Este artigo se justifica como uma homenagem a Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) no centenário da publicação de seu livro Ortodoxia (1908). Nele, dedica o exímio e sempre bem-humorado polemista um capítulo à “Ética da Terra dos Elfos”, no qual descreve aquilo que chamou de princípio da felicidade condicional, no qual sempre acreditou, tanto antes, como depois, de sua conversão ao catolicismo. Cotejar esse princípio com a ética clássica (de inspiração aristotélica) e com a ética moderna (de inspiração kantiana) será o objeto deste despretensioso artigo.
Uma das características mais marcantes de Chesterton é o seu gosto pelo paradoxo: fazer afirmações aparentemente contraditórias e disparatadas, mas que, na verdade, correspondem à realidade. As imagens que propõe para explicar suas teorias, além de sumamente poéticas, são tremendamente impactantes, por contrastarem com a opinião reinante em seu meio. É o caso preciso da sua exposição, nesse capítulo III do livro “Ortodoxia” sobre Ética, ao adjetivá-la como de “Ética da Terra dos Elfos” (tradução brasileira, de Cláudia Albuquerque Tavares, com apresentação, notas e anexo de Ives Gandra Martins Filho, LTr – 2001 – São Paulo) ou “Moral do País das Fadas” (tradução portuguesa, do inglês “The Elfland Ethics”). Que estranho paralelismo irá traçar entre a Ética Natural, a Ética Cristã e isso a que denominou de Ética Élfica? No que a imagem paradoxal e poética poderá contribuir para compreender a essência do comportamento ético e do dever moral?
Para compreendermos essa relação, nada melhor do que deixar o próprio Chesterton falar, pois lê-lo é uma atividade que instiga a mente (pela sua lógica insofismável) e alegra o coração (pela beleza poética da forma). Assim, para cotejar o pensamento chestertoniano com o de Aristóteles (384-322 a.C.) e Kant (1724-1804), selecionamos algumas passagens mais expressivas do capítulo III do “Ortodoxia”, que constituem a espinha dorsal da sua explicação da “Lei da Felicidade Condicional”.
Os passos do raciocínio que segue para demonstrar sua teoria são basicamente os seguintes (com a transcrição de passagens mais significativas que o endossem):
a) a democracia, sistema político tão caro à modernidade, não se opõe à tradição, uma vez que a tradição seria a “democracia dos mortos”, dando-se voz e voto aos nossos antepassados:
“Nunca pude entender onde os homens foram buscar a idéia de que a democracia se opõe, de certo modo, à tradição. É evidente que a tradição é somente a democracia projetada através dos tempos. É acreditar no consenso de vozes humanas, em vez de acreditar em qualquer documento arbitrário ou isolado. O homem que cita um historiador alemão em oposição à tradição da Igreja Católica, por exemplo, está apelando implicitamente para a aristocracia, pois apela para a superioridade de um perito contra a extraordinária autoridade de uma multidão. É perfeitamente compreensível o motivo pelo qual uma lenda é tratada com mais respeito – e assim deve ser – do que um livro de história. A lenda é, geralmente, criada pela maioria das pessoas sãs da cidade, ao passo que o livro é, geralmente, escrito pelo único homem louco dessa mesma cidade”.
“A tradição pode ser definida como uma extensão do direito de voto, pois significa, apenas, que concedemos o voto às mais obscuras de todas as classes, ou seja, a dos nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia daqueles que parecem estar por aí meramente de passagem. Todos os democratas protestam contra o fato de o nascimento estabelecer diferenças entre os homens, a tradição opõe-se a que tais diferenças sejam estabelecidas por razão de sua morte. A democracia nos diz que não devemos desprezar a opinião de um cavalheiro, mesmo que ele seja o nosso cavalariço; a tradição nos pede que não desprezemos a opinião de um cavalheiro, mesmo que ele seja o nosso pai. Não posso, de forma alguma, separar essas duas idéias de democracia e tradição, pois me parece evidente que ambas representam a mesma idéia. Os mortos têm de estar presentes nos nossos conselhos. Os antigos gregos votavam por meio de pedras; os mortos devem votar por meio de pedras tumulares. É tudo muito regular e oficial, pois a maioria das sepulturas, como a maioria das listas de votação, são marcadas com uma cruz” (pgs. 69-70) (grifos nossos).
b) a tradição popular tem muito a nos ensinar, através das lendas, mitos e contos de fadas, no campo da ética e moral, apontando para exemplos e condutas que seriam, pela experiência de séculos e de multidões, as melhores para tornar feliz o homem:
“A minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com uma certeza inquebrantável, foi a que aprendi na escola maternal. A babá, essa grave sacerdotisa da democracia e, ao mesmo tempo, da tradição, foi quem, de maneira geral, ensinou-a a mim. As coisas nas quais mais acreditava, na época, e as coisas nas quais mais acredito agora são os chamados contos de fadas. Tais contos são, a meu ver, absolutamente racionais. Não são fantasias: as outras coisas é que, comparadas a eles, parecem-me fantásticas. Comparados a eles, a religião e o racionalismo são coisas anormais, embora a religião seja uma coisa anormalmente certa e o racionalismo uma coisa anormalmente errada. O País das Fadas não é outra coisa senão o ensolarado país do bom senso. Não é a Terra que julga o Céu, mas sim o Céu que julga a Terra; por isso, pelo menos para mim, não era a Terra que criticava a Terra dos Elfos, mas sim este que criticava a Terra. Conheci o pé de feijão mágico antes mesmo de ter experimentado feijão; tive a certeza do homem da lua, antes mesmo de estar certo da lua. E isto fundava-se na tradição popular”.
“O que me interessa agora é aquela ética e filosofia que nasceu dos velhos contos de fadas. Se me propusesse a descrevê-la, pormenorizadamente, poderia apontar os muitos e nobres princípios contidos em tais contos. Temos a lição de cavalheirismo que nos é dada por Jack, o Matador de Gigantes: os gigantes devem ser mortos porque são gigantescos. É uma revolta humana contra o orgulho considerado como tal. (…) Temos a lição da Cinderela, que é a mesma do Magnificat: ‘exaltavit humiles’. Há a grande lição contida em A Bela e a Fera: uma coisa deve ser amada antes que seja digna de amor. Há a terrível alegoria de A Bela Adormecida, que nos mostra como uma criatura foi presenteada com todas as dádivas ao nascer, apesar de amaldiçoada com a morte, e como a morte também pode, talvez, ser suavizada pelo sono. Não me interessa, porém, nenhum dos estatutos da Terra dos Elfos isoladamente; interessa-me, apenas, o espírito da totalidade da sua lei, o qual aprendi antes mesmo de saber falar e que ainda hei de conservar quando não puder mais escrever. Interessa-me determinada maneira de encarar a vida, maneira essa que aprendi nos contos de fadas e que, desde então, foi, serenamente, corroborada pelos fatos mais simples” (pgs. 71-72) (grifos nossos).
c) os contos de fadas nos ensinam, fundamentalmente, que há leis necessárias (físicas e matemáticas, do ser) e leis condicionais (morais e éticas, do dever ser), com seus âmbitos e propriedades específicas e inconfundíveis:
“Esse modo de ver a vida podia ser resumido da seguinte forma: Há certas seqüências ou evoluções (casos de uma coisa que se segue a outra) que são, na verdadeira acepção da palavra, razoáveis. São, ainda no verdadeiro sentido da palavra, necessárias. Incluem-se neste caso as seqüências matemáticas e puramente lógicas. Nós, no País das Fadas (que são as mais razoáveis de todas as criaturas), admitimos essa razão e essa necessidade. Assim, por exemplo, se as Irmãs Feias são mais velhas do que Cinderela, é necessário (no mais férreo e irrefutável sentido) que Cinderela seja mais nova do que elas. Não se pode fugir a isso. (…) A fria razão assim o decreta do alto do seu trono, e nós, no País das Fadas, submetemo-nos a tal decreto”.
“Quem se dispuser a ler os Contos de Fadas de Grimm, ou as belas coleções de Andrew Lang, poderá conhecer esse princípio que eu, por pedantismo, chamarei de Doutrina da Alegria Condicional. Touchstone falava da grande virtude que existe num ‘se’ e, de acordo com a moral dos elfos, toda a virtude está num ‘se’. A principal característica do discurso das fadas é sempre esta: ‘Tu poderás viver num palácio de ouro e de safiras, se não pronunciares a palavra vaca’. Ou: ‘Poderás viver feliz com a filha do rei, se não lhe mostrares uma cebola’. A dádiva apóia-se sempre num veto. Todas as estonteantes e colossais coisas que são concedidas dependem de uma pequena coisa que é negada. As mais extravagantes e desvairadas coisas são postas, livremente, à nossa disposição, mediante uma pequena coisa que nos é proibida” (pgs. 72 e 78) (grifos nossos).
d) o Princípio da Felicidade Condicional, que caracteriza a Moral do País das Fadas (e toda Ética) estriba-se na idéia de que a felicidade depende da aceitação das limitações que nos são impostas pela Natureza, ainda que não compreendamos bem nem a Natureza, nem suas limitações (a plenitude é sempre finita, não dando para se ter tudo):
“Em um conto de fadas, uma incompreensível felicidade se apóia sobre uma incompreensível condição. Abre-se uma caixa, e os demônios voam todos para fora. Esquece-se uma palavra, e as cidades desaparecem. Acende-se uma lâmpada, e o amor voa para longe. Arranca-se uma flor, e as vidas humanas perecem. Come-se uma maçã, e a esperança em Deus se esvai”.
“Cinderela recebeu uma carruagem vinda do País das Maravilhas e um cocheiro vindo não se sabe de onde, mas recebeu, também, uma ordem: devia estar de volta à meia-noite. Ela também tinha um sapatinho de cristal, e não pode ser simples coincidência o fato de o cristal ser um elemento tão comum no folclore. Certa princesa vive em um palácio de vidro, outra vive em uma colina também de vidro e há ainda outra que tudo vê num espelho. Todas elas podem viver em casas de vidro, desde que não atirem pedras. Ora, este reluzir de vidro por toda a parte nada mais é do que a expressão do fato de que a felicidade é radiante, mas frágil, como o material que pode ser facilmente quebrado por uma criada ou por um gato. Este sentimento, que caracteriza os contos de fadas, gravou-se em mim e passou a representar a minha própria maneira de sentir perante o mundo inteiro. Sentia, e sinto, que a própria vida é brilhante como o diamante e frágil como a vidraça” (pgs. 79-80) (grifos nossos).
e) A aceitação da condição (o que nos é negado) é o segredo da felicidade (o que nos é dado), e a incompreensão da razão da condição só faz ressaltar a imensidade dos dons recebidos (a vida, com todas as suas maravilhas):
“Lembremo-nos, porém, de que ser quebrável não é o mesmo que ser perecível. Dê uma pancada forte em um vidro e ele não durará um instante; não lhe toque e ele durará mil anos. Tal era, segundo me parecia, a alegria humana, quer no País das Fadas, quer na própria Terra. A felicidade só dependia de não fazer alguma coisa que em qualquer momento poderia ser feita e, muitas vezes, sem que fosse óbvia a razão pela qual não se devia fazê-la. Ora, o ponto aonde quero chegar é que, quanto a mim, nada disso me parecia injusto. (…) Se Cinderela diz: ‘Por que eu tenho de sair do baile à meia-noite?’, a madrinha poderia retrucar: ‘Por que podes ficar lá até a meia-noite?’ Se eu deixo para um homem, no meu testamento, dez elefantes falantes e cem cavalos alados, tal homem não se poderá queixar, se as condições forem tão excêntricas como a dádiva. A um cavalo alado não se olham os dentes. E parecia-me que a própria existência era um legado excêntrico demais para que eu me queixasse de não compreender os limites da dádiva, quando, afinal, não compreendia a dádiva que eles limitavam. A moldura não era mais estranha do que a pintura. O veto podia ser tão extravagante como a dádiva, tão estonteante como o Sol, tão ilusório como as águas e tão fantástico e terrível como as árvores altaneiras” (pg. 80) (grifos nossos).
Quantas vezes, no relacionamento com os demais (que é a essência da Ética – o relacionamento ordenado com os outros), ao dizer ou fazer alguma coisa, sem pensarmos, acabamos agredindo ou entristecendo aquele a quem queríamos bem e nos perguntamos: O que fui fazer? Essa era a única palavra ou ação que não poderia ter dito ou feito e que fiz e disse, entornando o caldo e quebrando algo de muito precioso! Assim, percebemos que existem ações adequadas e inadequadas no relacionamento com os outros.
Para se entender o discurso chestertoniano da felicidade condicional, é preciso ter em conta a concepção clássica da Ética, que se baseia na distinção entre “bem” no sentido metafísico e “bem” no sentido ético.
O bem metafísico é tudo aquilo que nos atrai (qui omnes apetunt). É um dos transcendentais do ser, isto é, uma das características que todos os seres têm em comum, que são: a verdade (capacidade de ser conhecido por uma inteligência); a beleza (capacidade de ser admirado pela inteligência e vontade) e o bem (capacidade de ser querido por uma vontade). Assim, tudo que existe, pelo simples fato de existir, pode nos apetecer e atrair.
No entanto, nem tudo o que nos atrai, nos convém. Esse é o sentido do bem ético, que diz respeito ao bem adequado (armóton) à natureza. A tradição clássica – de Sócrates, Platão e Aristóteles – aponta como bem adequado à natureza humana a virtude, ou seja, a perfeição das potências da alma (cfr. Werner Jaeger, “Paidéia”, Martins Fontes – 2003 – São Paulo).
Assim, para Sócrates a missão suprema do homem seria o cuidado da alma (“psyche terapéia”), superando a hierarquia báquica dos bens (saúde, beleza, fortuna e amigos), que coloca em perigo a alma: “Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de vos exortar a vós e de instruir quem quer que eu encontre (…) pois ficai sabendo que Deus assim mo ordenou, e julgo que até agora não houve na nossa cidade nenhum bem maior para vós do que este serviço que eu presto a Deus. É que todos os meus passos se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e velhos a não se preocuparem nem tanto nem em primeiro lugar com o seu corpo e com a sua fortuna, mas antes com a perfeição da sua alma” (Platão, “Apologia de Sócrates”, 29 D e seg.).
Para Sócrates, as virtudes (aretai) seriam tanto da alma (conhecimento para o intelecto especulativo e prudência, justiça, fortaleza e temperança para o intelecto prático) como do corpo (saúde, força e beleza). Entendia a virtude como um saber (phronesis): o conhecimento do bem, que levava a não sucumbir ao prazer (hedonis). As virtudes tinham por fim (telos) e meta (skopos) a harmonia com o universo e a felicidade humana (eudemonia), pelo auto-domínio (a alma sobre o corpo): Sócrates despreza os prazeres da vida quando toma o cálice de cicuta para respeitar as leis da cidade. Concebia as virtudes como uma unidade: não seria possível ser valente, sem ser justo, moderado e prudente (seria uma valentia apenas exterior, sem o domínio interior; Sócrates podia dizer isso, porque fora herói das guerras gregas, não fugindo da luta, mas vendo que a luta interior era mais dura). Pregava o ideal da “mens sana in corpore sano”.
No ideal formativo (paidéia) socrática, o homem virtuoso deveria se dedicar não só aos estudos, mas aos exercícios (askesis: treinar para adquirir o bom condicionamento físico e moral). A amizade (philia) era para Sócrates um dos bens e valores mais elevados: dizia que não tinha discípulos, mas amigos (na sua sábia humildade, não se considerava mestre, razão pela qual não compreendia a acusação de corruptor da juventude). A amizade, como sentimento de benevolência pelo outro, deveria superar as rivalidades pelas honras e riquezas.
Já Platão, como discípulo de Sócrates (e quem recolheu por escrito os ensinamentos do mestre), na “República”, definira a virtude (areté) como a arte de ‘saber escolher’ os bens convenientes (agatón) e recusar os inconvenientes (o mal). E Aristóteles, na “Ética a Nicômaco”, coloca a felicidade (eudemonia) como o ”prêmio da virtude”’ (Livro I). Com Platão (”As Leis” e ”A República”) e Aristóteles (”Ética a Nicômaco”), a justiça (‘dikaiosyne’) passa a principal e resumo das virtudes: cumprimento de todos os deveres (prudência, justiça, fortaleza e temperança como as fundamentais, lembrando o heroísmo dos tempos primitivos).
Portanto, na ética clássica, a felicidade é a meta do agir virtuoso, como uma escolha do bem adequado ao homem. Nesse sentido, é uma ética condicional: “Se quiseres ser feliz, deves agir deste e não daquele modo”. Ademais, à felicidade só se chega pela virtude, pois como dizia Félix Bovet (1824-1903): “Os prazeres são para os sentidos, as alegrias para o coração, mas a felicidade é só para a consciência” (apud Georges Chevrot, “Sermão da Montanha”, Quadrante – 1988 – São Paulo, pg. 134). Assim, apenas a justiça, pela consciência do dever cumprido, é capaz de trazer a felicidade. O resto são alegrias e prazeres passageiros e fugazes.
O problema da ética moderna se coloca quando Emanuel Kant opera, no final do século XVIII, sua revolução copernicana na Metafísica, sustentando que não conhecemos as coisas como são, mas apenas suas aparências, ou seja, as impressões que nos deixam. Não conheceríamos as coisas em si (o noúmeno), mas apenas aquilo que nos aparece (o fenômeno). Assim, a realidade objetiva não seria alcançável pela mente humana, pois a essência das coisas não poderia ser captada pelos sentidos. Todo conhecimento seria sempre algo de subjetivo (os transcendentais seriam categorias a priori da mente humana, ligadas ao tempo e espaço, que enquadrariam todas as sensações recebidas). Assim, Kant irá promover a “Crítica da Razão Pura” (1781), estabelecendo as condições subjetivas do conhecimento, fazendo com que todo o conhecimento seja gerado pelo sujeito cognoscente e não como adequação ao objeto conhecido, tal qual sustentado por Aristóteles: “Até agora se admitia que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos (…) Não seríamos mais afortunados nos problemas de metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento?”
Essa postura gnoseológica subjetivista desembocou numa ética relativista desenvolvida na sua “Crítica da Razão Prática” (1788), segundo a qual não é possível estabelecer normas morais objetivas com conteúdo concreto, mas apenas um princípio geral que denomina de “imperativo categórico”, expresso da seguinte forma: “Age de modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal” (cada um estabeleceria seu sistema moral pessoal, achando ser o ideal, confrontando naturalmente com o dos demais).
Ora, o próprio Kant distinguia duas espécies de imperativos:
a) imperativo hipotético – que é condicional (se queremos um determinado fim, então devemos agir da maneira que torne possível conseguí-lo).
b) imperativo categórico – que seria baseado na autoridade (devemos agir de uma determinada maneira porque alguém mandou, no caso, a lei divina ou a lei humana).
A concepção kantiana, a par de deixar a Ética sem fundamento sólido, torna-a, sob o prisma psicológico, profundamente antipática. O frio legalismo germânico conduz à revolta contra limitações que nos parecem arbitrárias.
Já a concepção clássica, reverenciada por Chesterton, coloca a ênfase no que seria uma “liberdade de qualidade”: por ser livre, posso escolher o que quiser dentre os bens que se me oferecem; mas “se não for bobo”, saberei escolher o melhor, o que efetivamente me aperfeiçoa, aceitando como naturais as limitações, justamente porque, não podendo ter simultaneamente tudo, sei prescindir do que impede a posse e usufruto do melhor.
Em suma, a mensagem chestertoniana, que é a mesma da tradição clássica e cristã, é a de que, para ser feliz é necessário aceitar que temos limitações (de natureza e de compromissos, já que a liberdade, ao assumir compromissos, fica a eles ligada) e não ultrapassar as fronteiras que guarnecem a nossa vida.
A vertente kantiana da ética do país das fadas estaria no respeito à autoridade daquele que impõe as normas, quando o sentido último destas não é captado. Se não percebemos que a proibição a determinada conduta diz respeito ao fato de que essa conduta não nos trará a felicidade, ainda que aparente e imediatamente possa parecer o contrário, então é preferível confiar na autoridade do autor da norma (ou seja, “autoridade” vem justamente de ser “autor”), mormente se esta é de Direito Natural, pois o Autor da Natureza é o próprio Deus, que dispõe, através de seus mandamentos o modo mais fácil e rápido do homem chegar à felicidade.
No último capítulo do “Ortodoxia” (capítulo VIII – A Autoridade e o Aventureiro), Chesterton retoma a idéia da felicidade condicional com a imagem das muralhas éticas do cristianismo, que garantem a alegria de viver:
“O Cristianismo foi a única barreira que resguardou o prazer do paganismo. Imaginemos um grupo de crianças brincando descuidadamente sobre o gramado macio e plano de uma ilha situada bem acima do nível do mar. Enquanto havia uma parede em volta do íngreme rochedo, elas puderam entregar-se aos jogos mais frenéticos e fizeram daquele lugar a mais barulhenta das creches. Mas as paredes foram derrubadas, deixando a descoberto o perigo do precipício. As crianças não despencaram precipício abaixo, mas, quando os seus amigos voltaram, encontraram-nas paralisadas de terror no centro da ilha. E já não se ouviam as suas canções” (pg. 187) (grifos nossos).
Para cantar de alegria uma vida que “é bonita, é bonita e é bonita” (Gonzaguinha), é preciso saber respeitar as condições mínimas que ela nos impõe, para não estragar os dons preciosos que nos são ofertados em troca. O lema da antiga UDN (partido político brasileiro dos anos que precederam o Regime Militar de 1964-1985) pode servir de complemento ao princípio da felicidade condicional: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. A felicidade depende da vigilância sobre aquilo que pode levar à sua perda. Podemos viver felizes indefinidamente, desde que resistamos a ter mais do que nos cabe, a desempenhar um papel que não nos compete, e a desprezar as condições ideais em que nos encontramos se não temos a sandice de jogar tudo pela janela ao querer o que pensamos que nos falta, mas que, na realidade, nem falta, nem completa, porque desvia do equilíbrio e harmonia ideais para nós. Trata-se de vencer a curiosidade e não abrir a caixa de Pandora, desatando paixões e forças capazes de destruir tudo o que havíamos construído.