O Espelho de Mandos – Capí­tulo 3 – Proposta

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Escrito por super_tetsuo2008

O céu chorou todo o dia seguinte, mas durante a noite a chuva se foi,
contrariando a previsão do Sr. Nodewich de que choveria por cerca de
uma semana ou mais. Para mim isso foi uma bênção, pois eu pude
finalmente sair de casa para mostrar Lanval a toda Ugür. O elfo
continuava hospedado lá, pois ainda queria falar com minha mãe, mas
Urwen fizera um voto de silêncio e trancara-se no quarto, ficando lá
sozinha durante a maior parte do dia. Segundo os costumes de Ugür
aquilo deveria durar mais cinco dias, mas Lanval não se importou por
esperar. Na verdade parecia bastante contente enquanto todos os aldeães
se encantavam todas as noites com sua prosa, pois lhe era pedido que
contasse histórias dos elfos e dos homens, e dos Valar e de seus
inimigos e suas guerras, e Lanval fazia-o com música e discurso. A
maioria de nós se admirava com o conhecimento do elfo, e invejava sua
capacidade de viver mais que o suficiente para conhecer o mundo inteiro
e sua História. À exceção de minha mãe e Hardur, que também não saía de
casa desde o incidente na floresta, todo o vilarejo se reunia no
Mochileiro, a taverna do Sr. Pilgrim, para ouvir Lanval falar. E
durante o dia, o elfo tentava ajudar os moradores com suas tarefas
cotidianas, muito interessado em aprender tudo que pudesse sobre nossos
hábitos e costumes.

 

 
Eu também me fascinava com a beleza e o carisma daquele ser, mas estava mais interessado pelas histórias que ele sabia sobre meu pai e meu irmão, e mais ainda pelo momento da morte do primeiro e do desaparecimento do segundo. Mas sobre esse assunto específico Lanval demonstrava muita reserva, e eu encarava isso como efeito da dor de uma lembrança tão ruim. Ainda assim eu me achava no direito de saber os detalhes, pois eu já começava a me achar com a obrigação de encontrar Arameth, estivesse onde ele estivesse.

– Ele caiu das montanhas – disse ele, após uma longa hesitação. Era tarde da noite e voltávamos para casa após mais uma sessão de histórias no Mochileiro. Eu insistira em saber sobre como terminara a última missão nas encostas das Ered Gorgoroth, e agora Lanval, muito contrariado, me falava sobre meu irmão.

– E daí? Vocês não desceram pra procurar o corpo? – perguntei.

– Descemos.

– E não encontraram?

– Dungortheb é um lugar horrível, Adam. Ninguém sai vivo de lá – Lanval parecia cansado, e falava olhando para o céu.

– O que há lá? – perguntei, e ele me deu um olhar triste enquanto andava.

– Males terríveis, Adam. E você é só uma criança, não devo falar sobre isso com você.

– Que males? – insisti. – Lanval, Arameth é meu irmão! Eu tenho que saber quais são as chances de ele estar vivo, para o caso de querer tentar resgatá-lo algum dia.

Eu falei com tanta precisão que agora o olhar do elfo exprimia perplexidade e indecisão. Hoje imagino que ele deve ter reconhecido algo de adulto dentro de mim, ou alguma semelhança com o jeito do meu pai. E então ele disse. Contou-me uma história sobre Ungoliant, uma criatura que se aliara a Melkor para roubar as Silmarils e o poder das Árvores que iluminavam o continente dos Valar. Mas uma vez que chegaram à Terra-média, Ungoliant tentou tomar o tesouro que Morgoth tinha consigo, falhando em seu intento, pois os servos de fogo do Senhor do Escuro ouviram seu chamado e chegaram para ajudá-lo, expulsando Ungoliant para a região entre as montanhas e a floresta de Neldoreth. Ali o terrível monstro morava desde então, procriando e espalhando medo e dor e morte a quem quer que pisasse em seu território.

– Então Arameth provavelmente está morto no interior da barriga de alguma aranha? – perguntei, sentindo uma profunda tristeza.

– Lamento muitíssimo, Galdweth.

Continuamos andando em silêncio. Apenas as luzes da lua e das estrelas guiavam nossos passos, mas Lanval andava como se fosse dia. Eu estava frustrado, pois contara com a possibilidade de um dia resgatar o meu irmão. Comecei a pensar em minha mãe, sua tristeza e solidão, e percebi que agora ela só teria a mim, e eu precisaria ser forte para protegê-la. Já fazia cinco dias que Lanval chegara com a notícia, e mamãe ainda estava acamada.

– Não estará ela doente?

– Urwen?! Não – respondeu ele, o tom da voz voltando à naturalidade e deixando de lado a morbidez. – Todas as mulheres passam por isso quando perdem alguém que amam, Adam, até mesmo as elfas.

– Como são as elfas? – perguntei, desinteressado.

Lanval falou então sobre as mulheres do seu povo, principalmente Gilraen, sua noiva, cujos cabelos eram como rios de ouro e cujo riso era como a melodia dos Ainur. À medida que falava, encantava-me novamente com suas palavras, e eu sentia-me novamente confortado. Perguntei-me se havia no mundo criatura mais fascinante que os elfos.

Mas quando fui pra cama aquela noite, as aranhas do inferno voltaram para assombrar meu quarto e não me deixar dormir. Elas teciam suas veias de veneno pelo teto e tinham patas e presas manchadas de sangue. O sangue de meu irmão.

E enfim eu chorei.

No dia seguinte minha mãe mandou chamar Lanval. Eu estava novamente contente, pois o dia estava bonito e minha mãe voltara a falar. O elfo levantara e cedo e dirigira-se ao campo, onde tentava ajudar os aldeães a lavrar a terra.

– Adaman! Bom dia – fez ele, ao me ver chegando.

– Boas novas, Lanval – eu disse, um pouco cansado após subir o morro correndo, mas não pude deixar de reparar no suor que escorria de sob o lenço que envolvia a cabeça do elfo, para protegê-la do sol de quase meio-dia. – Minha mãe te chama.

– Ah! Finalmente. Espere um pouco que nós já desceremos – disse ele, e andou até o pequeno depósito de ferramentas que ficava próximo à plantação. Lá chegando, deixou sua enxada pendurada com as outras numa viga no teto, e sentou-se num banco que na verdade era um toco de árvore.

– O que está fazendo? – perguntei.

– Descansando, oras – respondeu ele, abrindo o cantil e servindo-se de água.

– Descansando?! Mas ainda nem é hora do almoço, Lanval.

– E daí? Elfos também cansam, moço.

– Aposto que nenhum deles já está cansado – apontei para os lavradores, que batiam a terra à nossa frente.

– Mas eles já estão acostumados com o serviço – ele me olhou e riu, e passou o lenço na testa para enxugar o suor. – Tudo bem, confesso que vocês, homens, têm mais força e resistência do que nós. Ou pelo menos mais que eu. Mas que calorão!

– Lá em Himring é muito frio?

– Neva quase o ano todo! Dizem que elfos não sentem frio, mas tem dias que até mesmo nós precisamos nos agasalhar.

– Eu gostaria de ir a Himring.

– Você irá – disse ele, e eu o olhei, incrédulo. – Você e sua mãe. Eu vou levá-los lá.

Encarei-o, boquiaberto.

– Você quer dizer, agora? – perguntei, cheio de entusiasmo. – Foi pra isso que você ficou, Lanval? Era isso que você queria dizer à minha mãe?

– Sim, mas é claro que ela precisa aceitar. Acho que já podemos ir, vamos andando.

– Mas quando é que vamos pra lá?

– Quando sua mãe achar que devemos.

Descemos a colina e dirigimos-nos à minha casa, onde minha mãe nos aguardava. Lanval não respondia mais às minhas perguntas, só ria e fazia comentários misteriosos. Minha empolgação era indescritível. Conhecer Himring e suas montanhas, os elfos, suas moradias, suas artes, seus costumes!

– Olá, Lanval – fez minha mãe quando chegamos, a mesa posta onde a refeição principal era peixe, já que o elfo não comia carne. Ela fez um gesto para que sentássemos. – Desculpe minha falta de cortesia para com você todo esse tempo.

– Não se preocupe, senhora, eu a compreendo – respondeu ele, com seu sotaque difícil.

– Agora eu gostaria de saber o que você ainda deseja comigo.

Eu observava a conversa com tanta ansiedade que esquecera de me servir. Lanval pegou uma migalha de peixe e um pouco de caldo, além de algumas verduras e água. Ele jamais comia mais do que isso, e mesmo essa pequena refeição era suficiente para mantê-lo cheio até o dia seguinte.

– Senhora, meu senhor Maedhros enviou-me para informar o que eu já informei, para apresentar nossos pêsames, e mais duas coisas. Entregar-lhe uma recompensa em ouro por todos os serviços prestados pela vossa família e fazer um convite: venha morar conosco em Himring.

Mamãe olhou-o séria, e pediu-lhe um tempo para analisar a proposta. Fiquei com medo que ela recusasse, mas depois que ela viu o prêmio que Lanval trouxera, sua resposta foi quase imediata.

– De fato, eu gostaria de visitar os elfos, e se é lá que está o corpo de meu marido, é lá que devo ficar.

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