Ícone do site Valinor

A Temperança: Como Chegar ao Equilí­brio Interior

I) Introdução

Ao procurar mostrar o espírito das leis, no que inspiraria futuramente Montesquieu, Platão, em sua obra sobre As Leis, coloca no Estado Espartano o mais próximo do ideal de Estado, pela sua preocupação educacional. Porém, critica-o, pela forma da educação ministrada, num diálogo entre um espartano e um cretense, contestados por um ateniense, que estava de passagem por Creta. O contexto é a fundação próxima de  uma colônia cretense, perguntando-se quais as melhores leis para regê-la.

A base das respostas é a poesia de Tirteu, que coloca como dever supremo do cidadão a defesa da pátria, para o que é preciso buscar a virtude e perfeição pessoal. Para Tirteu (espartano), a essência da vida seria a luta, o sentido da existência a vitória e a única virtude a coragem. Já para Teógnis (ateniense), toda a areté (virtude) se resumiria na justiça. A passagem do Estado beligerante (espartano) para o Estado jurídico (ateniense) faria integrar a fortaleza com as demais virtudes (prudência, justiça e temperança).

Com efeito, Platão observa em seu diálogo que os espartanos valorizavam tanto a fortaleza (luta contra a tentação do medo e da fuga da dor), que descuidaram da temperança (luta contra as tentações do prazer desregrado), vindo a cair na pederastia e licenciosidade (Leis n. 633-637).

É interessante notar que Platão, em contraposição à disciplina espartana, louva paradoxalmente, como caminho para a temperança e para o verdadeiro equilíbrio da alma e do corpo, a educação ateniense através dos banquetes (simposium), que treinariam o homem no domínio de si, evitando a embriaguez (temperança), mais do que no domínio dos outros (violência), que era a preocupação espartana (cfr. Werner Jaeger, Paidéia, Martins Fontes – 2003 – São Paulo, pgs. 1293-1374).

Mas em que consiste essa qualidade humana da temperança, tão louvada por Platão, como o segredo do equilibrio e da paz interior?

II) O Equilíbrio Interior

Quando se define o homem como animal racional, não quer isso dizer que o ser humano seja uma razão que governa um corpo animal. Na querela medieval sobre a unidade da forma substancial, defendida por S. Tomás de Aquino, seus contestadores defendiam que o homem era composto de 3 almas: alma vegetativa (comum às plantas), alma sensitiva (comum aos animais) e alma racional (própria somente dos homens). O Aquinate sustentava, em sentido contrário, que a única alma humana, como forma substancial do homem, englobava as três funções: é o homem inteiro que respira, sente e pensa.

Assim, o racional e o animal, no homem, estão de tal forma entrelaçados, que não se pode falar de vida propriamente humana sem um dos componentes. Daí que o equilíbrio interior suponha um agir em que a inteligência (que conhece as coisas), a vontade (que se dirige racionalmente a elas) e as paixões (sentimentos de atração ou repulsa, que compõem o campo da afetividade, tradicionalmente elencados como amor, ódio, esperança, desespero, alegria, tristeza, desejo, fuga, medo, audácia e cólera) atuem de forma harmônica.

“Las pasiones poseen uma influencia enteramente positiva sobre el actuar moral, más aún: son imprescindibles para el actuar virtuoso. Cuando se las integra en el orden de la razón les corresponde una función simultáneamente cognitiva y conativa. Pero esto significa también: como tales, separadas de la razón, por así decir independizadas y en su propio orden, interfieren con la racionalidad y pueden ejercer sobre la voluntad – que es una tendencia guiada por la razón y cuyos actos, por su propia naturaleza, consisten en la inclinación a lo bueno para el hombre – una influencia perturbadora. Y esto lo sabe todo el mundo por propia experiencia” (Martin Rhonheimer, “La Perspectiva de la Moral – Fundamentos de la Ética Filosófica”, Rialp – 2000 – Madrid, p. 179).

O homem equilibrado é aquele em que inteligência, vontade e paixões não seguem em sentidos opostos, desgarrando a alma e o corpo, mas confluem para um agir racional, impulsionado por uma vontade forte e uma afetividade estimulante e bem ordenada.

1) Exemplos atrativos desse equilíbrio interior na Saga dos Anéis de J.R.R. Tolkien são:

a) Aragorn, que sabe se ocultar e passar despercebido durante tantos anos, até encontrar os meios para recuperar a coroa que lhe pertencia por direito hereditário e usá-los de forma equilibrada, a par de vencer a tentação de sucumbir aos atrativos da princesa Éowyn, lembrando do compromisso que havia contraído com a princesa Arwen;

b) Gandalf, paradigma de sabedoria, prudência, humildade e fortaleza na condução da estratégia para vencer o Senhor das Trevas, confiando nos mais singelos habitantes da Terra-Média – os hobbits – e desconfiando de sua capacidade de auto-domínio, se possuísse o Um Anel.

2) Exemplos de domínio das paixões sobre a racionalidade são claramente, no “Senhor dos Anéis”:

a) Saruman, cuja cobiça pelo Um Anel fê-lo perder a sabedoria acumulada, transformando-se, nas suas próprias palavras, de Saruman, o Branco em Saruman, das Muitas Cores, ou seja, um verdadeiro camaleão de artimanhas e subterfúgios;

b) Sauron, obnubilado de tal forma pela sede de destruição dos seus opositores, que não deu importância aos pequenos hobbits, desprezando seu valor e sendo justamente por eles derrotado;

c) Denethor, tomado de desespero pela perspectiva de derrota de Minas Tirith, prefere imolar-se a si e ao filho ferido do que aceitar um novo rei, do qual voltaria a ser o mordomo (equivalente ao primeiro-ministro);

d) Boromir, não se contendo no desejo de se apossar do anel, tenta obtê-lo à força, dos hobbits, vindo a sucumbir na luta que se trava com a decomposição da Companhia do Anel.

3) Exemplos marcantes de transformação e recuperação do equilíbrio interior são:

a) Théoden, rei de Rohan, dominado pelo desânimo e por seu mau conselheiro Língua-de-Verme, ressurge com o estímulo de Aragorn e Gandalf, recobrando o desejo de combater as forças de Mordor que ameaçavam engolfar toda a Terra-Média, tendo uma morte digna e heróica em combate na Batalha de Pélennor;

b) Éowyn, que, em seu desespero por ver repelido seu amor a Aragorn, foge disfarçada de cavaleiro para a guerra em Minas Tirith, desejando a morte em combate, mas, após vencer o Nâzgul e ser ferida por este, encontra nas casas de saúde o equilíbrio interior e o amor do príncipe Faramir.

O equilíbrio interior não significa um malabarismo entre forças contrárias. Nem, por outro lado, quando Aristóteles propugnava o “in medio virtus”, pensava em mediania. Com efeito, como destaca Martin Rhonheimer:

“Que a virtude moral consiste en un término médio es, probablemente, una de las tesis de Aristóteles que con más frecuencia se entiende mal. Ese posible malentendido consiste en ver la virtud como mediocridad o mero equilibrio, como la actitud propia de quien no es un exagerado. Pero no es esto lo que piensa Aristóteles: para él, el término medio en el que consiste la virtud moral no es otra cosa, al cabo, que lo conforme con la razón, y, por tanto lo correcto, lo oportuno o conveniente y lo bueno en tanto que lo bello. Como tal, el término medio es en cada caso lo mejor (ariston) y un extremo (akrotés)” (op. cit., pgs. 210-211).

Ou seja, a virtude, e especialmente a da temperança, não é mediocridade ou não ser exagerado, mas viver em harmonia entre razão e sensibilidade.

II) A Virtude da Temperança

A virtude da temperança (sophrosyne em grego e temperantia em latim) é a virtude que tem por fim a quietude do ânimo (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 141, art. 2, obj 2), fruto da ordem e equilíbrio interior. Diferentemente das demais virtudes cardeais, que se dirigem aos outros, a temperança diz respeito apenas ao próprio agente: que suas forças e instintos, ordenadamente utilizados, propiciem a autoconservação e não levem, pela desordem e busca de bens inadequados, à autodestruição.

A temperança disciplina e corrige todas as perversões egoístas da ordem interior, sobre a qual a pessoa moral se fundamenta e vive agindo (Josef Pieper, Virtudes Fundamentais, Editorial Aster – 1960 – Lisboa, pg. 219).

A inclinação natural para o gozo sensível, especialmente nos prazeres da mesa e da cama, ligados aos fins naturais da autoconservação pessoal e coletiva, quando desgovernado, tem o poder de conduzir o homem à autodestruição. Assim, os vícios da gula, luxúria, soberba, ira e até da curiositas são ameaça constante ao equilíbrio do homem, e as virtudes da sobriedade, castidade, humildade, mansidão e studiositas o seu remédio. Na verdade, mais do que isso, pois conformam o homem íntegro e bem constituído.

Aristóteles trata da temperança no final do Livro III da Ética a Nicômaco, nos pontos 10 a 12, que podem ser assim resumidos:

10) A virtude da temperança é a da moderação em relação aos prazeres corporais, mais especificamente do tato e do gosto, uma vez que não se fala em moderação em relação aos prazeres espirituais, nem quanto aos sentidos da vista, ouvido e olfato (prazeres animalescos, pois comuns a homens e animais, já que, em relação aos demais sentidos, não se pode falar propriamente  em prazer sentido pelos animais: vista, cheiro e audição apenas despertam para o prazer que poderão ter com a comida e a satisfação do instinto sexual). Moderação como meio-termo entre o desregramento (excesso) e a insensibilidade (defeito). No fundo, a temperança estaria ligada à moderação nos prazeres do tato e em relação apenas a certas partes do corpo: a boca e os órgãos genitais.

11) A intemperança na comida e bebida é mais por quantidade excessiva do que por qualidade (alguns são imoderados em relação apenas a determinados alimentos), e é viciosa por afetar a saúde e boa forma corporal. A intemperança por  insensibilidade é rara, por não corresponder ao homem bem constituído. A intemperança nas relações sexuais se dá não tanto pela quantidade, mas especialmente pelas circunstâncias de pessoa (com quem) e modo (anti-naturais).

12) A intemperança é mais voluntária que a covardia (o objeto do desejo é buscado, enquanto o do medo se repele instintivamente), razão pela qual é um vício mais vil (e também mais  fácil de ser combatido). Assim, o homem moderado é aquele que deseja a coisa certa, da maneira certa e no momento certo, que é o ordenado pela razão (cfr. EDIPRO – 2002 – São Paulo, pgs. 104-109).

Como se vê, Aristóteles restringe bastante o campo da temperança, deixando de tratar das faltas de moderação quanto aos vícios interiores, ficando apenas nos vícios corporais.

IV) Luxúria e Castidade

Em relação a estes, especialmente o da luxúria, a visão moderna distorceu o foco: ou vê em tudo o que está ligado ao sexo algo impuro (pieguismo de corte maniqueísta, contrapondo a bondade do espírito à maldade da matéria e do corpo), ou não vê nada de mal nas piores aberrações, como se fossem tendências naturais do homem (hedonismo).

S. Tomás de Aquino, na linha de Aristóteles, vê no sexo um bem, a semente divina, participação no poder criador de Deus, desde que se guarde a ordem e medida convenientes (cfr. Summa Theologiae, II-II, q. 153, art. 2). É o meio-termo aristotélico, que caracteriza toda virtude: o justo ponto de equilíbrio entre o excesso e o defeito.

Mais ainda: contra alguns escritores eclesiásticos do começo do Cristianismo, que sustentavam que a multiplicação da espécie humana ter-se-ia feito de outra forma antes do pecado original, S. Tomás de Aquino defendeu que, pelo contrário, antes da queda original, no paraíso terreno, o prazer sexual seria inclusive mais forte, por ser mais refinada a natureza humana não corrompida e a sensibilidade do corpo maior (cfr. Summa Theologiae, I, q. 98, art. 2, ad 3).

Contra o pieguismo que sustentava que, pela forte carga de prazer do ato sexual, não poderia se dar sem pecado, já que a razão ficaria subjugada  pelo instinto, S. Tomás de Aquino aduzia que, sendo corretamente usado, dentro da ordem da razão, o sexo é moralmente bom, pois do contrário até o sono seria mau, já que não está controlado imediatamente por um ato racional voluntário  (cfr. Summa Theologiae, II-II, q. 153, art. 2, ad 2).

S. Tomás de Aquino mostra como todas as faltas contra a castidade são também faltas contra a justiça: o adultério, porque lesa o direito do outro cônjuge; o estupro, porque lesa a liberdade pessoal; a fornicação, porque lesa o bem da prole, que ficará sem a assistência do pai (cfr. Summa Theologiae, II-II, q. 154, art. 2). E poderíamos acrescentar: a masturbação, porque atenta contra a própria estrutura da pessoa, fechando-a no egoísmo do auto-prazer estéril; a greve de sexo, porque expõe o outro cônjuge à tentação de buscar fora do casamento o que legitimamente não recebe nele; o homosexualismo, porque atenta contra a natureza das coisas.

O que dissemos acima certamente chocará num ambiente que cultua o politicamente correto, mas se o politicamente correto é permitir que se defendam as maiores extravagâncias em nome da liberdade de expressão, porque não se poderá então cometer a extravagância maior, nos dias que correm, de defender o equilíbrio e os valores tradicionais?

No dizer de Josef Pieper, o egoísmo é o nervo e o coração da luxúria como intemperança (op. cit. pg. 232), pois o sensual só tem olhos para o seu prazer.

Aqui é preciso distinguir a lúxuria (vício) e a castidade (virtude) como (in)temperança e como (in)continência. A incontinência é fraqueza, já a intemperança no sexo é malícia. A primeira supõe a falta de controle; a segunda a busca planejada. Pelo lado da virtude, a continência é uma mero aguentar, enquanto a temperança é a pacificação dos sentidos, ordenados pela razão.

Os legalistas intentam, no campo da moral, estabelecer listas detalhadas e abrangentes do que se pode ou não fazer. A Ética Clássica, por contraste, reconhece as peculiaridades de cada indivíduo e não se apega a casuísticas, mas a princípios que apontam para o cume das virtudes, sem se perder em descrever o fosso dos vícios.

Esse cume não é inatingível e proporciona uma visão límpida e integral da realidade humana, capaz de satisfazer em sua plenitude e simplicidade o instinto de felicidade que existe no homem: Só quem olha o mundo com olhos limpos é que consegue reconhecer a sua beleza; só quem tem um coração puro é que poderá rir livremente (Josef Pieper, op.cit. pg. 239). O homem animal não consegue captar e compreender o mundo do espírito e nem sequer saborear o mundo e a beleza sensível em sua integralidade.

Com efeito, o homem animalizado pela intemperança se deixa dominar pelos instintos comuns ao animal. Para um leão, a vista, o olfato e a audição só servem para destacar a presença do objeto de seus desejos: a gazela e a leoa, o gosto e o tato. Os ”pensamentos” mais elevados de um macaco são no que poderá ”comer”, literal ou figurativamente: a banana e a macaca.

O homem animal perdeu a capacidade de contemplar a beleza de uma paisagem, de uma pintura, de uma sinfonia e até de um rosto ou corpo humano, pois só pensa em consumir e o que é mais rés do chão.

Há alguns anos o objeto de ataque de pais e educadores era a televisão, cuja programação cada vez mais deletérea constitui elemento mais deformativo do que construtivo de uma personalidade equilibrada. Hoje a internet, que dá acesso às mais depravadas manifestações de animalidade, faz da TV uma bomba convencional, perto do poder destruidor e corruptor da Web, de dimensão atômica.

Exercer a liberdade, quando se vicia em sexo internáutico, novelesco, solitário ou motelesco, passa a ser luta de Titãs: só a muito custo se sai do atoleiro. E mais cedo ou mais tarde, tanto homens e mulheres que nele mergulharam, sentem o desejo, mas carecem de força, para sair do lamaçal.

Dizia S. Josemaría Escrivá que a gula é a vanguarda da impureza (Caminho, n. 126) e que o pudor e a modéstia são os irmãos menores da pureza (op. cit. n. 128).

Com efeito, o caminho que conduz aos piores atentados contra o próprio corpo e à vida alheia começa pelas pequenas intemperanças: a falta de controle no garfo faz desejar, depois, prazeres mais fortes; o dar de galinho(a), pavoneando-se de dotes intelectuais ou corporais, só serve para expor aos ataques dos(as) gaviões(ãs); descontrolado o apetite sexual, que busca sua satisfação hic et nunc, a defesa e a prática do aborto passam a ser o derradeiro recurso para desvencilhar-se do fruto natural da união sexual, quando camisinha, pílula ou DIU falharam ou não se usaram.

Não é difícil chegar à conclusão, no que diz respeito à temperança, que o prazer é meio, colocado na natureza animal e humana, para a consecução de fins existenciais, e que o ponto de equilíbrio está em não desvincular meios de fins.

Assim, o natural é comer para se alimentar, ou seja, para o sustento corporal e a auto-conservação. A gula é o excesso no comer e no beber, quando a alimentação já não é mais necessária: embota a alma, engorda o corpo, conduz à preguiça e à luxúria.

Já a castidade, virtude a ser vivida não só por solteiros, mas também por casados, é aquela que coloca o sexo no seu lugar: dentro do matrimônio e aberto aos filhos.

Com efeito, quem não desenvolve o auto-domínio próprio da temperança antes do casamento, dificilmente o terá depois, para viver a fidelidade matrimonial. Quantos casamentos desfeitos, famílias separadas, órfãos de pais vivos não são fruto da falta de luta pela aquisição da virtude na adolescência?

Todos sabemos por experiência que podemos ser castos, vivendo vigilantes, frequentando os Sacramentos e apagando as primeiras chispas da paixão, sem deixar que ganhe corpo a fogueira. É  precisamente entre os castos que se contam os homens mais íntegros, sob todos os aspectos. E entre os luxuriosos predominam os tímidos, os egoístas, os falsos e os cruéis, que são tipos de pouca virilidade (S. Josemaría Escrivá, Caminho, n. 124).

Chama a atenção, ao ler as obras de J.R.R.Tolkien, quer seja O Senhor dos Anéis, quer seja O Silmarillion, O Hobbit ou outra delas, que o tema do sexo não encontre guarida. Os livros narram feitos heróicos, grandezas e misérias dos personagens, mas neles não se vê desvios morais nesse campo. Fala-se de amor, mas não como sinônimo de sexo (conceitos sinonimizados pela cultura moderna) e sim como sentimento que abrange a pessoa por inteiro, alma e corpo. Daí a capacidade de contemplar a beleza na suas múltiplas manifestações.

Um tema que tem se destacado ultimamente entre os problemas enfrentados no ambiente profissional, e que tem sido objeto de disciplinamento legal é o do assédio sexual. É o problema de não se viver no trabalho a virtude da pureza ou castidade.

“A castidade significa a integração correta da sexualidade na pessoa e com isso a unidade interior do homem em seu ser corporal e espiritual. A sexualidade, na qual se exprime a pertença do homem ao mundo corporal e biológico, torna-se pessoal e verdadeiramente humana quando é integrada na relação de pessoa a pessoa, na doação mútua integral e temporalmente ilimitada, do homem e da mulher” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2337).

Quando se concebe o sexo desvinculado de sua finalidade natural, de união amorosa permanente entre os cônjuges e de transmissão da vida, busca-se o prazer como fim e não como meio de se cumprir as naturais exigências da espécie. Daí que a corrupção seja o fruto amargo dessa busca desordenada do prazer.

Assim, o(a)s colegas ou subordinado(a)s, no trabalho, passam a não ser visto(a)s como pessoas, mas como corpos. De um lado, a covardia do homem que ocupa um cargo de chefia e se aproveita dele para satisfazer sua incontinência, causando traumas psicológicos muitas vezes irreparáveis. De outro, a ausência do exercício do pudor por parte da mulher, que expõe o homem a um estímulo e excitação contínuos à atividade sexual: é a saia curta demais, é o decote cavado, é a ausência de indumentária que se tornam provocantes, com ou sem a intenção de sê-lo.

Para a mulher, uma boa forma de se garantir contra assédios no trabalho é cuidar do modo de vestir ao ir trabalhar. Elegante e bem vestida, sim; provocante e parcamente coberta é imprudência. Depois, não é de estranhar as conseqüências. É significativa a observação de duas senhoras, na fila de um banco, ao ver entrar uma moça quase despida: “E depois prendem o Mike Tyson!” (fazendo menção à condenação do conhecido pugilista, por atentado sexual em circunstâncias que muito atenuariam a pena, pela conduta leviana da própria “vítima”). Viver o pudor é manter essa tendência natural de defender o domínio sobre a própria intimidade, não a expondo desnecessariamente. Aliás, o pudor não diz respeito apenas ao corpo, mas também à alma, pois os sentimentos e recordações pessoais estão sujeitos a essa reserva de intimidade, que não se abre a qualquer um (Cfr. Ada Simoncini, “O Pudor”, Quadrante – 1991 – São Paulo.

V) A Sobriedade no Comer e no Beber

Aproveitando os exemplos da obra tolkieniana, o máximo de intemperança que se pode ver nos hobbits é a apreciação da boa mesa, mas bem ao estilo do banquete platônico: boa comida e cerveja, mas,  principalmente, boa conversa e amigos. Não há a malícia que se nota em livros e novelas modernas.

E porque isso? Porque a intemperança da cultura moderna está fazendo as pessoas ficarem no epidérmico e banalizarem o sublime: toma-se uma coca-cola e transa-se com a garota que se acabou de conhecer, como se tudo estivesse no mesmo nível.

Sociedade do superficial, das aparências, das sensações, que já não alcança a essência, a substância, a realidade das coisas. No fundo, sociedade do descartável. E quem gosta de ser descartado? Da sua casa, do seu emprego, dos seus projetos e sonhos? No entanto, o intemperante é o que descarta: a mulher por outra, os amigos que já não servem, os valores que não se viveram, os ideais que se trairam.

No campo da temperança, especialmente quanto à virtude conexa da sobriedade, que trata do meio-termo no campo do comer e beber, parece que os principais personagens de O Senhor dos Anéis de Tolkien não a vivem devidamente.

Os hobbits tem um apreço todo especial por uma boa refeição, mas, pela lepidez de seus movimentos, precisam mesmo de muita energia acumulada.

Voltando à análise aristotélica da virtude da temperança, notamos que o tato parece ser o sentido mais tosco do ser humano. No entanto, é o que caracteriza mais propriamente a sensibilidade. Com efeito, um homem pode sobreviver se é surdo ou cego, ainda que seu mundo interior passe a ser muito mais limitado. No entanto, se perde o tato, que é o sentido da dor, passa a estar indefeso frente àquilo que o pode destruir.

A dor, portanto, é um sinalizador. Ninguém se queixa de dor, no seu estrito senso, por não ver ou ouvir algo, mas sim quando o corpo sente o frio ou calor excessivo, substâncias alérgicas ou instrumentos cortantes, reações químicas derivadas do descontrole orgânico.

Ora, a dor tem o seu papel na educação do homem no campo das virtudes. A virtude da paciência é justamente aquela que nos ensina a saber padecer. O doente é chamado de paciente, tanto porque é o que padece, quanto porque se espera que enfrente sua enfermidade com fortaleza, já que a paciência é parte dessa virtude.

Para a saúde de corpo, os antigos prescreviam basicamente dietas alimentares, que supunham justamente a moderação no comer e beber. S. Tomás de Aquino, nesse diapasão, chega a afirmar que o jejum é imposto, muitas vezes, como preceito de lei natural (Summa Theologiae, II-II, q. 147, art. 3). Não tem, portanto, caráter exclusivamente penitencial, mas principalmente de resgate da alegria de ânimo, pela própria leveza de corpo e alma.

De fato, o excesso no comer e beber conduz ao embotamento da alma. A gravidade da intemperança nesse campo só se manifesta quando se ultrapassa o limite que faz perder o controle da razão e dos sentidos: o motorista que, alcoolizado, atropela um e agride outro, física ou verbalmente, pode não ter culpa imediata do que fez, mas tem culpa mediata, ao não ter se controlado na bebida.

VI) A Temperança no Trabalho

Viver a virtude da temperança no trabalho é não caip-num dos 2 extremos: a indolência ou o workaholics.

Dizia Mestre Sam Gangee (cf. O Senhor dos Anéis – Volume Único – 2001 – pg 377) que ”o trabalho que mais custa a terminar é aquele que nunca se começa”. Muita sabedoria nessas palavras.

O extremo oposto é a pessoa viciada no trabalho; polarizada no trabalho; a pessoa que vendeu a alma ao trabalho. A temperança é a virtude da moderação. O perigo do trabalho está em fascinar a pessoa a ponto de, pelo prestígio, poder ou saber que traz, levá-la a entregar-se de corpo e alma ao trabalho, esquecendo dos outros valores que lhe estão acima.

Viver a temperança no trabalho liga-se umbilicalmente a viver a ordem no trabalho, pautando-se por uma hierarquia de valores. Em primeiro lugar, Deus; em segundo lugar, a família; em terceiro lugar, o trabalho. Sacrificar a família pelo trabalho é investir num futuro infeliz: não há sucesso profissional que compense um fracasso familiar. Um casamento desfeito, pelo egoísmo de uma dedicação desmedida ao trabalho, ou o desencaminhamento de um filho, pelo esquecimento do pai, preocupado mais com sua carreira profissional, são realidades conhecidas e que, para os que as viveram, acabam trazendo uma frustração para a qual não há consolo possível: apenas o mergulhar ainda mais no trabalho, para esquecer o que se perdeu.

Viver a temperança no trabalho é saber que os instrumentos de que dispomos para o trabalho são meios e não fins, devendo, portanto, ser usados com moderação e desprendimento. Uma mentalidade perigosa que pode se infiltrar é a de que, se é a empresa que paga ou se é o Estado quem arca com as despesas, o negócio é “aproveitar”! Ora, a temperança, o desprendimento e a ‘pobreza’ não se vivem por motivos econômicos, mas por motivos ascéticos: a moderação se exercita justamente quando se tem os meios à disposição e não por não tê-los.

Assim, podemos lembrar muitos exemplos práticos de desprendimento no trabalho: Não escolher os pratos mais caros num almoço de negócios ou “assaltar” o frigobar do hotel, já que é a empresa que paga a conta; saber trabalhar com o mesmo empenho, mudando talvez a estratégia, quando o computador está fora do ar ou falta a caneta, o caderno, o celular ou o carro que utilizávamos para o trabalho; não esticar o horário que devemos permanecer na empresa, porque a tarefa que desenvolvemos nos é atrativa e as obrigações que nos esperam em casa talvez não o sejam tanto; etc.

Enfim, a temperança no trabalho é, fundamentalmente, reconhecer que o trabalho é serviço e não meio de auto-afirmação, de realização pessoal egoísta ou de aquisição de poder e dinheiro. Sendo meio, deve ser encarado dentro dessa ordem de valores, que dão o equilíbrio necessário para o desempenho eficaz de qualquer tarefa ou trabalho ao qual nos dediquemos.

Gosto de lembrar que a origem latina da palavra ministro (que vem de ministrare, servir) é servidor. Se alguém deve ser o servidor por excelência, esse é o ministro.

Se, por um lado, se pode pecar por excesso, polarizando-se no trabalho, pode-se também pecar por defeito, deixando-se levar pela preguiça. Vencer a inércia do real, das tarefas que aguardam o nosso empenho, é algo que exige esforço e sacrifício contínuos: “Nenhum ideal se torna realidade sem sacrifício” (S. Josemaría Escrivá, “Caminho”, ponto 175).

O problema é que o preguiçoso não está disposto a fazer qualquer sacrifício por seus ideais. Não é que não os tenha. Na verdade, é um sonhador: “Os desejos consomem o preguiçoso” (Prov. 21, 25). Trabalha com mentalidade de se refestelar no que faz: vai fazendo pouco e devagar, para não se cansar. E sua falta de espírito de sacrifício faz com que nunca alcance o que desejaria ter. E acaba acomodando-se com o que tem e com o que é, quando se esperaria muito mais dele, pelos talentos que tem (cfr. Francisco Faus, “A Preguiça”, Quadrante – 1993 – São Paulo).

VII) Conclusão

O ideal formativo platônico da paidéia tinha como base a harmonia entre razão e instintos: o equilíbrio interior, pelo domínio racional dos apetites sensíveis.

Quem não se sente atraido por uma pessoa equilibrada? Quem não gostaria de sê-lo? Para isso, faz falta o esforço diário por dizer que não ao que nos puxa para baixo.

Como nas empresas que colocam num painel o número de dias sem acidentes no trabalho, podemos ter o nosso painel de combate para adquirir hábitos de auto-domínio e equilíbrio interior, que dão paz à alma: tantos dias sem capotagens, por exemplo, no campo da bebida e do sexo, mantendo os instintos dentro dos limites do física e moralmente saudável.

Em que pese estarmos, sob tal prisma, mais num enfoque de continência do que de temperança, é um modo de tornar esportiva a luta pela aquisição das virtudes: desejo de quebrar recordes, até ter como adquirido o hábito da temperança e a personalidade equilibrada, com pleno domínio de si e das situações.

Na verdade, é preciso não esquecer que só se alcança a virtude quando se chega a captar no âmbito prático a beleza do comportamento virtuoso. O conceito aristotélico de areté, principalmente no que diz respeito à temperança, está muito ligado a um certo sentido estético, de bom-gosto, bom-gosto da racionalidade. Vai muito além do simples auto-domínio útil.

Assim, a virtude enraizada não se confunde com mero auto-domínio titânico ou equilíbrio instável, mas se percebe num agir firme, fácil, agradável e com estabilidade extrínseca, de alguém que adquiriu uma segunda natureza pela prática da virtude (cfr. Giuseppe Abba, “Felicidad, Vida Buena y Virtud”, Eiunsa – 1992 – Barcelona, pg. 271).

O contrário, o domínio das paixões sobre a racionalidade, está magnificamente retratado no “Senhor dos Anéis”, quando Gandalf explica a Frodo os efeitos que o Um Anel, tão cobiçado por todos, provoca na pessoa:

“Um mortal, Frodo, que possuir um dos Grandes Anéis não morre, mas também não se desenvolve ou obtém mais vida; simplesmente continua, até que no final cada minuto é puro cansaço. E, se usa o Anel com freqüência para se tornar invisível, ele desaparece: torna-se no fim invisível permanentemente, e anda no crepúsculo sob o olhar do poder escuro que governa os anéis. Sim, mais cedo ou mais tarde – mais tarde se essa pessoa for forte ou tiver boa índole no início; mas nem a força nem bons propósitos durarão -, mais cedo ou mais tarde o poder escuro irá dominá-la”. (O Senhor dos Anéis – Volume Único – 2001 – pg 48).

A pessoa que não vive a temperança e que se deixa dominar pelo apetite sensível acaba escrava das paixões, que é a pior das escravidões: a bebida, o sexo, o dinheiro, o prazer passam a ser seus únicos motores, tornando-a um espectro de ser humano, enfastiada de vícios que já não satisfazem, mas que não consegue largar.

Estas linhas são apenas um ponto de partida para a reflexão sobre o que vale a pena fazer para chegar ao equilíbrio e paz interior, condição necessária até para usufruir mais e melhor do mundo criado. Fica para o próximo artigo a análise da temperança no campo do amor-próprio, plasmada na virtude da humildade, à qual se opõe o vício da soberba. Para tal estudo, a obra tolkieniana se mostra superlativamente abundante de exemplos.

Sair da versão mobile