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Fortaleza e Coragem: Do Que Temos Medo?

1) Introdução

Quem não tem medo de nada? Quem nunca sentiu as pernas trepidarem diante de uma situação real ou imaginária de perigo? Nas Aventuras de Asterix (conhecida estória em quadrinhos de Uderzo e Gosciny), os bravos gauleses eram comandados pelo destemido chefe Abracurcix, que, no entanto, tinha um único temor: Que o céu lhe caísse sobre a cabeça…

Na minissérie “Band of Brothers”, dirigida por Tom Hanks e Steven Spilberg (2002), que conta a história de uma companhia de paraquedistas americana na 2ª Guerra Mundial – a Easy Company –, comandada pelo intrépido Tenente Dick Winters, o 2º episódio apresenta a atuação da companhia no Dia D, em que, saltando atrás das linhas alemãs na Normandia, consegue tomar de assalto e colocar fora de operação, com apenas 9 homens, uma bateria alemã de 4 canhões em Brécourt Manor, operada por um pelotão de 50 soldados. O sucesso da operação baseou-se na audácia do ataque, com posições de fogo vindo de várias direções, convencendo os alemães de que estavam sendo atacados por uma força superior.

Perguntado por Stephen Ambrose, autor do livro que deu origem à série, sobre como conseguiram realizar aquela façanha, respondeu o sargento Carwood Lipton:

“Lutamos como uma equipe, sem estrelismos. Éramos como uma máquina. Não tínhamos ninguém que desembestasse de encontro à posição de uma metralhadora inimiga e a atacasse (…) Não houve muito dessa coisa de exibicionismo heróico. Tínhamos aprendido que heroísmo era uma forma de morrer sem fazer o trabalho que precisava ser feito, e fazê-lo era mais importante” (Stephen E. Ambrose, Band of Brothers, Bertrand Brasil – 2008 – Rio de Janeiro, 4a. Edição, pg. 90).

A análise de Lipton sobre as razões do sucesso servem bem para emoldurar a virtude da coragem nos seus precisos termos, tal como dela fala Aristóteles em sua “Ética a Nicômaco” (Livro III, n. 6-8): a coragem é o meio-termo entre o medo e a auto-confiança. Aquele que se deixa dominar pelo medo é o covarde, que nunca empreende uma ação heróica. Mas o que despreza o medo, muitas vezes por ainda não ter experimentado a derrota, a dor ou o fracasso, é o temerário.

2) O Medo

A experiência do sofrimento físico ou moral gera o medo de se repetir a situação aflitiva e o desejo de se fugir dela. O medo, definia Aristóteles, é a antecipação do mal, desde a desonra, pobreza, doença, abandono dos amigos, até a morte (Ética, Livro III, 6).

No dizer de Josef Pieper, o pressuposto metafísico da coragem é a existência do mal no mundo: do mal que sofremos (e precisamos de fortaleza para suportar) e do mal que praticamos (e precisamos da temperança para controlar) (cfr. Virtudes Fundamentais, Editorial Aster – 1960 – Lisboa, pg. 170). E seu pressuposto físico é a vulnerabilidade humana: a possibilidade efetiva de fraquejar, de cair, de ser ferido, de morrer (pg. 173). Ser forte não é o mesmo que não ter medo (…), mas em não se deixar dominar por ele ao ponto de chegar a abster-se de realizar o bem (pg. 185).

O medo descontrolado e irracional (como também as profundezas insondáveis da tristeza) desenvolve no homem as fobias, que paralisam e podem tornar a vida um tormento. Medos e fobias há de todos os gêneros: desde o medo das correntes de ar (aerofobia), passando pelo medo de voar (ptesiofobia), de falar em público (agorafobia), do escuro (nictofobia) até o medo da morte (tanatofobia) e de tudo (pantofobia).

O medo supõe o reconhecimento da possibilidade da ocorrência do mal que se teme. Efetivamente, a vida é sempre um risco. Viver é muito perigoso, repetia Riobaldo Tatarana, personagem central de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.

Os versos de Gonçalves Dias são mais animadores:

Não chora, meu  filho,

Não chora , que a vida

É luta renhida,

Viver é lutar.

A vida é combate,

Que aos fracos abate,

Que aos fortes e aos bravos

Só pode exaltar.

Já as fobias são geradas por uma certeza (obviamente infundada) de que o mal vai acontecer.

A moderna psiquiatria reconhece que a causa mais profunda das doenças psíquicas é o neurótico desejo de segurança, de se estar a salvo de todos os perigos, esquecendo-se da sabedoria profunda das palavras evangélicas: Quem ama a sua vida perdê-la-á (Jo 12, 25).

3) O Segredo para vencer o Medo

Ora, o segredo para vencer medos e fobias é justamente aceitar os riscos que a vida traz consigo. No fundo, aceitar a vida como ela é, com suas contingências e limitações. Mais. Se o medo está ligado ao receio de perder alguma coisa ou sofrer algum mal, ele é vencido pelo desprendimento daquilo que amamos (e a que estamos apegados, a começar pela própria vida) e pelo hábito de enfrentar as dificuldades, que se chama fortaleza.

No caso do medo de perder algo, o episódio 3 da minissérie Band of Brothers dá uma resposta contundente para vencê-lo. Um soldado está paralisado de medo na trincheira e não consegue se controlar e sair para o ataque. O tenente que o vê desse modo lhe diz: O medo de morrer paralisa, porque nos apegamos à esperança de sobreviver; se considerarmos que já estamos mortos, lutaremos sem medo.

Com efeito, o soldado que se deixa dominar pelo medo e que foge ou fica paralisado na sua posição será mais rapidamente atingido por aquilo que mais temia: a morte. No entanto, se luta com a coragem que vence a covardia e não se deixa levar pela temeridade, esse tem mais chances de sobreviver.

Na vida diária, o treino no desapego das coisas e pessoas é o que nos faz vencer muitos dos nossos medos. Desprendimento dos bens materiais, que faz vencer o medo de perdê-los e da neurose das mil medidas de segurança para preservá-los, o que fará que os desfrutemos melhor. Desprendimento da saúde, que libertará das hipocondrias e garantirá uma vida mais saudável, até psicologicamente. Desprendimento da própria imagem, que faz vencer o medo de ficar mal ao ter de falar ou decidir, fazendo-o com mais acerto. Desprendimento das pessoas que amamos, que acabará com os ciúmes que matam e corroem a alma, fazendo com que amores e amizades não sejam possessivos mas oblativos, isto é, de doação aos outros, verdadeiro cimento dos relacionamentos.

4) A Coragem, meio-termo entre Covardia e Temeridade

Para Aristóteles, o homem corajoso seria aquele que suporta ou teme as coisas certas (as mesmas coisas não são temíveis a todos), para o propósito certo (por nobreza e não vileza), da maneira certa (dentro do limite da possibilidade humana) e no momento certo (o suicídio, por exemplo, seria covardia, por se fugir de mal que se reputa maior), e que mostra autoconfiança de forma semelhante. Não seria covardia, no entanto, o medo da desonra. Por outro lado, o máximo da coragem estaria em vencer o medo da morte.

A falsa coragem do temerário, bem como a falsa covardia do prudente estão bem sintetizadas no ponto 132 do livro ”Caminho” (Quadrante – São Paulo) de S. Josemaria Escrivá: Não tenhas a covardia de ser “valente”; foge!

Na vida, são muitas as situações em que a coragem se manifestará em não ter medo de fugir das ocasiões de queda, por se conhecer a própria fraqueza: o alcoólatra deve evitar passar na frente de um bar; a mulher pródiga deve fugir de passear no shopping; um marido ou mulher que ama o seu cônjuge deve evitar ficar a sós, em conversa mais pessoal, com alguém por quem sinta especial atração… Pode não acontecer nada, mas é mais difícil vencer a tentação colocando-se em situação que exija um auto-domínio extra.

Ambrose Bierce (1842-1914), em seu Dicionário do Diabo, definia satiricamente o covarde como a pessoa que, diante de uma emergência perigosa, pensa com as pernas (apud Ben Schott, A Miscelânea Original de Schott, Editora Intrínseca – 2005 – Rio de Janeiro, pg. 34).

Pensa com as pernas ou, mesmo que não seja covarde e enfrente a situação, fica com as pernas bambas. Ora, a aquisição da virtude da fortaleza faz com que cada vez menos as pernas batam uma contra a outra nos casos de medo ou ansiedade.

Conta-se de um general castelhano que, nos tempos da conquista da América, quando perguntado sobre seu poderio militar, respondia:

Homens: 5.000 cavaleiros e 15.000 infantes;

Armados: de arcabuzes, espadas e lanças.

Valor: se lhes supõe!

Só que apenas na batalha é que se verá se são efetivamente corajosos ou covardes. A virtude se prova nas situações de dificuldade. E, enquanto não se adquire a virtude, se procura agir como se a tivesse, até a adquirir, ou seja, procura-se controlar os nervos e as pernas, aparentando coragem e serenidade, até que, com o passar do tempo e das lutas, a coragem e fortaleza passam a ser uma segunda natureza da pessoa, que já domina seus medos e receios, a ponto de quase não reparar nas dificuldades.

Para o medo de falar em público, o diagnóstico da síndrome pode estar na incompatibilidade de se ser protagonista e espectador ao mesmo tempo. Aquele que fica mais preocupado com a forma do que com o fundo do que vai falar; que está pendente do que vão dizer ou pensar; se está abafando ou sendo ridículo; enfim, que está se observando enquanto fala, acaba entrando em parafuso, pois, usando a linguagem da informática, os dois programas não rodam simultaneamente. A vaidade acaba tornando a pessoa refém da opinião alheia, a ponto de ter um medo terrível de desagradar e desapontar.

No Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, o que mais intriga a Gandalf nos aparentemente pequenos, pacatos e indefesos hobbits é justamente de onde tiram a coragem e tenacidade para enfrentarem os perigos da missão de destruir o Anel  Um do Poder. E a resposta para explicar essa fortaleza subjacente seja justamente a ausência de vaidade, ostentação e arrogância, que dão eficácia à sua atuação.

Os hobbits não se colocavam gratuita e nesciamente em situação de perigo. Se, por um lado, a disposição para o martírio é a raiz essencial de toda fortaleza cristã, uma vez que está em jogo o bem mais prezado pelo cristão, que é a vida eterna, por outro, a primitiva Igreja Cristã condenava os que buscavam diretamente o martírio. É o que nos relata a Ata do Martírio de S. Policarpo, uma das mais antigas do Cristianismo:

Um, porém, um frígio de nome Quintus, atemorizou-se à vista dos animais selvagens. Fora ele precisamente que se apresentara voluntariamente ao tribunal, arrastando outros consigo. E o procônsul convenceu-o, com repetidas exortações, a jurar e a sacrificar. Por isso, irmãos, nós não louvamos aqueles que se denuneiam voluntariamente; e também não é isso o que o Evangelho ensina (apud Pieper, op. cit., pg. 175).

Com efeito, na escala dos temores, o medo da morte é, naturalmente, o maior que se pode ter. E se vence, humanamente, como lembra Aristóteles, pelo medo maior do homem nobre de perder sua honra. Já sobrenaturalmente, como lembra S. Tomás de Aquino, esse mesmo medo se vence também por um medo maior, que é o da condenação eterna. A rigor, esse deveria ser o medo dos medos: o da infelicidade existencial.

Portanto, como nada na vida se consegue sem sacrifício (passar no vestibular ou num concurso, encontrar e manter um bom emprego, superar as dificuldades da vida a dois e da educação dos filhos, e, principalmente, a conquista da vida eterna, condicionada ao mérito da criatura, correspondendo ao amor do Criador), a fortaleza consiste em não desistir da busca do bem árduo.

5) O Objeto da Fortaleza: o Bem Árduo

O lema da Royal Air Force (RAF) é bem ilustrativo da virtude da fortaleza: Per ardua ad astra. Com esforço e sacrifício se chega alto e longe, na busca dos iideais que se tenha. Modernamente, o lema da própria sociedade de consumo é No pain, no gain! Ainda prefiro o primeiro, que pode servir de bandeira ao homem idealista.

S. Tomás de Aquino escreveu em sua Suma Teológica que aceitar a morte, em si não é de louvar, mas tão somente na medida em que prepara para o bem (Summa Theologiae, II-II, q. 123, art. 12, ad 2): Não é o sofrimento que interessa, mas a realização do bem (Pieper, op. cit. pg. 179).

Amar o sofrimento em si é próprio do masoquista, que é vítima de um desvio psicológico. No filme O Código Da Vinci (2006), baseado na novela homônima de Dan Brown (2004), a figura grotesca do monge Silas se flagelando com um certo prazer mórbido não poderia estar mais distante da figura que pretende retratar, de um numerário do Opus Dei. O fiel cristão – e um membro do Opus Dei, prelazia da Igreja Católica, é um fiel cristão como qualquer outro – não ama a dor pela dor, mas a aceita como meio não descartável de se alcançar o bem árduo: aquele que, para ser atingido, custa sacrifício. O próprio fundador do Opus Dei, S. Josemaria Escrivá reconhecia em seu  best-seller espiritual Caminho (op.cit. n. 175): Nenhum ideal se torna realidade sem sacrifício.

Confesso que conhecendo o Opus Dei há mais de 30 anos e a vida heróica e abnegada em serviço do próximo de seus membros, imaginava, com superlativa dose de ingenuidade, que um dia se poderia escrever um romance em que o mocinho seria um numerário, retratando-se suas lutas, ideais, vitórias e derrotas. Qual não foi minha contundente surpresa quando o primeiro romance que retrata um numerário apresenta-o justamente como o vilão da estória, sem escrúpulos, sem coração e sem cabeça. O oposto do ideal cristão (que, aliás, é deturpado pelo livro e pelo filme, mostrando como o papel e a tela aceitam tudo).

Sendo a fortaleza não a primeira, mas a terceira das 4 virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), ajusta-se às demais precisamente porque recebe da 1a. e da 2a. a sua forma, ou seja, a sinalização de qual é o bem pelo qual vale a pena lutar! Por isso que Pieper lembra a tradição escolástica, segundo a qual a fortaleza é informada pela prudência e pela justiça, tanto no sentido de que é ensinada sobre o bem a ser buscado ou dado a cada um, como no sentido de que são a prudência e a justiça que lhe dão a sua forma interior, o objeto que justifica o esforço.

Por isso, a fortaleza como virtude que está a meio caminho entre a coragem e a temeridade supõe a ponderação – ato próprio da virtude da prudência – entre aquilo que se arrisca e aquilo que se pode ganhar com a vitória sobre o medo que paralisa a ação e a tentação de ficar no mais fácil. Qual o bem mais elevado, que compensa o esforço? Pelo que vale a pena dar a vida e gastar-se? Que ideal ”justifica” o viver?

Por isso S. Agostinho escrevia: Martyres non facit poena, sed causa (Enarrationes in Psalmos 34, 13). Ou seja, o que distingue um mártir de um simples condenado é a causa pela qual morre. E S. Ambrósio completa: Toda fortaleza sem justiça é uma alavanca ao serviço do mal (De Officis 1, 35) (apud Pieper, op. cit., pg. 185).

No caso dos mártires cristãos, além da esperança no prêmio eterno, que era fundamental acicate para enfrentarem o medo da morte (e uma morte dolorosíssima em muitos casos, comidos pelas feras, queimados vivos, esfolados, mutilados…), contavam com o Dom da Fortaleza, isto é, com uma ajuda especial do Espírito Santo para suportarem tantos tormentos, já que a natural fragilidade de muitos os levaria à apostasia antes que ao martírio. Com efeito, sem levar em consideração esse esteio sobrenatural não se consegue explicar humanamente tanta fortaleza em pessoas normais. Situação semelhante é aquela vivida e descrita pelos místicos (S. Teresa de Ávila, S. João da Cruz, S. Pio de Pietralcina, Madre Teresa de Calcutá…), de verdadeiro martírio interior, com o que denominaram noite escura dos sentidos e noite escura do espírito pela qual passaram, de completa aridez espiritual, permitida por Deus, como meio de purificação até o completo desprendimento de coisas, pessoas e da própria vida.

Concluímos, pois, que o próprio do homem normal é suportar o sofrimento, em vista ao bem maior que busca alcançar, dentro dos limites do que é humanamente possível suportar. Ou seja, não se procura o perigo, mas o bem que se pode conseguir, enfrentando os perigos que se apresentam e apenas na medida em que não podem ser afastados. Do contrário, está-se diante do aventureiro. E, em relação a ele se aplica o antigo provérbio, recolhido na Escritura: Quem ama o perigo nele perecerá (Eclesiástico 3, 27).

6) Partes integrantes da Fortaleza: a Paciência (para resistir) e a Coragem (para atacar)

A virtude da fortaleza tem duas partes integrantes ou virtudes conexas, ligadas aos seusdois principais atos, que são:

a) a paciência, para resistir ao mal;

b) a coragem, para atacar em busca do bem árduo.

Paciência vem de patere, padecer. É a ciência ou capacidade de padecer, sem reclamar ou se revoltar. Sinal de fraqueza diante das dificuldades da vida, que são o pão nosso de cada dia, é a reclamação. O “reclamão” é uma pessoa “chata”, que vê a vida sempre pelo prisma pessimista, de que as coisas não estão boas, porque não estão totalmente ao seu gosto. O impaciente é aquele que não agüenta esperar: quer que tudo e todos estejam ao seu dispor na hora em que precisar. E o mundo não se curva aos seus caprichos.

O impaciente deixa-se abater pelo desânimo diante das dificuldades e demora para atingir as metas que se havia proposto. É o perigo da tristeza, de que nos fala S. Tomás de Aquino: Paciente não é quem não foge do mal, mas quem não se deixa arrastar por ele para uma tristeza desordenada (Suma Teológica, II-II, q.136, art. 4, ad 2).

Há uma tristeza boa, do descontentamento consigo mesmo, que leva a querer melhorar, lutando contra os próprios defeitos. É própria do atleta, que não se contenta com as marcas atingidas, mas treina e se esforça por se superar. Que tira da derrota impulso para chegar logo à vitória.

No filme O Mestre dos Mares (2003), baseado nos livros de Patrick O’Brian e estrelado por Russel Crowe como o Capitão Jack Aubrey, o primeiro embate entre o HMS Surprise e o Acheron, que ele perseguia, quase acaba com o primeiro, que era menor, mas consegue fugir aproveitando a neblina. Mesmo sabendo da disparidade entre as naus, o Comandante Aubrey decide perseguir o Acheron (que era a ordem dada pelo Almirantado Britânico aos navios ingleses que se encontrassem no Atlântico Sul). Mas para poder enfrentá-lo, treina seus artilheiros em rapidez e eficiência, para que consigam dar 3 salvas de canhões enquanto o inimigo dá 2. Sua paciência no treinamento e na perseguição à nau francesa (a estória se passa no período das guerras napoleônicas), aliada à coragem (não sem estratagemas) de atacar o inimigo leva à vitória britânica, da tristeza com as perdas iniciais (um dos jovens grumetes havia perdido o braço no primeiro encontro das naus, mas não se desanima, pensando no grande Almirante Nelson, que perdera o braço direito em combate) à alegria da captura final do Acheron.

A tristeza má é, no entanto, a que acabrunha e faz desistir dos objetivos vitais. É a tristeza daquele que não consegue (porque não se propõe) dominar seus nervos e medos. Esquece as palavras do Evangelho: In patientia vestra possidebitis animas vestras (Lc 21, 19).

Se a paciência está ligada a uma paixão – a tristeza –, a coragem supõe outra – a ira boa –, que se indigna contra o mal e busca vencê-lo. Para isso, conta com outra virtude conexa – a perseverança –, que supõe continuar a lutar, sem desistir do bem árduo, quando a luta se prolonga no tempo e os resultados demoram a sair.

7) Exemplo de Coragem, Paciência e Fortaleza

Um dos épicos mais famosos de Hollywood foi El Cid (1961), que conta a vida e lutas do herói da reconquista ibérica D. Rodrigo Diaz de Bivar (1043-1099), representado por Charlton Heston, e do amor a sua pátria e a sua dama, D. Ximena, representada por Sofia Loren.

Recentemente revi esse clássico do cinema, cumprindo um desejo que tinha da última vez que o vira: anotar as frases lapidares de seus principais personagens, que servem de estímulo na luta por grandes ideais (descontando-se, naturalmente, o tom dramático e grandiloqüente de algumas delas). Não resisto à tentação de reproduzi-las neste artigo, a par de recomendar vivamente que o filme seja assistido. Para não ser completamente o chato estraga prazeres, que conta o final do filme, alerto desde já que o farei, mas recomendando aos que se animarem a ver o filme, que passem diretamente desta parte à seguinte do artigo, pois o filme falará melhor que estas linhas. Aos que já viram o épico ou, como um amigo meu hoje gaúcho, gostam de conhecer antes o final de um romance, para o lerem com menos sofreguidão, o resumo que faço servirá para recordar e despertar a vontade de ver de novo. Seguem, pois, alguns ditos e diálogos memoráveis, que mostram a fibra moral dos personagens (as glosas vão em parênteses):

a) O próprio nome do filme é a resposta de um príncipe árabe, libertado da forca por D. Rodrigo, diante da simples palavra de que não atacaria mais os cristãos:

Na minha terra, ao guerreiro que sabe ser justo e ter a coragem de ser misericordioso damos o nome de “El Cid”.

b) Quando o Cid havia enfrentado pela primeira vez os mouros, não foi sem se desviar de seu caminho, resgatando um sacerdote que lhe diz, profeticamente: O senhor pegou um atalho não para chegar até sua noiva, mas até seu destino (sentido mais amplo e profundo, que retrata a missão que cada homem tem na vida, a ser enfrentada com a fortaleza).

c) A própria noiva de D. Rodrigo, D. Ximena, havia deplorado o desvio que o levara à guerra, dizendo: Não entendes o tempo do amor (claro que o entendia, mas não podia fugir do dever de lutar, para depois poder gozar do bem pelo qual lutava, com a paz da Espanha).

d) Quando D. Rodrigo mata, numa luta, o pai de D. Ximena, que insultara seu pai, esta busca alguém que a vingue. Segue-se o diálogo:

– Um homem pode viver sem a sua honra?

– Compraste a tua honra com a minha dor.

– O homem que amas não poderia fazer outra coisa.

– Achas que a mulher que amas faria menos que tu? (medo da desonra, que não é covardia, mas nobreza de caráter).

e) Tendo que lutar contra o campeão do Rei de Aragão pela cidade de Calahorra, que era mais forte e mais experiente, a par de ter sobre si o sangue do pai de D. Ximena, fala ao Rei de Castela: Se for culpado, Deus colocará sua lança no meu coração; se for inocente, será o meu escudo (coragem que vem da confiança em Deus e na Sua Justiça).

f) Diante da traição de D. Ordonhez, desmascarada, D. Rodrigo contesta a reação primária do Rei D. Sancho, de mandar matar o traidor: Qualquer um pode matar; só um rei pode dar a vida! (perdão, que não é fraqueza, mas grandeza de alma).

g) D. Sancho é morto por uma traição de seus irmãos D. Alfonso e D. Urraca. D. Rodrigo exige do novo rei que jure sobre a Bíblia não ter participado da conspiração. D. Alfonso jura, mas expulsa D. Rodrigo do Reino. Este, ao cavalgar sozinho e sem bens no exílio, encontra e socorre a um leproso no caminho, que o agradece:

– Obrigado, meu Cid.

– Como me conheces?

– Só há um homem em toda a Espanha capaz de humilhar a um rei e depois dar de beber a um leproso em seu cantil (conjugação da coragem com a compaixão).

h) Ao se ver finalmente sozinho e reconciliado com D. Ximena, que antes lhe havia negado o seu amor (– Podes ter o meu corpo, mas não terás o meu coração. – Se não tiver este, não quero aquele), exclama, valorizando esse bem mais que os outros: Se soubesse que o exílio é isso, todos quereriam ser exilados.

i) 300 cavaleiros castelhanos procuram El Cid no exílio e o elegem seu chefe, ao que protesta D. Ximena, pedindo que não parta novamente em guerras contra os mouros: Direi a Deus o quanto preciso de você. Ao que D. Rodrigo responde: E teríamos um esconderijo onde pudéssemos nos esconder de nós mesmos? (coragem de assumir a própria missão, sacrificando os gostos pessoais).

j) Durante a invasão árabe, o novo rei D. Alfonso é batido em Sarajas e se apresenta no convento onde estava refugiada D. Ximena (após a partida de D. Rodrigo). Ao ver o teimoso rei em farrapos, exclama: É preciso mais do que coragem para fazer um rei (o ataque havia sido um ato de temeridade, pois faltara prudência ao rei).

k) El Cid acaba por tomar a cidade de Valência, mas quando seus homens o querem coroar rei, declina da glória e oferece a coroa a D. Alfonso. O Emir mouro que o acompanha (aquele que havia dado o nome de El Cid a D. Rodrigo), ao ver a grandeza de alma do seu líder, comparada à mesquinhez do rei, exclama: Que súdito nobre! Se tivesse um rei tão nobre…

l) D. Ximena chega a Valência, que é então cercada pelos mouros. Vendo a fibra do marido, que não se rende à superioridade do inimigo, pergunta-lhe:

– Onde achas a tua coragem?

– Gostaria de saber. Cada um tem de achá-la a cada vez (no fundo, descobrir o bem superior pelo qual vale a pena lutar).

m) Para libertar Valência, El Cid deve romper o cerco: Vamos à última batalha, que tanto esperamos, e depois virá a paz. No entanto, é justamente nessa última batalha que é ferido de morte, o que lhe coloca o dilema vital: permanecer no castelo, para se recuperar, o que trará a derrota final; ou sacrificar sua vida, saindo á frente de suas tropas, amarrado ao seu cavalo, o que infundiria medo nas hostes inimigas. Diante do pedido de D. Ximena para que fique, fala do amor que viveram e que deve agora ser sublimado: Não ficamos muito tempo juntos. No entanto, parece que os que passaram a vida juntos tiveram menos que nós. Não podes salvar minha vida, mas podes ajudar-me a renunciar a ela (entrega da vida pelos outros, que é o ato maior de bravura).

n) Na noite em que El Cid agoniza no seu leito de morte, o rei D. Alfonso, que tanto o havia perseguido, vem em seu socorro, e entra nos castelo pelo lado ainda não cercado. Reconhece a injustiça com que trato D. Rodrigo e lhe pede perdão, ao que El Cid responde: Não é fácil vencer a si mesmo. Vossa Majestade o conseguiu. Não fracassei. A Espanha agora tem um rei. Virando-se, então, para D. Ximena, faz-lhe o pedido derradeiro, para que o coloque no dia seguinte no cavalo: Quero que você e minhas filhas (as gêmeas Soledad e Elvira) se lembrem de mim cavalgando junto do meu rei .

o) Assim termina o filme, com El Cid cavalgando nas praias de Valência, diante dos mouros fugindo das tropas cristãs: Então El Cid saiu da História para entrar para a Lenda. E o bispo da cidade rezando: Pai Celestial, recebe a alma daquele que viveu e morreu como um puro cavaleiro.

Penso que na vida de qualquer homem ou mulher, mais cedo ou mais tarde, se colocam dilemas existenciais que só se resolvem com a perda do medo ao sacrifício, abrindo-se mão do mais fácil e prazenteiro em função do mais nobre e elevado, que pode trazer a felicidade para si e para os outros.

8) Conclusão: a Fortaleza no trabalho e no dia-a-dia

A fortaleza não é só para os heróis de guerra e forjadores de grandes empreendimentos. É virtude fundamental para ser vivida no trabalho e no dia-a-dia do homem comum, pois consiste no perseverar no cumprimento do dever, resistindo às contrariedades e dificuldades (cfr. Rafael Llano Cifuentes, “Fortaleza”, Quadrante – 1991 – São Paulo). É a valentia e a coragem de não fugir dos problemas, mas enfrentá-los com serenidade e paciência.

Fortaleza para não desanimar diante dos próprios erros e saber exigir, sem temor a contristar. É ser tenaz nos propósitos, não abandonando as metas, até atingi-las.

Impressionam, nesse sentido, duas histórias de fracassos, mas que demonstram a fortaleza de ânimo diante das dificuldades, muitas vezes acima dos limites humanos, e que são um exemplo do que ocorre no trabalho.

Uma é a da tragédia do Everest, de 11 de maio de 1996, no qual morreram os experientes alpinistas Bob Hall e Scott Fischer, descrita por Jon Krakauer (“No Ar Rarefeito”, Companhia das Letras – 1998 – São Paulo), um dos sobreviventes da expedição em que pereceram mais 7 pessoas, mas da qual escapou miraculosamente o Dr. Seaborn Beck Weathers, depois de passar uma noite com a cara na neve, numa tempestade, vindo a perder as mãos e o nariz. Mesmo após o desastre, a equipe da IMAX, que estava fazendo um filme sobre o Everest, decidiu empreender a escalada, chegando ao topo no dia 22 de maio, liderados por Ed Viesturs (que escalou sem oxigênio), Araceli Segarra (jovem catalã de 27 anos) e Jamling Norgay (filho de um dos dois primeiros homens a subir no Everest), num exemplo de tenacidade.

O comentário de todos os alpinistas a respeito da escalada é a de que o esforço é tão grande, que, no final, o corpo vai seguindo em frente por pura força de vontade, pois cada passo é um sacrifício sobre-humano. Assim também no trabalho, há momentos em que a carga que pesa sobre os nossos ombros, quer de responsabilidades, quer de tarefas a realizar, é tão grande, que nos sentimos esmagados por tanto peso. Nesse momento, como os alpinistas do Everest, devemos pensar apenas num passo depois do outro, não desistindo de lutar, pois é justamente através do pequeno esforço de cada momento que alcançamos as grandes metas da nossa vida.

A outra é da lendária expedição de Sir Ernest Schackleton à Antártida (ver Caroline Alexander, “Endurance”, Companhia das Letras – 1999 – São Paulo), em que o seu navio, o Endurance, acabou preso nos blocos de gelo, vindo a afundar, fazendo de sua luta pela sobrevivência um exemplo de fortaleza e tenacidade, pois com sua liderança, conseguiu salvar todos os membros da tripulação, depois de 1 ano e meio de luta nos mares do Pólo Sul (entre 5 de dezembro de 1914 a 20 de maio de 1916).

O que impressiona nesse relato é também a força de vontade de Schackleton, para manter o ânimo elevado, a disciplina e a atividade de homens que enfrentavam temperaturas de 40 graus negativos, sofrendo todas as privações possíveis, sem desistir da luta por salvá-los todos. Foi um exemplo de liderança e coragem.

Mas a verdadeira fortaleza não está nos feitos heróicos ou na força bruta e, sim, na força de vontade, que esses exploradores demonstraram diante das dificuldades. Diz a Escritura: “O paciente vale mais que o herói, e o que domina o seu ânimo mais do que o conquistador de cidades” (Provérbios, 16, 32).

Ou seja, no fundo, a maior vitória que podemos ter não é contra as forças e inimigos exteriores, mas em dominar a nós mesmos. A fortaleza é virtude do auto-domínio diante das dificuldades que a vida traz consigo, pois dominar as dificuldades e contrariedades está além das nossas forças.

A paciência em perseverar no esforço começado merece mais louvores do que as façanhas aparatosas, mas ocasionais. Por isso, a Bíblia também traz outro conselho de especial importância para a valorização de qualquer trabalho: “Aprende o teu ofício e envelhece nele” (Eclesiástico 11, 21). Há pessoas que não resistem à rotina e sucumbem diante do esforço repetitivo. No entanto, é ele que forja a personalidade e reveste o homem das virtudes necessárias para desempenhar cada vez melhor a sua profissão e o seu papel na família.

E então? Será que não vale a pena o esforço por adquirir as virtudes da fortaleza, paciência, coragem e perseverança? Não serão o segredo para superarmos receios e temores, medos e angústias?

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