Eu já disse isso por aqui algumas vezes, mas sempre é bom repetir: do ponto de vista científico, Tolkien estava longe de ser um alienado. As pistas espalhadas pela obra ficcional, acadêmica e epistolária (jeito afrescalhado de dizer “cartas”) do Professor deixam mais ou menos claro que ele era um leigo bastante bem informado a respeito do que se passava no meio científico — especialmente a biologia e a física — de seu tempo. Alguns desses pedacinhos de informação sugerem que ele tinha um interesse particular pela paleontologia, a área que estuda organismos extintos de todos os tipos e calibres. O que nos leva à pergunta inevitável: eram as montarias aladas dos Nazgûl meros pterossauros repaginados?
A ideia não tem nada de absurda, na verdade. Para ser mais preciso, Tolkien respondeu exatamente essa pergunta, oriunda de um leitor e documentada no seu volume de cartas. (Hoje disponível em português graças à labuta de um dos membros da Equipe Valinor, Gabriel Oliva Brum, e ao apoio da Editora Arte & Letra. Fim do momento jabá.)
O leitor (na verdade uma leitora, Rhona Beare) se refere a “pterodáctilos”, nome às vezes empregado para designar todos os répteis alados do grupo dos pterossauros, embora seu uso mais preciso sirva para apenas um determinado subgrupo desses bichos. Na carta em questão, Tolkien afirma:
“Pterodáctilo. Sim e não. Eu não pretendia que a montaria do Rei Bruxo fosse o que hoje se chama um ‘pterodáctilo’ e muitas vezes aparece em desenhos (seguindo evidências bem menos frágeis do que as encontradas para muitos monstros da nova e fascinante mitologia semicientífica do ‘Mundo Pré-histórico’). Mas obviamente ele é pterodactílico e deve muito a essa nova mitologia, e sua descrição até inclui uma maneira pela qual ele poderia ser um último sobrevivente de eras geológicas mais antigas.”
A descrição, caso você não esteja lembrado, está em “O Retorno do Rei” e se refere justamente ao fato de Sauron ter “resgatado” os últimos exemplares do bicho feioso da extinção. (Só assim mesmo para o Senhor do Escuro bancar o Greenpeace.) Pra ideia funcionar, isso significa que Sauron teria de ter pegado os bichinhos há uns 65 milhões de anos, data em que os últimos pterossauros sumiram junto com os bons e velhos dinos. (Detalhe: pterossauros NÃO SÃO dinossauros, embora os grupos sejam aparentados.) Bom, mas isso é baba para alguém que anda por aí pagando pau pra Morgoth desde a criação de Arda, certo?
Pensando bem, isso nem seria necessário estritamente, uma vez que as montarias dos Espectros do Anel são descritas como AVES. Mas as aparências enganam. O pessoal de Gondor ou do Condado tinham seu vocabulário restrito a morcegos e aves quando pensavam em vertebrados voadores. Ademais, muitos pterossauros desenvolveram bicos sem dentes, iguaizinhos aos das aves. A confusão, na cabeça de um hobbit ou de um escriba de Gondor, seria natural.
Probleminhas biomecânicos
Resolvido o problema da inspiração, resta o da biomecânica. Qual a chance de vertebrados alados chegarem ao tamanho e à força necessários para carregar nas costas um troglodita musculoso feito o Rei Bruxo ou os demais Nazgûl?
Mesmo quando a gente leva em conta as heroicas águias de Manwë, como Thorondor e Gwaihir, e não as escrotas montarias dos Espectros, a resposta pode ser um belo “sim”. Alguns milhões de anos atrás, a América do Sul era habitada por condores de pelo menos 8 m de envergadura, do tamanho certinho, portanto, para dar carona a hobbits, anões e magos em perigo.
No caso dos pterossauros, a coisa é ainda mais exuberante. Certos membros do grupo – justamente os de crânio mais parecido com o de aves – chegavam a 12 m de envergadura, senão mais. Os trabalhos mais recentes sugerem que esses bichões eram predadores de vertebrados terrestres, capturando dinossauros juvenis com relativa facilidade – e certamente humanos, se estes já estivessem por perto.
Mas há um porém. Existe uma relação direta entre envergadura das asas, massa (em linguagem comum, peso) e capacidade de um bicho alado para decolar. A questão é que, apenas batendo as asonas, esses bichos jamais seriam capazes de sair do chão. Para aumentar as chances de decolagem, é preciso usar três expedientes: correr até alcançar uns 40 km/h, contar com a ajuda do vento, abrindo as asas contra ele, saltar de precipícios altos para captar correntes de ar ou combinar essas táticas de alguma forma.
É por isso que as maiores aves voadoras de hoje (porque, afinal, há as não-voadoras, como as emas e avestruzes) invariavelmente vivem em regiões montanhosas ou em penhascos de ilhas oceânicas, de forma a aproveitar a natureza das massas de ar nessas áreas. Não é à toa, portanto, que o Senhor do Escuro escolheu o aprazível terreno de Mordor para sua morada. Afinal, as montanhas que cercam a região são “plataformas de decolagem” ideais para seus passarinhos prediletos.
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E no próximo Ciência da Terra-média: os mistérios da visão élfica!