1) INTRODUÇÃO
Há um plano pré-concebido de desenvolvimento da história humana ou tudo é fruto do acaso? Se houver uma “Providência” dirigindo os destinos humanos, onde fica a liberdade? Estas são questões que inquietam o ser humano desde os primórdios de sua existência e mereceram diferentes respostas ao longo dos séculos. Trata-se de perquirição sobre o próprio “sentido” da História: há um sentido norteador do caminhar humano sobre a Terra?
Neste singelo estudo, apresentaremos as várias respostas à questão, fixando-nos, no entanto, na tradição agostiniana, e sua repercussão na obra de J. R. R. Tolkien.
Numa apertada síntese, poderíamos elencar as principais concepções da História que surgiram ao longo dos tempos, enquadrando-as no seguinte gráfico:
CORRENTE | CONCEPÇÃO |
Gregos e Hindus | Ritmo cíclico (eterno retorno, ainda que ascencional). |
Pitagóricos e Espíritas | Reencarnação (eterna volta, até purificação total). |
Platonismo | Chegar à contemplação das idéias (meta da história). |
Marxismo e Hegelianismo | Luta dialética de classes, até chegar à sociedade sem classes. |
Positivismo | Progresso contínuo. |
Materialismo | Tendência à instauração do Wellfare State (Bem-Estar Social). |
Existencialismo | Ausência total de sentido (homem como uma paixão inútil). |
Cristianismo | Mundo Criado por Deus, entregue ao homem, com um fim sobrenatural (tempo de merecer, para ganhar o prêmio eterno). |
2) O ACASO E O TEMPO CIRCULAR DOS GREGOS
O tempo histórico era, para os antigos (gregos e romanos), circular, repetitivo, inexorável e fatalista. Tinham uma concepção determinista da História. Para Aristóteles, essa concepção correspondia à perfeição do círculo e da esfera, dada a eternidade do mundo. Friedrich Nietzsche (1844-1900) sustentará posição semelhante: daqui a milhões de anos, estaremos novamente no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas.
Nessas teorias de tempo circular, o que rege a vida humana é o fado (o acaso): um destino cego, traçado nas estrelas, com a sorte dependendo do seu curso (haveria dias fas e dias nefas, ou seja, dias de sorte e dias nefastos). Daí o estudo da astrologia, para compreender o destino humano, de acordo com as órbitas circulares dos astros. Assim, os antigos não concebiam a História como obra da atividade livre dos homens e como um projeto comum da Humanidade.
Tal concepção da História é pessimista, descrevendo a evolução do destino humano como a degeneração de uma idade de ouro inicial. Assim, na visão grega, a vida é decadente, todo tempo passado foi melhor, e quando se chega ao fundo do poço, recomeça novo ciclo, “ad infinitum”.
Hesíodo (séc. VIII a. C.), na obra “Os Trabalhos e os Dias”, traça um panorama desse tempo circular decadente:
IDADE | CARACTERÍSTICAS |
Do ouro | Homens viviam como deuses (sem o mal e com muitos bens). |
Da prata | Homens não tinham saber e não honravam os deuses. |
Do bronze | Homens guerreiros e violentos. |
Dos heróis | Homens sábios e fortes (semi-deuses). |
Dos homens | Homens submetidos aos males (alguns bens). |
O homem, na concepção dos antigos, só escaparia fugazmente ao tempo circular, na memória dos demais, pelos seus feitos heróicos ou grandes obras a serem lembradas (imortalidade precária).
Essa concepção foi mantida parcialmente na Idade Média, com a crença no “Grande Ano”, no qual os astros estariam todos na mesma diagonal, ocasião em que recomeçaria o ciclo. Alguns pensadores antigos e medievais chegaram, com base na astronomia, a calcular a duração de cada ciclo:
PENSADOR | DURAÇÃO DO CICLO HISTÓRICO |
Aristarco | 2.484 anos |
Aretas | 5.552 anos |
Heráclito | 10.800 anos |
Dion | 100.020 anos |
Cessandre | 3.600.000 anos |
A concepção circular e fatalista da História somente foi superada com o cristianismo, que aponta para um tempo retilíneo, que tem início na criação e término no juízo final, desenvolvendo-se no âmbito da liberdade humana: reconhecimento da imortalidade pessoal, com um prêmio ou castigo eternos, de acordo com as ações boas ou más levadas a cabo durante a vida na dimensão histórica (responsabilidade pessoal).
Com efeito, onde não há liberdade, não há responsabilidade: não há mérito ou demérito a ser recompensado ou punido (aprofundar nesse tema será o objeto de nosso próximo artigo).
3) MODELOS DE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Ainda que não se possam estabelecer leis gerais da História (nas Ciências Humanas a certeza não é física mas moral), pois a conduta humana que a embasa não é determinista (o protagonista da história é o homem com liberdade), é possível fazer algumas generalizações.
Assim, não se poderiam estabelecer modelos absolutos de desenvolvimento histórico, mas se podem apresentar modelos relativos, extraindo as regularidades através da observação (Ex: governos que aumentam impostos caem; reinos divididos internamente fragmentam-se; etc). O que se pode fazer é captar a tendência de evolução histórica, diante de um quadro fático dado.
Nesse sentido e com essas matizações, poderíamos classificar os modelos básicos de periodização da História como:
Ciclóides : tempo circular
Retilíneos: apontam para uma meta
– imanente
— otimista
— pessimista
– transcendente
4) MODELOS CICLÓIDES
A tradição greco-romana e hindu da História circular e repetitiva foi teorizada por alguns historiadores modernos e contemporâneos, dentre os quais podemos destacar, com suas respectivas concepções:
a) “Ciência Nova” da História – Giambattista Vico (1668-1744):
ÉPOCA | CARACTERÍSTICAS |
Dos Deuses | Dos sentidos; fenômenos naturais com deuses (linguagem gestual e ideográfica) |
Dos Heróis | Da Fantasia; lutas de povos e tribos (linguagem poética) |
Dos Homens | Da razão; leis escritas e igualdade (linguagem em prosa) |
b) Organismos Vivos – Oswald Spengler (1880-1936):
FASES | CARACTERÍSTICAS |
Inverno | Infância (gênese da civilização: cria seus próprios valores) |
Primavera | Adolescência (ascensão da civilização) |
Verão | Maturidade (auge da civilização) |
Outono | Velhice (decadência da civilização: subversão dos valores) |
c) Modelos de Desenvolvimento de Civilizações – Arnold Toynbee (1889-1975):
O desenvolvimento das civilizações seria marcado por respostas criativas aos desafios do meio geográfico ou humano (detectadas 37 civilizações ao longo da História).
MODELO | CARACTERÍSTICAS |
Helênico | Unidade cultural e desunião política; guerras contínuas até se atingir uma união política tardia |
Chinês | Ritmo cíclico de união e desunião política dentro de um mesmo âmbito cultural |
Judaico | Manutenção da identidade cultural apesar da perda da base territorial |
Nesses modelos, fica patente que o desenvolvimento das civilizações parte de um princípio (melhor ou pior), chega ao seu ápice (de verdadeiro esplendor ou mera dominação), vindo a fenecer (mais cedo ou mais tarde), dando origem a novo ciclo, com nova civilização. A característica circular diz respeito apenas à repetição de um mesmo padrão de desenvolvimento, mas com diferentes sujeitos e condições, sem uma meta estável a ser atingida (tudo sendo passageiro e transitório, todas as obras humanas sendo efêmeras e perecíveis, por mais sólidas e perenes que possam parecer).
4) MODELOS DE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO RETILÍNIO, IMANENTE E OTIMISTA
Podemos citar como historiadores (com suas respectivas concepções originais) que visualizaram o desenvolvimento histórico de forma retilínea e otimista, com um fim imanente ao mundo, que se consuma na própria Terra:
a) Concepção Trinitária da História – Joaquim de Fiore (1135-1202):
ERA | PERÍODO |
do Pai | Antigo Testamento (domínio dos leigos e casados) |
do Filho | Começa com a Encarnação (domínio dos clérigos e da Igreja) |
do Espírito Santo | Começa com S. Bento (domínio dos monges, sem instituições) |
A chegada da 3ª Era representaria a volta ao paraíso terreno do Éden. As guerras fratricidas no seio da Cristandade, ocasionadas pelo cisma protestante, mostraram a impossibilidade real da realização desse paraíso terreno de inspiração cristã.
b) Lei dos Três Estágios – Augusto Comte (1798-1857):
ESTÁGIO | PERÍODO |
Teológico | Idade Antiga (forças sobrenaturais para explicar os fenômenos naturais) |
Metafísico | Idade Média (explicações abstratas dos escolásticos: o lugar natural) |
Positivo | Idade Moderna (explicações científicas dos fenômenos) |
A chegada ao 3º Estágio representaria o progresso ininterrupto da Humanidade. As duas guerras mundiais ocorridas na primeira metade do século XX substituíram, no campo filosófico, o otimismo positivista pelo pessimismo existencialista, uma vez verificado que o progresso científico e tecnológico não leva necessariamente ao progresso humano e moral (degradação da Humanidade, que construiu os campos de extermínio em massa dos judeus; e, nos dias que correm, a História se repete, mas com sinais trocados, com o massacre da população palestina de Gaza pelos israelenses, onde a palavra “perdão”, tão arraigada na tradição cristã, parece não constar dos dicionários das partes envolvidas no conflito).
c) Materialismo Histórico – Karl Marx (1818-1883):
CLASSES | PERÍODO |
Livres e Escravos | Orientais e gregos |
Patrícios e Plebeus | Romanos |
Barões e Servos da Gleba | Feudalismo |
Burgueses e Proletários | Revolução Industrial |
Sociedade sem Classes | Comunismo |
A evolução histórica no marxismo segue o esquema determinista da luta de classes com superação dialética (tese, antítese e síntese) e base nos meios de produção, até a chegada ao paraíso comunista. Também este modelo historiológico se viu superado pela realidade dos fatos: as revoluções comunistas desencadeadas no âmbito russo e chinês, bem como de seus satélites, não levou ao paraíso terreno da sociedade sem classes, mas a uma férrea ditadura do proletariado, com a criação de uma classe privilegiada de governantes (a Nomenklatura), cujo império durante 70 anos, plasmado no Estado Soviético, só serviu para empobrecer ainda mais os países do Leste Europeu.
É curioso notar como tanto o Marxismo quanto o Positivismo dão continuidade ao ingênuo otimismo do Iluminismo, fundado na “bondade natural do homem” (o mito do “bom selvagem” encontrado nas Américas, imaginado puro pelos enciclopedistas, mas encontrado canibal pelos conquistadores). Contrapunha-se o século das luzes (Enciclopedistas Pré-Revolução Francesa) aos séculos das trevas (que seriam os 1.000 anos da Idade Média). Preconceito ideológico ainda encontradiço em livros e aulas de história, em que se esquecem, por um lado, das grandes realizações do período medieval (Universidades, Catedrais, Hospitais, Direito Internacional, Código Ético, dignificação do homem e da mulher) e, por outro, das aberrações da Revolução Francesa (regime do terror, abundância de guilhotinados, descristianização da sociedade).
Assim, nem todo movimento e mudança representa efetivamente progresso. Há mudanças que são verdadeiros retrocessos (Ex: regimes totalitários na Alemanha Nazista, Itália Fascista, Rússia, China e Cuba Comunistas; desigualdades sociais nas democracias ocidentais; drogas e pornografia; aborto; manipulação genética; violência urbana; etc).
Confunde-se progresso técnico com progresso integral, quando pode haver retrocesso moral. É a crença de que a técnica é que constrói o “homem novo” (naturalismo iluminista). E, nesses casos, o que se verifica é ser o homem menos homem.
A tão esperada e decantada “Era da Informática” acaba se transformando em “era da infernática” pelo trabalho deletério de haeckers e fabricantes de vírus, a introduzir insegurança existencial no uso e manipulação de bancos de dados e informações na rede mundial de computadores. Como pichadores virtuais, a imagem que tais parasitas sociais passam (também os pichadores não virtuais) é a mesma do personagem Coringa do filme “Batman – The Dark Knight” (2008): sua felicidade é a desgraça e o sofrimento alheio; ver o circo pegar fogo.
A conclusão que se chega, em relação aos modelos retilíneos otimistas é a de que o otimismo se frustra justamente por ser imanente, ou seja, buscar o paraíso na terra, como se fosse possível um governo perfeitamente justo e o cidadão plenamente feliz e solidário. A tendência deve ser essa, mas não se pode cair na ingenuidade de acreditar que “aqui” e “agora” isso exista perfeitamente realizado na prática. Santos, só no Céu; na Terra, todos pecadores (ou seja, vulneráveis ao pecado, mas lutando por ser melhores, sem entregar os pontos).
5) MODELO DE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO RETILÍNEO, IMANENTE, MAS PESSIMISTA
O melhor exemplo de modelo retilíneo imanente pessimista da História é encontrado no Voluntarismo de Edward von Hartmann (1842-1906), que esquematiza o desenvolvimento do tempo histórico nas seguintes etapas (em “Filosofia do Inconsciente” – 1869):
ETAPAS | CARACTERÍSTICAS |
Princípio do Mundo | O Absoluto Espiritual Inconsciente (Vontade e Intelecto existiam em harmonia antes do surgimento do mundo) |
Desenvolvimento | A Vontade irrompe na existência temporal (geração da infelicidade pela existência) |
Fim do Mundo | Redenção pelo Conhecimento (compreensão que leva à perda da vontade de existir) |
Em que pese não haver desenvolvido qualquer teoria da História, o filósofo que melhor representa o pessimismo existencial, numa coerência perfeita com o ateísmo que professa, é Jean-Paul Sartre (1905-1980). Sua filosofia se tornou conhecida especialmente através de suas obras teatrais:
a) em “A Náusea” (1938), fala da ausência de sentido nas coisas (absurdo do real), que provocaria esse frio no estômago, próprio de quem está em contínua queda livre, ao sentir que lhe falta terreno onde pisar (se Deus não existe, estamos soltos no mundo).
b) em “O Ser e o Nada” (1943), encara a existência do homem como vazia de ser mas aberta às possibilidades (liberdade absoluta, sem qualquer limite: “Somos condenados a ser livres”; “A liberdade consiste na escolha do próprio ser. E essa escolha é absurda”; daí que conclui: “O homem é uma paixão inútil”).
c) em “A Portas Fechadas” (1945), melhor alegoria sobre o inferno como lugar onde se vive voluntariamente, por rejeição a Deus e aos demais, conclui que “o inferno são os outros”.
Não obstante sua adesão ao marxismo, por sua concepção materialista do mundo (se o homem é suas possibilidades, estas estão limitadas pelas condições da vida material em que se encontra), Sartre rejeitará a visão marxista da História, por ser determinista e otimista (progresso contínuo), quando a existência seria livre, mas nauseante.
Talvez um dos melhores antídotos contra o pessimismo sartriano seja o também filósofo francês Emmanuel Lévinas (1906-1995), quando pondera que, diante do rosto do outro, o sujeito descobre o sentido da existência e o infinito, pois se descobre responsável: “o paraíso são os outros”, pelo valor da solidariedade e da amizade (“Totalidade e Infinito” – 1961). Basta lembrar da sincera, sólida e longa amizade que ligou J. R. R. Tolkien (1892-1973) a C. S. Lewis (1893-1963), que transcendia o mero gosto literário, pois tinha raízes na busca da verdade, do bem e do belo (dos transcendentais do ser).
6) MODELO DE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO RETILÍNEO TRANSCENDENTE
A obra por excelência que retrata um modelo retilíneo transcendente da História, pelo qual haveria uma meta de todo o caminhar humano pela Terra, é o livro “A Cidade de Deus” de S. Agostinho (354-430), em que o bispo de Hipona desenvolve sua filosofia da História.
Já nas “Confissões”, onde relata seu processo de conversão do maniqueísmo ao cristianismo, em plena maturidade (“Tarde eu te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde eu te amei, e Tu estavas em mim e eu não estava contigo”), coloca de plano o ponto de partida e a meta de toda existência humana e desenvolvimento histórico da sociedade: “Criaste-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Vós”.
Numa concepção criacionista do mundo, baseada na realidade palpável de que o homem não se explica a si mesmo e não dá razão de sua própria existência sem o reconhecimento da dependência de Deus, a História tem como princípio a Criação a partir do Nada e como fim o Juízo Universal, no qual todas as ações humanas serão julgadas, recebendo-se o prêmio e o castigo por elas merecido (já J. J. Rousseau reconhecia a necessidade lógica desse juízo pós-morte, pois as injustiças na terra não poderiam subsistir eternamente). Uma História com começo e final (feliz para alguns, triste para outros, de acordo com o exercício da própria liberdade: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”).
Na “Cidade de Deus”, S. Agostinho fala da construção paralela de duas cidades:“Dois amores construíram duas cidades: o amor de Deus, até o desprezo de si mesmo, a celeste; o amor próprio, até o desprezo de Deus, a terrena. Uma se gloria em si mesma e a outra em Deus”.
Para S. Agostinho, haveria a construção visível da Cidade Terrena (civilizações, impérios, culturas), que se realiza concomitantemente com a construção invisível da Cidade Celestial (o Reino de Deus que se vai formando nas almas que se santificam e se salvam), cujas pedras vivas são as almas que vão sendo ganhas para o Céu.
Para S. Josemaria Escrivá, há uma relação estreita entre a santificação do trabalho de agora (realizar bem o pequeno dever de cada momento) e a construção dos novos céus e da nova terra (sentido escatológico do trabalho). Não se trata da construção apenas de obras, mas de si mesmo. A melhor “dica” que dá para sermos pessoas centradas, equilibradas, realizadas e eficazes é aquela plasmada no ponto 815 de seu livro “Caminho” (Ed. Quadrante): “Queres de verdade ser santo? – Cumpre o pequeno dever de cada momento; faz o que deves e está no que fazes”.
A densidade do ponto se percebe em contraste com aquilo que nos desvia do cumprimento dos nossos deveres (“ser santo”, na verdade, quer dizer, é “ser justo”, ou seja, perfeito cumpridor dos próprios deveres familiares, profissionais, sociais, religiosos e políticos), que é a evasão:
a) para o passado – saudades de tempos melhores, querendo retornar a eles, ou idealização de épocas passadas, buscando imitá-las (crença de que as épocas anteriores foram melhores, esquecendo-se que cada geração tem seus próprios desafios a enfrentar, com os recursos culturais e técnicos que lhe foram ofertados pelo passado, mas sem querer congelá-lo);
b) para o futuro – sonhos de grandes realizações futuras e de desempenho de papéis de relevância na sociedade (esquecendo que as ações e escolhas de cada momento condicionam, ainda que sem determinar fatalisticamente, a evolução posterior, pois cada escolha concreta feita no passado fecha um leque de possibilidades e abre outro para o futuro, e as omissões de agora serão as deficiências técnicas e morais de amanhã).
É interessante e estimulante essa visão da História focada na importância de cada indivíduo e ação concreta, uma vez que:
a) a importância real dos acontecimentos e das pessoas somente será aquilatada ao final da História (o que vemos agora é apenas o lado detrás do tapete, com seus fios aparentemente soltos e desconexos; o lado da frente, com todos os desenhos perfeitamente delineados, só se conhecerá quando o tapete tiver sido integralmente confeccionado);
b) muitos dos que parecem grandes e com papel relevante na condução dos destinos humanos, se verão pequenos, e muitos dos que parecem pequenos se verão grandes e responsáveis pelas mudanças históricas (na saga do “Senhor dos Anéis”, o mundo livre é salvo pelas mais pequenas das criaturas, os “hobbits”);
c) revela a importância de cada homem e mulher (de cada ação humana, boa ou má, por menor que seja) na construção dos destinos humanos, e o influxo positivo ou negativo que podemos ter em relação àqueles que convivem conosco, que conosco se relacionam ou aos quais chegam nossas ações, escritos, pensamentos e orações.
O notável historiador inglês Arnold Toynbee, em seu “Um Estudo da História” (1972), ao falar da desintegração das civilizações¸ aborda esse último aspecto da importância do microcosmo para o macrocosmo político-social: “Qual é o caminho que o indivíduo deve tomar para chegar ao seu destino de auto-realização em seu mundo íntimo? Ele experimenta, afinal de contas, a mesma crise que seus semelhantes em sua comum provação de vida numa sociedade em desintegração; entretanto, o que é para os outros um obstáculo, para ele é um supremo desafio. Quando o élan de desenvolvimento numa sociedade sadia parece ter desaparecido, o indivíduo passivo perde seu domínio sobre os mares ignotos do Universo; mas a reação alternativa para esta sensação de perda de controle não é olhar para o exterior, para um macrocosmo mergulhado em pecado, mas olhar dentro de seu íntimo e reconhecer a derrota moral como um fracasso de autodomínio. Este senso de pecado pessoal apresenta o mais agudo contraste imaginável com a passiva sensação de deriva; pois, quando a sensação de deriva tem o efeito do ópio, instilando na alma uma insidiosa aquiescência a um pecado que se acredita estar nas circunstâncias externas, além do controle da vítima, a sensação de pecado tem o efeito de um estímulo, porque conta ao pecador que o mal não é externo, afinal de contas está em seu íntimo, e portanto sujeito à sua vontade. Aí está toda a diferença entre o vale de lágrimas e a fé que move montanhas” (Ed. UnB-Martins Fontes – 1987 – Brasília, pg. 260).
Com efeito, saber que o mal se esconde dentro de cada um de nós (vide o processo de corrupção de Anakin Skywalker, a partir de um bem, que é o amor a Padmé Naberrie, e que se acompanha no Episódio III da série cinematográfica “Star Wars”, até transformá-lo no terrível Darth Vader) é o primeiro passo para combatê-lo e dominá-lo, o que está ao nosso alcance. Com isso estaremos contribuindo significativamente para mudar o mundo à nossa volta para melhor.
7) A PROVIDÊNCIA DIVINA NA CONCEPÇÃO CRISTÃ DO DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Na concepção cristã, a lei interna da História é a Providência Divina (não é o mero acaso), que dirige a História, respeitando a liberdade humana.
Henri-Irennée Marrou (1904-1977), seguindo na tradição da “Cidade de Deus” de S. Agostinho, resumia a História num Tríptico (“Teologia da História” – 1968), composto dos seguintes quadros:
- Quadro da Esquerda – o tempo do Antigo Testamento (desde a Criação até a Encarnação do Verbo, focado no povo eleito de Israel);
- Quadro Central – o tempo do Novo Testamento (entrada de Deus na História Humana, com Jesus Cristo);
- Quadro da Direita – o tempo da Igreja (desde o Pentecostes até a 2ª Vinda de Cristo, no final dos Tempos, abrangendo todos os povos).
Quando se pergunta sobre se a História teve um princípio, várias são as posturas:
RESPOSTA | PROPONENTE | EXPLICAÇÃO |
Afirmativa | Cristianismo | Mundo criado por Deus num determinado momento. |
Ciência Atual | Universo em expansão a partir de uma explosão inicial (Big-Bang). | |
Negativa | Platão | Matéria eterna caótica, com o Demiurgo dando formas a essa matéria, criando o mundo. |
Aristóteles | Sustentava a eternidade do mundo. | |
Karl Marx | O mundo seria apenas matéria e não teve princípio (não teria sentido se perguntar sobre a origem do homem). |
O mesmo ocorre quando se pergunta sobre se a História terá um fim. Os pensadores concordam com a existência de um direcionamento do caminhar histórico, mas divergem quanto aos fins aos que esse caminhar levará:
FIM DA HISTÓRIA | ||
Intramundano | Kant | Paz perpétua (plenitude das liberdades) |
Marx | Sociedade Comunista (igualdade absoluta) | |
Extramundano | S.Tomás de Aquino | O fim último deve estar fora do Universo |
Relativo | Passagem para outra forma (transcendente) | |
Absoluto | Existencialistas | Retorno ao nada |
Há, no entanto, uma heterogênese dos fins; uma dupla causalidade histórica que explica os fatos históricos:
CAUSALIDADE HISTÓRICA | |
Humana | O homem é o protagonista direto da História, através de seus atos livres (construtor da História; causa segunda, mas livre). |
Divina | A Providência Divina guia a História, sem violentar a liberdade humana (arquiteto da História; causa primeira, que prevê e governa, respeitando a liberdade, mas aproveitando todos os acontecimentos para dirigí-los ao fim). |
Assim, a História é obra de Deus e dos homens, cada um com a sua causalidade e com o seu fim. Deus tem um plano, que não se frustra, mesmo que, aparentemente, possa-se pensar que o mundo está de pernas para o ar e que a maldade impera.
Numa visão poética de rara beleza, J. R. R. Tolkien apresenta a criação de seu mundo como obra de um Deus Único e Transcendente (“Eru” ou “Ilúvatar”), mas que confere às suas criaturas a participação na obra criadora, imaginando a História do Mundo como uma grande sinfonia, com suas harmonias e dissonâncias:
“Disse-lhes então Ilúvatar:
– A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que criem juntos, em harmonia, uma Música Magnífica. E, como eu os inspirei com a Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema, cada um com seus próprios pensamentos e recursos, se assim o desejar. Eu, porém me sentarei para escutar; e me alegrarei, pois, através de vocês, uma grande beleza terá sido despertada em forma de melodia.
E então as vozes dos Ainur, semelhantes a harpas e alaúdes, a flautas e trombetas, a violas e órgãos, e inúmeros coros cantando com palavras, começaram a dar forma ao tema de Ilúvatar, criando uma sinfonia magnífica; e surgiu um som de melodias em eterna mutação entretecidas em harmonia, as quais, superando a audição, alcançaram as profundezas e as alturas; e as moradas de Ilúvatar encheram-se até transbordar; e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e este não estava mais vazio. Nunca, desde então, os Ainur fizeram uma música como aquela, embora tenha sido dito que outra inda mais majestosa será criada diante de Ilúvatar pelos coros dos Ainur e dos Filhos de Ilúvatar, após o final dos tempos.(…)”
(…) Entretanto, quando eles entraram no Vazio, Ilúvatar lhes disse:
– Contemplem sua Música! – E lhes mostrou uma visão, dando-lhes uma imagem onde antes havia somente o som. E eles viram um novo Mundo tornar-se visível aos seus olhos; e ele formava um globo no meio do Vazio, e se mantinha ali, mas não pertencia ao Vazio. E, enquanto contemplavam perplexos, esse Mundo começou a desenrolar sua história, e a eles parecia que o Mundo tinha vida e crescia. E, depois que os Ainur haviam olhado por algum tempo, calados, Ilúvatar voltou a dizer:
– Contemplem sua Música! Este é seu repertório. Cada um de vocês encontrará aí, em meio à imagem que lhes apresento, tudo aquilo que pode parecer que ele próprio inventou ou acrescentou. E tu, Melkor, descobrirás todos os pensamentos secretos de tua mente e perceberás que eles são apenas uma parte do todo e subordinados à sua glória” (J. R. R. Tolkien, “O Silmarillion”, São Paulo, Martins Fontes Editora, 2001. pgs. 4-7) (grifos nossos).
Em primeiro lugar, o tema da sinfonia é determinado por Deus. Em segundo lugar, a participação livre de cada um (“se assim o desejar”) é que plasma a história (“viram um novo Mundo tornar-se visível aos seus olhos”). Em terceiro lugar, também o mal é conduzido e aproveitado para a glória de Deus (“E tu, Melkor, descobrirás todos os pensamentos secretos de tua mente e perceberás que eles são apenas uma parte do todo e subordinados à sua glória”), valorizando o mérito dos bons e ressaltando a sua beleza moral. E, finalmente, haverá uma sinfonia eterna cantada “após o final dos tempos” (ou seja, haverá um fim da História) por anjos e homens (“coros dos Ainur e dos Filhos de Ilúvatar”).
J.R.R. Tolkien, seguindo na tradição agostiniana, reconhecerá a dupla causalidade na História: o acaso não existe. E mais. Deus aproveita até o mal para dele tirar bens (não que o pecador não seja responsabilizado, mas pode ser perdoado, sem se arrepende e, mesmo que não o faça, suas obras más não impedem a realização do plano divino).
Como diria S. Paulo: “Todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus” (Rom 8, 28). E, na saga tolkiana dos Anéis do Poder, a visão do sábio Gandalf mostra bem esse dirigismo providencial da História, para que tudo termine bem, aproveitando-se até do mal:
“Os dias à nossa frente serão malignos. Vamos dormir, enquanto podemos!
— Mas — disse Pippin.
— Mas o quê? — disse Gandalf. — Só permitirei um único mas esta noite.
— Gollum — disse Pippin. — Como é que eles poderiam estar andando com ele, até mesmo seguindo-o? E pude perceber que Faramir não gostou mais do que você do lugar para o qual ele os estava levando. Qual é o problema?
— Não posso responder isso agora — disse Gandalf. – Mesmo assim, meu coração de alguma forma sabia que Frodo e Gollum iriam se encontrar antes do fim. Para o bem ou para o mal. Mas sobre Cirith Ungol não falarei esta noite. Traição, é a traição que receio; traição daquela criatura miserável. Mas precisava ser assim. Vamos nos lembrar de que um traidor pode trair-se a si mesmo e fazer o bem que não pretende. Pode ser assim, algumas vezes. Boa noite!” (J.R.R. Tolkien, “O Senhor dos Anéis”. São Paulo, Martins Fontes Editora, 2001. pg. 862) (grifos nossos).
“Fazer o bem que não pretende…” Quando se pensa na “Providência Divina” e na sua conjugação com a liberdade humana, é possível vislumbrar a sua compatibilidade, imaginando no que é mais perfeito?: a) dizer a um filho, com autoridade, que aja de determinada forma; b) convencê-lo racionalmente de que o melhor modo de comportar-se é aquele; c) dar exemplo para que o filho infira qual o comportamento adequado e queira adotá-lo; d) enfrentar de tal modo o mau comportamento do filho, que este se voluntariamente se emende e recobre o bom caminho.
Em suma, para um cristão, o acaso é uma palavra vazia de sentido. Pensando na Providência Divina, tudo o que acontece contra a nossa vontade, acontece em conformidade com a Vontade de Deus. Assim, até naquilo que nos afeta, que é o pecado alheio e próprio, há um elemento material e outro formal. Deus concorre para o material, pois nada se faz sem a participação de Deus, que dá e mantém o ser a todas as coisas. E permite o formal, justamente para não tirar a liberdade humana, mas utiliza o pecado como instrumento de provação e santificação do justo.
Com efeito, se o pecado (mal moral) é uma desordem, não é de estranhar que seus efeitos sejam desordenados (inocentes sofrendo as violências e pagando pelos erros dos culpados). No entanto, essa injustiça visível não é a palavra final sobre o homem e o mundo. Terminada a epopéia do homem sobre a terra, o papel, mérito e demérito de cada um na construção da sociedade humana será mensurado, premiado ou condenado.
Assim, o mistério da História está no caráter invisível do progresso real e na incapacidade de discernimento, neste mundo, daqueles que efetivamente mais contribuíram para esse progresso. Com isso, numa visão cristã da História, “melhor finis quam principium”: o destino comum humano será alcançado numa dimensão mais elevada e realizadora do que a previsão original.