamar o Maia. Ele retornou a Valinor.
…O Maia andava rapidamente e com confiança, apertando os punhos.
“Covarde, insignificância. Ilúvatar, pelo que se vê, não tolera rivais: amaldiçoou um, amedrontou o outro. Tudo bem. “Vá até Melkor”, diz? E irei. Ele, pelo menos, não tem medo de nada. Nem da ira do Único…”
Ele parou. Pois falavam: Senhor do Escuro. Inimigo.
“E eu estou indo para lá… O que ele fará comigo?.. Voltar? Reconhecer a culpa, arrastar-se na poeira? Na frente daquele covarde?! Não mesmo! Não há caminho de volta para mim. Direi: eu vim, me aceite. Que faça o que quiser – tudo é melhor do que a humilhação…”
No portão negro de Helgor, ele parou, indeciso. Mas então uma figura surgiu na frente dele, esboço de chamas rubras na escuridão: Achero. Ele fez um sinal: siga-me. E Maia obedeceu. O portão negro abriu-se.
… Eles iam pelas longas e muito inclinadas escadarias – como ao coração de Arda, por seqüências infinitas de salas subterrâneas, e Maia olhava, surpreso, para os lados. Mas a ultima sala o impressionou mais do que tudo que ele havia visto. Assoalho negro de pedra; mas as paredes e o teto cintilam com uma luz suave e constante. Como correntes de água petrificadas – colunas; parece – toque-as, e responderão com um suave tinir…
O Maia estava perante aquele a quem em Valinor chamavam de Senhor do Escuro; o guia desapareceu sem ser notado: ele estava sozinho. Ele levantou o olhar e ficou imóvel.
Este rosto – orgulhoso, majestoso e belo – era o primeiro que ele viu ao acordar. E agora via novamente.
“Melkor… Então, Melkor. Aulë disse a verdade”.
– Saudações, Vala Melkor.
Melkor olhou fixamente para o Maia; nos olhos dele brilhou uma sobra de zombaria:
– Saudações também a você, Maia de Aulë, Artano-Aulendil.
O Maia estremeceu.
– Eu não tenho mais nome. E não sou mais servo de Aulë!
– Por quê?
Maia começou a contar, apertando os punhos de raiva. Melkor ouvia em silêncio e por fim disse:
– Quer dizer, foi assim que você partiu. Você é corajoso e audaz, Maia. E o que é que você quer de mim?
– Eu quero tornar-se seu discípulo. Eu não tenho nada – alem disso, – Maia tirou da cintura o punhal e estendeu-o a Melkor. – Tome. Mas me aceite como seu discípulo!
Melkor, sem olhar, pegou a arma e sorriu torto:
– Não se compra aprendizagem com oferendas. Por acaso, você não sabe disso?
Mas, quando olhou para o punhal, o rosto dele mudou. Duas serpentes de aço enlaçavam-se sobre o cabo, e os olhos delas brilhavam com um fogo vivo.
– De onde você conhece este sinal?
– Não sei… Talvez alguém contou, ou talvez eu sempre soube… Pareceu-me – a Sabedoria da Existência…
– Você está certo; somente isso vem do Escuro. E as pedras? Eu nunca vi iguais; o que é?
…O punhal foi o primeiro objeto que ele fez sem o auxílio de Aulë. Mas quando ele trouxe, feliz, a criação dele ao Ferreiro, aquele olhou de uma maneira estranha para o cabo do punhal e disse, ostentando indiferença:
– O que você pode criar tal que não seja do meu conhecimento? Você é a continuação da minha mente, e nem nos seus planos, nem nos seus feitos há algo que não tenha o seu começo absoluto em mim.
O Maia estava desnorteado. Aulë finalmente dirigiu o olhar para o próprio Maia:
– E que roupas são essas? Por quê preto?
– Eu gosto. Será que você não vê: é bonito?
A resposta era insolente. Aulë franziu a testa resmungou:
– Bonito, bonito… Foi dito: os servos dos Valar devem vestir as cores deles. Por quê você se considera uma exceção? Bonito… Quem é que meteu isso na sua cabeça?
– Você mesmo que disse: eu sou a continuação do seu pensamento, e nem nos planos, nem nos meus feitos há algo que não tenha seu começo absoluto em você!
E, olhando para o Ferreiro com os olhos penetrantemente claros, o Maia sorriu. Aulë soube o que responder.
…Pela primeira vez, alguém se interessou pelas criações do Maia Artano. Por isso, ele começou a contar, com alegria de criança, como pensou em fazer uma gema semelhante a uma gota de sangue de Arda; como pegou uma partícula do fogo de Arda e a aprisionou num cristal; como enfeitou com essas pedras aquilo que foi criado por ele…
Melkor ouvia atentamente, às vezes fazia perguntas, e depois disse:
– Você tem mesmo o dom de criar. Então por que você me procurou – afinal, fala-se que eu não sou capaz de nada além de destruir?
O Maia olhou para as mãos de Melkor, deitadas calmamente sobre os braços do trono. Estreitas, fortes. Dedos finos e longos. Mãos surpreendentemente bonitas.
– Você tem mãos de criador, – disse Maia em voz baixa. – Só que eu nunca vi as suas criações…
O Vala sorriu – quase imperceptivelmente, com o canto dos lábios – cerrou os olhos e lentamente passou a mão sobre a lâmina do punhal. E esta começou a arder com um fogo de palidez gelada sob os dedos dele.
O Maia olhou para Melkor, aturdido.
– Como você fez isso? Nenhum deles sabe…
– Eles negaram a Escuridão que é mais antiga do que o mundo; negaram também os seus conhecimentos. E os feitiços do Escuro são mais fortes que os feitiços da Luz. É simples.
Melkor estendeu o punhal ao Maia:
– Tome.
– Você… recusa o meu presente?
– Isso é seu por direito. E eu já lhe disse: não se pode comprar a aprendizagem com oferendas, – Melkor sorriu, mas desta vez tristemente. – Tome.
O Maia pegou a faca que cintilava friamente das mãos de Melkor.
“Eu não sirvo, – pensou o Maia com pesar, – e eu não tenho para onde ir. Para que ele precisaria de mim? Sei muito pouco. Sou capaz de muito pouco. Tudo está acabado”.
Melkor olhou atentamente para o jovem Maia e, levantando-se do trono, falou brevemente:
– Vamos.
O Maia seguiu-o lentamente.
“Agora ele dirá – vá embora. E o que eu vou fazer? Não voltarei. De jeito algum voltarei. Pedirei de joelhos – que deixe aqui. Tudo o que quiser, eu faço. Só – continuar aqui com ele”, – pensava o Maia, obstinadamente.
Eles estavam agora no cume da montanha. E Melkor falou ao jovem Maia:
– Veja.
No começo, aquele não via nada além da escuridão costumeira. E depois algo estourou sobre a cabeça dele, com uma luz ofuscante – brilhante, fogosa, ardente… O Maia cobriu os olhos com a mão:
– Luz… de onde? O que é isso?
– O Sol.
– Foi você que o criou?
– Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe.
E o Maia olhava, e via como a bola de fogo, escurecendo – como o metal derretido que esfriava, – desapareceu no horizonte. E veio a escuridão, mas agora ele via nela a luz – faíscas, gotas que cintilavam com uma luz gelada.
– O que é isso?
– Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali – há outros mundos…
– Também criados pelo Único? Como Arda?
– Não. Eles existiam também antes de Eru; e ele não é o único criador, apesar de tentar a todo custo esquecer disso. O nome dele – Eru – significava inicialmente “Chama”; mas ele se nomeou Único e tenta fazer os outros acreditarem nisso.
O jovem Maia provavelmente se assustaria se alguém que não fosse Melkor falasse isso. Mas agora não havia medo: ele acreditava em Melkor e admirava-o.
“Ele é realmente destemido. E realmente é o mais poderoso dos Ainur. Não é à toa que os Valar o temem tanto”.
– Mas porque eu não via isso antes? – perguntou o Maia.
– Não somente você. Outros também – até chegar a hora. Somente olham, sem ver. Vontade de Eru. Eu me alegro por eles não terem conseguido fechar os seus olhos.
E, colocando a mão sobre o ombro do Maia, Melkor disse:
– Você será meu discípulo. Eu decidi faz muito. Ainda quando vi a sua criação.
Ele suspirou e adicionou, com uma tristeza incompreensível:
– Mas a primeira coisa que você fez foi um punhal…
– Mestre…
– De hoje em diante, o seu nome será Orthenner, Senhor do Poder do Fogo.
E ele sorriu com um sorriso claro e calmo:
– Ainda terei que lhe ensinar muitas coisas, Maia Orthenner…
– …E o que você gostaria de aprender?
– Tudo. Tudo aquilo, que Aulë não sabe.
– Para quê você quer saber isso?
– Como assim – para quê? – o Maia encarou Melkor, atônito. – Para criar o novo. Para saber. Porque você pergunta?
– Eu não quero que você se apresse. Primeiro, compreenda a si mesmo. Tenha certeza de que não utilizará os conhecimentos para o mal.
– Mas o conhecimento pode ser o mal?
– Claro. Aqui, veja.
Melkor estendeu a mão, e Orthenner viu um estranho adorno negro-dourado sobre o pulso dele. Não, não um adorno – elegante e bela criatura cingia o braço do Mestre.
– O que é isso?
– Lokie – Serpente.
– Eu não sabia que algo assim existe…
– O cabo do seu punhal – lembra?
– Sim… Mas me pareceu – eu somente inventei, e aqui, vivo…
– Estenda a mão.
Orthenner obedeceu, e o frio e escamoso corpo da serpente enrolou-se em volta do pulso dele.
– Que linda… Isso foi você que fez?
– Eu… Você diz – linda? Mas ela é extremamente perigosa.
– Como algo assim pode ser perigoso?
– Pode. O veneno dela contém a morte. Mas em mãos sábias e experientes, esse mesmo veneno pode trazer a cura. Dualidade. Por isso, em muitos mundos a serpente é o símbolo do saber: porque também o saber pode trazer tanto a vida, quanto a morte. E também é perigoso em mãos inexperientes, pois pode transformar-se em mal. Lembra, eu falei – a sua primeira criação foi um punhal. Por isso perguntei.
– Mas você também tem uma espada, Mestre…
– E a espada nem sempre serve à morte.
Eles pararam.
– Preste atenção. O que está ouvindo?
– O canto do lobo. O rumor das asas de uma coruja.
– Ouça.
– Eu ouço como o vento canta nos galhos, como farfalha a relva.
– Ouça com o coração, Discípulo.
Orthenner ficou em silêncio por muito tempo. Depois disse, como se estivesse surpreso com as próprias palavras:
– Sabe, Mestre… parece-me: algo está se debatendo – vivo, quer se soltar… e não consegue…
– Você sabe ouvir. Veja.
Com a espada, Melkor riscou no ar um sinal estranho, que por um segundo tornou-se luminoso, mas quase no mesmo instante se desfez em faíscas azuladas, e tocou a terra com a lâmina. E ao Maia pareceu – a terra tremeu levemente. E no lugar em que a espada negra a tocou, abriu-se uma fonte. Pondo-se de joelhos, o Discípulo colocou a mão na água gélida e levantou os olhos brilhantes para o Mestre:
– Como você fez isso?
– Saberá, – Melkor sorriu.
– …Sabe… de vez em quando parece que o mundo é tão frágil…
– É por isso que eu quero que você seja cuidadoso. Aqueles conhecimentos que eu te transmito são um imenso poder; um movimento errado, um passo para fora do caminho – e você começará a destruir.
– Eu entendi, – o Maia voltou-se para Melkor – e parou.
“Asas?!”
O Vala olhava para o céu noturno, sorrindo – ou com os próprios pensamentos, ou para algo ainda inaudível a Orthenner.
Enormes asas negras nas costas.
“Claro… se os Valar podem tomar qualquer forma, quem é que deveria ser alado se não fosse ele?..”