Prof. M. A. Alexander Meireles da Silva. 1
O Terror é um dos subgêneros mais populares dentro dos vários que são rotulados como “Fantástico”. E, no leque que esse subgênero nos abre, temos a presença perene da que se convencionou chamar Literatura Gótica. Diz-nos o professor da USP Ariovaldo José Vidal que o romance gótico é uma espécie de patriarca, forma inaugural do que hoje conhecemos genericamente como história sobrenatural ou de terror. É certo que o gótico, como muitos outros gêneros, conheceu os primeiros cultivadores, logo em seguida um momento de apogeu, para finalmente transformar-se ou se desdobrar em outras formas literárias que, no entanto, guardam, mesmo após tantos anos, traços do velho estilo.[1]
De fato, podemos imaginar um livro feito para aterrorizar (ou um filme, já que o cinema se tornou o mais comum sucedâneo da literatura nestes dias) que não apresente um castelo ou uma casa mal assombrados, com corredores ou subterrâneos sinistros onde antagonistas sombrios aparecem para ameaçar protagonistas desavisados?
Na epígrafe deste artigo, o professor Meireles da Silva explica a emergência do gótico no mundo iluminista como uma forma de protesto contra a ordem excessiva, a placidez que vemos na arte neoclássica. Diante de uma estética (seja escrita ou visual) que prima pela organização e a beleza serena, sempre surgem obras que acabam com toda ordem e desafiam a razão. São as forças sobrenaturais voltando a atacar quando se acreditava que tudo estava resolvido, racional, estabelecido. De súbito, vêm à tona os feios, os obscuros, os sujos, os repugnantes. Temos então espectros, duendes, vampiros, lobisomens, trolls e toda a série de seres malévolos ou simplesmente assustadores que a imaginação humana faz emergir na literatura desde tempos imemoriais – desde que, lá para os idos do Neolítico, os povos da Mesopotâmia conceberam monstros como Tiamat ou Humbaba, para atacar deuses e mortais.[2]
Tal alternância entre uma arte mais racional e uma arte mais instintiva marca todo e qualquer estudo das correntes literárias e artísticas da civilização ocidental. O exemplo óbvio dessa tendência cíclica é o Barroco sucedendo ao Renascimento nas artes visuais, ou o Simbolismo sucedendo (ou mesmo sobrepondo-se) ao Realismo na literatura. Parece que, toda vez que o ser humano encontra uma forma de explicar tudo pela razão, eliminando a emoção, as forças da imaginação reprimida contra-atacam causando um transbordamento emocional – e isso traz de volta os tais monstros primevos para saciar nossa sede por esse tipo de enredo sobrenatural. Para atender ao nosso fascínio pelo fantástico e brincar com nossos medos.
Como já mencionamos antes, alguns autores acreditam que a primeira novela de terror propriamente dita seja o Castelo de Otranto, de Horace Walpole (veja em http://www.valinor.com.br/colunas/torech-ungol/uma-introducao-a-literatura-fantastica/). Publicado em 1764, consta que essa obra teria inspirado nomes como Edgar Allan Poe e Bram Stoker. Já que Walpole foi um aristocrata e sua novela fez muito sucesso, é bem possível que tais autores o tenham lido e que o tom da novela os tenha, sim, influenciado.
A verdade é que dificilmente leremos qualquer novela de terror que não utilize pelo menos um dos elementos que aparecem – pela primeira vez na história da literatura? Talvez… – na história do Castelo de Otranto. Vamos conferir um trecho, em que a personagem Isabela tenta escapar a um óbvio destino nas mãos do vilão da novela.
Firmemente decidida, tomou uma tocha que queimava ao pé da escada e rumou correndo para a passagem secreta. A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros interligados e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a porta que abria para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões subterrâneas, exceto quando, vez por outra, algumas rajadas de vento sacudiam as portas pelas quais ela havia passado e os gongos de ferro ecoavam através daquele longo labirinto de trevas.
Soa familiar? Na cena, Isabela, filha do Marquês de Vicenza, está fugindo do nefando Príncipe Manfredo. Este detém ilegalmente o Principado de Otranto e quer forçar a união de seu filho Conrado com a moça, uma típica donzela virgem e sofredora que se torna joguete nas mãos do malvado. Porém, na própria noite em que se realizaria o casamento, forças estranhas entram em ação e um antigo e imenso elmo de ferro com plumas negras desaba sobre o noivo, matando-o. Manfredo, então, planeja repudiar a própria esposa, Hipólita, para casar-se ele mesmo com Isabela. Através dessa união, o vilão deseja impedir o cumprimento de uma antiga profecia e se manter na posse da propriedade que usurpou. Segue-se uma trama cheia de mais estereótipos, além do castelo sombrio cheio de corredores escuros e passagens secretas e da sempre presente profecia que anuncia o fim dos desmandos cometidos (mas que nunca pode ser impedida). Encontraremos florestas assustadoras propícias à aparição de fantasmas, mocinhas virginais e rapazes heróicos, estátuas que vertem sangue, padres que guardam segredos, herdeiros perdidos e criaturas inocentes condenadas à morte por um tirano…
Devemos, porém, lembrar que provavelmente conhecemos os filhos antes de conhecer o avô! O mesmo acontece com quem leu qualquer obra de fantasia antes de ler J. R. R. Tolkien, e acha estranho encontrar tantos clichês reunidos em O Senhor dos Anéis. Contudo, se hoje nós, autores, brincamos de colocar nossos personagens esgueirando-se por corredores escuros de castelos e casarões, enquanto uma tempestade ruge lá fora e espectros desencarnados se agitam para evitar que vilões consumam seus planos nefastos contra jovens puras, estamos prestando homenagem a quem nos indicou esse caminho: um nobre inglês de vida controversa, filho de um Primeiro Ministro, que deixou como herança uma gráfica própria, inúmeras cartas e uma propriedade tão gótica quanto seus escritos: Strawberry Hill, nos arredores de Londres.
Existe uma boa tradução da obra em português, pela editora Nova Alexandria, em:
E, como nos diz o já citado prefaciador dessa edição, se o gênero persiste até hoje, fazendo tanto sucesso com autores que se tornaram quase que uma indústria cultural (…) é porque o dia-a-dia do leitor moderno continua cinzento tanto ou mais como no tempo de Walpole, mas também pelo fato de que a imaginação não conhece limites, fazendo-se mais forte justamente no desejo de transpor a realidade conhecida.
Convido-os, então, a transpor a “realidade conhecida” transpondo as grandes portas deste castelo mal-assombrado que assustou muitos leitores nos últimos séculos.
Leituras sugeridas:
Coelho, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. São Paulo: Vozes, 1994.
Walpole, Horace. O Castelo de Otranto. São Paulo: Nova Alexandria, 1996.
Meireles da Silva, Prof. M. A. A. Artigo O Barba azul”: conto de fadas ou conto gótico?
In: http://www.unigranrio.br/unidades_acad/ihm/graduacao/letras/revista/numero9/textoalexanderm.html
[1] Vidal, Ariovaldo José. Apresentação. In: Walpole, Horace, “O Castelo de Otranto”.
[2] Tiamat era o ser primordial da mitologia da Babilônia, às vezes descrito como um dragão, às vezes como uma deusa que deu à luz serpentes e monstros. Foi vencido por Marduk, e de seu corpo se fez o mundo. Já Humbaba era um gigante cujo rosto era feito de entranhas, e que possuía o olhar da morte.