A partir do estudo de versões do livro O senhor dos anéis em língua portuguesa, dissertação mostra como os tradutores também imprimem sua personalidade no texto que produzem. Analisar os numerosos fatores envolvidos na tradução de uma obra literária, levando em conta a perspectiva de uma consagrada tradutora, é o objetivo da dissertação de mestrado de Patrícia Mara da Silva. A pesquisa, intitulada O senhor dos anéis – a tradutora na obra traduzida, foi apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da UNESP, campus de São José do Rio Preto.
Para isso, partiu de entrevistas fornecidas por Lenita à imprensa e trabalhos teóricos da tradutora, entre eles sua dissertação de mestrado, intitulada As bruxas de Macbeth no ‘original’ e em quatro traduções brasileiras: a inquisição das diferenças (1992) e a tese de doutorado A (im)possível tradução de Finnegans Wake: uma investigação psicanalítica (1999), ambas concluídas na Unicamp. Patrícia comparou, ainda, a tradução de Lenita de O senhor dos anéis e as realizadas por Antônio Ferreira da Rocha (livros 1 e 2) e Luiz Alberto Monjardim (livros 3 a 6), para a primeira publicação brasileira da obra, lançada entre 1974 e 1979.
O desafio dos nomes
Lenita traduziu o texto em prosa de O senhor dos anéis (os versos foram traduzidos por Almiro Pisetta) com a revisão técnica de Ronald Kyrmse, especialista nos escritos de J. R. R. Tolkien. Quando questionada a respeito de problemas e/ou desafios que a linguagem do autor lhe oferecia, ela mencionou principalmente os nomes de personagens e lugares. Nesse aspecto, a tradutora deixa claro que seguiu as "diretrizes sugeridas" por Tolkien em Guide to the names in ‘The Lord of the Rings’ (Guia de nomes em ‘O Senhor dos Anéis’), em que o escritor explica a origem desses nomes e sugere como eles devem ser traduzidos. "Pude então constatar que foi desenvolvido ali um trabalho de invenção filológica bastante acurado", conta Lenita.
Tolkien enfatiza que os significados que ele atribui aos nomes em seu livro podem e devem ser preservados pelos tradutores. "Lenita disse que pôde evitar e corrigir, graças ao livro, muitas associações que poderiam ser equivocadas", informa a pesquisadora do Ibilce. É o caso da tradução de gladden fields. A expressão não se relaciona com o termo glad ("alegre"), como se poderia pensar. Tolkien explica que glad ou gladden se origina de glaedene, do inglês arcaico, e corresponde à flor-de-lis, comum nos escudos e insígnias medievais. "Portanto, traduzir gladden fields por ‘campos alegres’, como fez a tradução portuguesa, cria uma inconsistência para a história, já que tais campos foram alvo de uma das mais sangrentas batalhas de toda a narrativa", analisa a pesquisadora do Ibilce. "Lenita optou por ‘Campos de Lis’."
Tolkien, portanto, apresenta vários nomes e suas respectivas etimologias, remetendo à língua inglesa, a outras línguas germânicas e a línguas criadas por ele mesmo, como o quenya e o sindarin. Também fornece indicações de como esses nomes devem ser traduzidos.
Resíduos da tradução
Na maioria dos casos, Lenita seguiu as instruções de Tolkien. É o caso de Magote, hobbit que vivia na região do Pântano, cujo nome no texto original é Maggot, palavra que, em inglês, pode significar larva de mosca ou inseto. Em seu guia, entretanto, o escritor explica que esse nome não era para ter sentido algum a não ser soar como um nome de hobbit. Por acidente, maggot é uma palavra de língua inglesa. Sendo assim, não deve, para o autor, ser traduzido. Sem as instruções de Tolkien, a tradutora poderia ter passado o nome do fazendeiro por "Larva" ou qualquer outra coisa do tipo. No entanto, seguindo o guia, Lenita traduziu o nome por "Magote". "Apenas o adaptou à língua portuguesa por meio da omissão de uma letra ‘g’ e do acréscimo de uma letra ‘e’ no fim do nome", explica Patrícia.
Em outros casos, a tradutora seguiu a sua própria interpretação. É o caso de "Buckland", lugar onde moram os hobbits da família Brandebuques. Tolkien declara que esse nome deve conter a palavra buck (animal) ou o inglês arcaico bucc ("veado macho") ou bucca ("bode"), embora Buckland, um nome de lugar em inglês, seja derivado de "bookland", terra originalmente mantida graças a um documento oficial. Nesse caso, Lenita traduz Buckland por "Terra dos Buques". Segundo Patrícia, essa opção buscou preservar o som de buck e a idéia de land ("terra"). "O nome Terra dos Buques, no entanto, possibilita a leitura de que esse era um lugar em que moravam os Buques, o que não procede, já que os habitantes do lugar eram os Brandebuques", comenta.
A autora da dissertação aponta também os "resíduos singulares" do processo de tradução. "São ocorrências que mostram a presença do tradutor na tradução. Percebe-se a sua existência quando se faz o cotejo do original com a tradução ou quando se tem acesso a uma outra tradução do mesmo original", afirma. Como exemplo, Patrícia cita um trecho do prólogo do livro. Os hobbits são descritos como inclined to be fat. Na tradução de Antônio Ferreira da Rocha, aparecem como tendo "certa propensão à obesidade" e, na tradução de Lenita, surgem com "tendência a acumular gordura na barriga". "Essa pequena diferença – a localização da gordura – não constitui um erro, mas acrescenta ao original uma informação que não pode ser a ele atribuída", diz a autora do mestrado.
A pesquisa apresentada no Ibilce, em síntese, concebe a tradução como produção de conhecimento, não como uma forma mecânica de transporte neutro de significados de uma língua para outra. "O tradutor inevitavelmente interfere no jogo de tradução de um texto de uma língua para outra", conclui Patrícia.
Fonte: UNESP – Oscar D’Ambrosio