Isso porque em 1922 Eddison publicou “The Worm Ouroboros”¹, um romance de fantasia que só teve relativo sucesso nos anos 60, em uma febre posterior a publicação de “O Senhor dos Anéis” de Tolkien. Apesar de em fama seguir uma trilha criada por Tolkien, ele é precursor no sentido de tentar criar histórias incluindo elementos de fantasia (como bruxas e demônios), mas visando como público principal adultos, e não crianças.
A história do livro gira em torno de uma guerra entre a Witchland e Demonland, em um mundo imaginário cujo tom principal é predominantemente medieval, além de apresentar algo das sagas nórdicas. Aqui fica claro que Eddison possui algumas fontes similares às de Tolkien para a criação do que seria seu mundo, denominado por algumas personagens como “Terra média”, como uma tradução da Midgard dos nórdicos (embora a nomenclatura oficial do mundo seja “Mercury”).
O interessante a se observar no caso de “The Worm Ouroboros” é que ele segue um rumo diferente do de Tolkien para a construção de seu “universo”. No caso da lingüística, enquanto um decide seguir pelo caminho de criar novas línguas para emprestar verossimilhança ao espaço criado (Quenya, Sindarin, etc.), outro se concentra na linguagem de um modo geral: o livro tem todo um tom de inglês jacobino misturado com alguns anacronismos.
Outra diferença está no caso dos povos de cada história. Se na Terra-média de Tolkien orcs, elfos, anões e hobbits definem raças diferentes, no caso do romance de Eddison os povos são diferentes, mas todos “humanos”. A idéia que dá é que Impland e Goblinland funcionam na narrativa como países, e um confronto entre Witchland e Demonland poderia ser o equivalente a uma guerra entre França e Inglaterra, por exemplo.
E para os que acham as similaridades só uma coincidência e acreditam que Tolkien nunca teve qualquer contato com essa obra de Eddison, é importante frisar que não só ele teve o contato como chegou até a falar sobre isso, como fica claro na carta 199, cuja ótima tradução de Gabriel Oliva Brum (o Tilion da Valinor!) podemos ler em ”As Cartas de J.R. R. Tolkien”, publicado pela editora curitibana Arte e Letra:
“Li as obras de [E.R.] Eddison, muito tempo depois de aparecerem, e encontrei-o uma vez. Ouvi-o na sala do Sr. Lewis na Faculdade Magdalen ler em voz alta algumas partes de suas próprias obras – do Mistress of Mistresses, pelo que me lembro. Ele o fez extremamente bem. Li suas obras com grande prazer pelo puro mérito literário delas. Minha opinião sobre elas é quase a mesma que a expressada pelo Sr. Lewis na p. 104 de Essays presented to Charles Williams. Exceto que eu não gostava de seus personagens (sempre excetuando o Lord Gro) e desprezava o que ele parecia admirar mais intensamente do que o Sr. Lewis de qualquer modo achava certo dizer de si mesmo."
Querem saber de qual livro é o tal do Lord Gro que Tolkien tanto admirava? Pois então, de “The Worm Ouroboros”. Aqui talvez o que tenha encantado o professor seja a dualidade da personagem, que começa como um conselheiro de Witchland e depois se torna aliado de Demonland. Ainda levando em consideração o que Tolkien disse na mesma carta, temos:
“Incidentalmente, eu achava sua nomenclatura descuidada e freqüentemente inepta. Apesar de tudo isso, ainda penso nele como o maior e mais convincente escritor de “mundos inventados” que já li. Mas ele certamente não foi uma ‘influência’.”
Aqui fica a crítica a nomes pouco complexos (“Terra dos demônios”, em uma tradução literal, por exemplo) e a questão de se dizer não influenciado pela obra de Eddison. Mas seria possível colocá-lo no patamar de “o maior e mais convincente escritor de mundos inventados” sem ter absorvido absolutamente nada da obra desse escritor?
Talvez o que Tolkien fala sobre não existir influência esteja não no desenvolvimento da narrativa (como o autor lida com a criação de um “mundo inventado”), mas sobre o legendarium. Se for esse o caso, o professor sequer precisava relatar isso em carta: os seres e lugares retratados em obras como “O Hobbit” ou “O Silmarillion” nada tem a ver com os de Eddison, a não ser o fato de não serem do “nosso mundo”.
E é aí que encontramos a semelhança entre os autores, no sentido de retratar uma realidade diferente da conhecida pelo leitor. Ao criar um mundo com bruxas e demônios, Eddison bate de frente com o que a produção literária da época (tal como Tolkien), fugindo de uma narrativa descritiva e/ou realista para contar uma história passada em um mundo fantasioso, conforme é possível conferir no seguinte desenho (clique para ampliar):
E é por essa semelhança que Eric Rücker Eddison e seu “The Worm of Ouroboros” ganham espaço aqui na Biblioteca de Valinor. Para aqueles que ficaram curiosos sobre o livro, há uma versão online disponível para leitura, para acessá-la basta CLICAR AQUI .)
REFERÊNCIAS:
TOLKIEN, J.R.R. tradução: Gabriel Oliva Brum. As Cartas de J.R.R. Tolkien, 2006. Curitiba: Arte&Letra Editora.
¹ Ouroboros é uma figura recorrente no ambiente da fantasia: a serpente (algumas vezes dragão) que come o próprio rabo, o que seria o equivalente a representação matemática de infinito (∞ ) ou, em Literatura, a idéia de uma narrativa circular: o tema que abre a história é o mesmo que o encerra.