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Magos, Bruxas e Feiticeiros: o Bem e o Mal na Literatura de Fantasia

They brought me her heart. I know it was hers – no sow’s heart or doe’s would have continued to beat and pulse after it had been cut out, as that one did.
Neil Gaiman – Snow, Glass, Apples

Nota: se você não leu O Mágico de Oz e Wicked, vai encontrar spoilers neste artigo.

Personagens praticantes de magia aparecem em histórias da tradição oral desde que o mundo é mundo. Muito antes que Harry Potter voasse em sua vassoura nas aulas de vôo de Madame Hooch em Hogwarts, feiticeiros e feiticeiras já andavam às voltas com palavras de poder, encantamentos, vassouras e caldeirões nos mitos e contos de fadas, as narrativas ancestrais que deram origem ao que hoje chamamos de Literatura.

E, embora nessas histórias antigas os bruxos e bruxas tenham sido retratados com frequência como personagens malignos, nem sempre isso aconteceu. Bem antes de a ideia de “Mago do Mal / Mago do Bem” ser personificada em Voldemort / Dumbledore, temos feiticeiras odiadas como Medéia e Circe (mitologia grega), magos nefastos como o tio de Aladim (1001 Noites), e bruxas terríveis como a madrasta de Branca de Neve (Irmãos Grimm); mas encontramos também magos benignos como Merlin nos mitos do Ciclo Arthuriano ou Gandalf na obra de J. R. R.Tolkien, e bruxas ambíguas como a da tradição oral russa, Baba-Yagá, que se apresenta ora com um aspecto maligno, ora com um aspecto maternal.

O arquétipo da bruxa, aliás, é caracterizado por essa ambiguidade: sua origem pode estar em antigas religiões matriarcais, em que se venera a Deusa, a Grande Mãe, que tanto pode doar vida como tirá-la. Há inúmeros exemplos em variadas mitologias (Inanna, Ishtar, Astarté, Ceridwen), mas uma das figuras mais arquetípicas nesse sentido é a deusa Kali, do Hinduísmo – deusa da morte mas também da vida, terrível porém necessária à manutenção da existência. Essa dualidade vai permear as figuras literárias que são sucedâneos do arquétipo da Mãe-Bruxa-Deusa através dos séculos (seja em figuras femininas ou masculinas, devemos notar) e que são descritas como praticantes de magia, feitiçaria, bruxaria – machos ou fêmeas.

Podemos começar a analisar como esses praticantes de magia são vistos nas histórias da literatura (e como com o passar do tempo essa visão muda, transforma-se, enriquecendo nossa percepção da ideia de Bem versus Mal) escolhendo dois casos interessantes.

O primeiro caso une a obra O Mágico de Oz, de L. Frank Baum (1900), a seu sucedâneo, o livro Wicked, de Gregory Maguire (1995).

O Mágico é Oz é considerado o primeiro e mais bem-sucedido livro de Fantasia infanto-juvenil dos Estados Unidos. Foi publicado em 1900, quando seu autor, o eclético Lyman Frank Baum, tinha 44 anos. Baum foi avicultor, produtor teatral e caixeiro-viajante, entre outras coisas; e, como ocorre a muitos escritores (inclusive eu mesma), começou a inventar histórias apenas para contá-las aos filhos. Após o lançamento do livro A Cidade Esmeralda de Oz, cujo título foi alterado para O Maravilhoso Mágico de Oz, ele se firmou como escritor e adaptou a história para uma versão musical, apresentada em Chicago em 1902. Daí o musical foi para a Broadway, e o grande sucesso do livro e da peça o levaram a escrever outras histórias baseadas na Terra de Oz.

Em 1939 seu primeiro livro foi transformado em uma superprodução da Metro sob a direção de Victor Fleming, estrelando Judy Garland e, embora houvesse uma versão anterior, nos primórdios do cinema, esta foi considerada a definitiva. A grande popularidade da produção fez com que a obra se transformasse em uma das histórias mais conhecidas e parodiadas na história das telinhas e telonas. Os personagens se tornaram parte da cultura oral, virtual, televisiva e cinematográfica: quem nunca ouviu falar no Mágico de Oz, na Cidade Esmeralda, nos Munchkins, na Estrada de Tijolos Amarelos, nos sapatos encantados, nos Macacos Voadores e na Boa Feiticeira Glinda, além dos inefáveis Espantalho sem cérebro, Homem de Lata sem coração e Leão covarde? Quem nunca cantarolou a canção “Over the Rainbow”?

A Terra de Oz é um mundo colorido – em oposição ao mundo cinzento original da protagonista, Dorothy (o Kansas). Sob esse ponto de vista, trata-se de uma Utopia: uma terra cheia de magia, animais falantes e bons sentimentos – veja-se como Dorothy encontra acolhida e bondade pelo caminho – exceção feita, é claro, aos antagonistas como a pérfida Bruxa Malvada do Oeste e monstros ocasionais, como os Kalidahs e os Cabeças-de-Martelo. O Mágico (uma tradução para Wizard, que hoje seria traduzida de preferência como Mago, ou Feiticeiro; veja nota de rodapé.[1]) é um governante na Cidade Esmeralda, temido e poderoso. Mais tarde descobrimos que na verdade Oz é humano, e não possui capacidade mágica alguma; usa de tecnologia, truques, para impressionar os Ozianos e se manter no poder (é peculiar como, ao optar pela tecnologia como forma de dominação de um povo, ele se assemelha a Saruman, embora o Istar [mago] de O Senhor dos Anéis possuísse, sim, poderes de magia, apesar de que não pudessem superar os de Gandalf, que o combateu antes e depois de se tornar Gandalf o Branco).[2]

No entanto, Oz não é perverso, é apenas uma fraude, um usurpador; e tem medo dos reais poderes existentes na Terra de Oz – as quatro Bruxas, do Norte, Sul, Leste e Oeste. Nesse cenário, tais personagens (suas designações às vezes são traduzidas como Bruxas, às vezes como Feiticeiras, uma palavra menos carregada de carga semântica negativa) dominam os quatro países, ou regiões, Ozianas: Gillikin ao Norte, Quadling ao Sul, Winkie / Winkus a Oeste e Munchkin a Leste. As Bruxas do Leste e do Oeste são malignas, enquanto as do Norte e do Sul são benignas. A única a ser designada pelo nome, por Baum, é Glinda (segundo ele, a Bruxa Boa do Sul).

O clássico de Baum está novamente em efervescência hoje em dia por obra e graça do autor Gregory Maguire, que em 1995 publicou o best-seller Wicked (Maligna,), uma versão da história de acordo com o ponto de vista da Bruxa Malvada do Oeste – ou, talvez, fosse mais correto chamar o livro de uma versão ampliada das motivações dos personagens, centrada no relacionamento entre Glinda e Elphaba (a Maligna, ou Wicked Witch of the West do título) e levando em conta uma história anterior da Terra de Oz e um detalhamento das relações entre os diversos povos Ozianos.

Em Maligna, Oz não é mais uma Utopia, um mundo colorido e bonitinho, mas um mundo enroscado em diversidades, que fazem com que as diferentes terras / diferentes raças convivam num delicado equilíbrio político – e onde existem dúvidas, preconceitos, divergências religiosas, problemas com a posse dos meios de produção, luta pelo poder, assassinatos, corrupção, erotismo, censura e terrorismo. Ah, sim, e magia.

Essa intrigante e perturbadora fantasia é uma versão do que teria ocorrido na Terra de Oz antes e durante a visita da menina  Dorothy àquele mundo, porém contada do ponto de vista da Bruxa Malvada do Oeste, o que faz com que, como é dito na contracapa do livro, após essa leitura nunca mais olhemos para Oz da mesma forma…

O foco na vida das bruxas é mostrado com detalhes que não existem no livro que deu origem a tudo. Glinda, aqui, será a Bruxa Boa do Norte; Nessarose, a Bruxa Má do Leste; e sua irmã Elphaba, a Bruxa Malvada do Oeste. Tais personagens são desenvolvidas desde a infância/adolescência até o momento em que entram em confronto com o personagem ambíguo do Mágico de Oz (grandes surpresas quando percebemos sua verdadeira natureza…) e da tremenda Madame Morrible – esta sim, a verdadeira malignidade da história, e que não está presente no clássico. A pergunta inicial que Maguire coloca é: por que Glinda é tão amada e Elphaba tão odiada? O que fez as Bruxas serem o que são?Maldade? Bondade? Ou a força onipresente da Propaganda?

Os Munchkins, Winkies e Quadlings são mostrados de uma forma bem diferente do que nas obras originais; e quanto a Dorothy, a garota não é mais apenas a protagonista boazinha que (literalmente) caiu em Oz por obra do acaso – ela aparece como uma inocente útil que se envolve com a luta por poder e liberdade em Oz. Mas, de certa forma, essa noção já estava presente em Baum. No livro original, quando a garota finalmente chega à Cidade Esmeralda (após percorrer a Yellow Brick Road, estrada de tijolos amarelos) e encontra o Mágico, as palavras dele são as seguintes:

– Você não tem o direito de esperar que eu a mande de volta ao Kansas, a menos que você em troca faça algo por mim. Nesta terra todo mundo deve pagar por tudo que obtém. Se você quer que eu use meus poderes mágicos para mandá-la de volta a sua casa, precisa fazer alguma coisa por mim antes. Ajude-me que eu ajudo você.

– Que devo fazer? – perguntou a menina.

– Mate a Bruxa Malvada do Oeste – respondeu Oz.

Maguire leva às últimas consequências esse diálogo. Manipulada por Oz, a criança deve se tornar uma assassina. O resultado é que o Bem e o Mal se confundem, e de repente não podemos distingui-los claramente, pois também nós, leitores, somos ofuscados pelas verdes e hipnotizantes luzes da Cidade Esmeralda. No torvelinho que se segue a personagem mais fascinante é Elphaba, a menina que nasce verde e que, sem perceber, vai sendo transformada pelas circunstâncias na figura que hoje temos como estereótipo da malignidade. Seria ela realmente maligna, ou apenas teria optado por manter seu livre arbítrio diante de um déspota? De repente, o Mágico de Oz não é mais apenas um atrapalhado usurpador, tornou-se uma figura assemelhada a um Sauron (de O Senhor dos Anéis), um Galbatorix (de Eragon), um Tirano (de Crônicas do Mundo Emerso) e tantos outros arquétipos do detentor de poder militar, esteja ele à direita ou à esquerda de uma classe média que preferiria permanecer neutra quanto à política. Perdidos na história, em meio à eterna dualidade do Bem contra o Mal, enxergamos nuances inesperadas nas entrelinhas do discurso que envolve esses dois conceitos – em Wicked não tão rígidos quanto na obra clássica, embora, como vimos, até ali já se abrisse certo espaço para uma discussão não-maniqueísta.

A versão da Broadway para Wicked, um musical magnífico, em cartaz desde 2003, é mais leve e menos complexa que a história do livro, mas transborda de ironia e sarcasmo quanto à hipocrisia de uma sociedade ávida por bodes expiatórios (e um dos bodes expiatórios aqui é mesmo um Bode…). Mas são ricas e interessantíssimas as discussões resultantes desse embate entre O Mágico de Oz livro, musical e filme e Wicked (livro e musical, sem esquecermos que diz-se haver em Hollywood a pré-produção uma versão para cinema, prometida para 2010).
Na saída do teatro, na Broadway, em letras garrafais (verdes, é claro), há os dizeres:

YOU ARE NOW LEAVING OZ. REALITY RIGHT AHEAD.

DRIVE (OR FLY) CAREFULLY.

Ao deixar a Terra de Oz, então, e encontrar a Realidade à nossa frente, restam-nos as dúvidas e a necessidade premente de analisar sempre, duvidar sempre, das noções de Bem e Mal que nos são apresentadas, na ficção ou na realidade.

O segundo caso que gostaríamos de comentar, ao confrontar algumas versões de obras de Fantasia que abordam Magos, Bruxas e Feiticeiros, é a história de Branca de Neve. Certa ocasião, para compor uma peça teatral encomendada, li pelo menos dez versões desse conto folclórico, recontado pelos irmãos Grimm em sua forma mais conhecida. Em todas elas encontrei a garota, Snow White (Branca de Neve) retratada como a proverbial princesinha dos contos de fada, bondosa, amorosa e merecedora de toda a felicidade, enquanto sua Madrasta é maligna, dada a práticas de magia negra e traições sem fim. Os mesmos estereótipos que cercam Dorothy e Elphaba.

Originalmente, como ocorre com os contos de fada, esta não era uma história para crianças; com o tempo, porém, passou a ser; e reconhecemos sua origem não-infantil claramente, ao analisar os castigos a que a Madrasta-Bruxa é submetida no final do conto. Eles dariam inveja a um torturador da Inquisição: vão desde a versão açucarada da Disney, em que a tempestade a faz cair de um precipício, até a condenação à morte, que a faz ser levada a uma praça pública e ter de calçar um par de sapatos de ferro incandescentes, para dançar até cair morta.

Podemos encontrar, porém, uma versão dessa história que faz o que Wicked fez a Oz: mostra a versão do antagonista – não mais a Bruxa Malvada do Oeste, mas a Madrasta de Branca de Neve. Em Smoke and Mirrors, uma coletânea de contos do autor britânico Neil Gaiman, o conto Snow, Glass, Apples retrata Branca de Neve como uma vampira – faz sentido, afinal a garota é branca como a neve, tem a boca vermelha como sangue, e ostenta um aspecto frio, gelado, presente até em seu nome.

Então a inversão acontece novamente: o Bem e o Mal se confundem, e a Rainha, a feiticeira maligna que enfeitiça a enteada com uma maçã envenenada e manda arrancar-lhe o coração, estaria apenas tentando livrar o mundo de uma gélida sugadora de sangue. O que a condena (a Rainha) a uma morte terrível. Perturbador, não?

Não há dúvidas de que, se O Mágico de Oz e Branca de Neve são hoje consideradas histórias exemplares para crianças, reflexões sobre elas a que obras como as de Maguire e Gaiman nos levam são bem-vindas e salutares. Num mundo em que pessoas e instituições, devidamente respaldadas por leis setoriais ou escrituras ditas sagradas, ainda queimam livros (literalmente), e seus autores são execrados por parcelas da população que abençoam a censura, consideram a tortura a terroristas aceitável e certamente aplaudiriam a execução pública de praticantes de magia / bruxaria / feitiçaria ou quaisquer práticas que eles julguem como tais – é mais do que importante discutir os arquétipos e as noções de Bem e Mal presentes nos livros, suas implicações e motivações.

E está aí uma das funções mais importantes da Literatura Fantástica.

Leituras sugeridas:

O Mágico de Oz – L. Frank Baum. Editoras: Ática, Martin Claret, Ediouro, L&PM.

Maligna – Gregory Maguire. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

Branca de Neve – Irmãos Grimm. Inúmeras editoras.

Smoke and Mirrors – Neil Gaiman. New York: Harper Collins, 1998.


[1] Vejamos as traduções mais correntes para palavras da língua inglesa ligadas aos praticantes de magia: Witch – bruxa, feiticeira. Wizard – mágico, feiticeiro, bruxo, encantador, adivinho.  Sorcerer – mágico, feiticeiro. Sorceress – feiticeira, bruxa. Magician – mágico, prestidigitador. Magi – (plural magus) mágicos, feiticeiros ou astrólogos – esta provavelmente a origem da variação Mage, muito usada em Role Playing Games.

[2] Tolkien, J.R.R., O Retorno do Rei, SP: Martins Fontes/Lisboa: Europa-América.

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