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Seres Fantásticos na Literatura: Os Elementais

Se a literatura de fantasia é herdeira direta das mitologias e dos contos folclóricos, não é de se estranhar que ela seja o hábitat natural de centenas de criaturas com que a imaginação humana povoou os mundos ficcionais e até o nosso.

Fadas, gnomos, sereias e outros tantos seres são comuns nas sagas fantásticas e percorreram um longo caminho desde as narrativas ancestrais até o surgimento dos adesivos que, no final do século XX, muita gente usou em seus carros (traziam os dizeres “Eu acredito em duendes”. Havia também os adesivos que diziam “Eu atropelo duendes”, mas isso não interessa a este artigo…).

O que desejamos é verificar a origem e a trajetória de alguns desses personagens míticos, pois mesmo que o interesse das pessoas pelos chamados seres elementais seja efêmero – uma moda que vem e vai – eles permanecem firmes e fortes na literatura.

O termo elemental vem, é claro, da palavra elemento – e da teoria da filosofia pré-socrática de que o mundo seria composto por quatro elementos básicos: ar, água, terra e fogo. O filósofo Empédocles, que viveu em meados do século IV antes de Cristo, pregou que esses quatro elementos ou raízes compunham todas as coisas, e eram animados por duas forças contrárias, o amor e o ódio (poderíamos chamá-las de força de atração e força de repulsão).

É provável que tenha sido devido a essa teoria, aceita por séculos, que surgiram nas histórias humanas os seres ligados às forças elementais. Muitos pesquisadores do passado encontravam narrativas supostamente verídicas sobre eles e às vezes provas físicas de sua existência – mas passamos a observar a sistematização dos quatro tipos dessas criaturas apenas em tempos mais modernos. Pensadores ligados às doutrinas de Paracelso, no Renascimento, e da Teosofia e Antroposofia, dos séculos XIX e XX, afirmaram a realidade da sua existência e os estudaram mais a fundo. Segundo suas crenças, que têm muito de poéticas, mas contam com testemunhos de pessoas que juram terem tido contato com tais espíritos da natureza, eles estariam divididos em:

Elementais da Terra – Os gnomos, que viveriam entre as rochas do subsolo. Podemos classificar também entre esses elementais os trolls, que se seriam feitos da matéria da terra.

Elementais do Fogo – as salamandras; a tradição diz que elas viveriam nas chamas. Talvez possamos incluir nesta categoria os dragões, que em algumas mitologias cospem fogo.

Elementais da água – seres que habitariam os rios e mares: ondinas, náiades, sereias, tritões e vários outros.

Elementais do ar – silfos e sílfides. Os gênios, elfos e fadas também podem pertencer a este elemento, pelo fato de serem alados ou terem poderes sobre o elemento aéreo.

São inúmeros os contos maravilhosos e mitos “estrelando” criaturas elementais: fadas, devas, djins, silfos, sátiros, faunos, elfos, leprechauns, anões, trolls, kobolds, brownies, nixies, pixies, gobelins, povo do musgo, gnomos, selkies, ondinas e tantos outros. A maioria deles aparece pela primeira vez em contos dos Celtas.  Na Mitologia Grega são descritas as ninfas dos rios e das fontes, além dos seres aquáticos que formavam o cortejo de Poseidon e de sua esposa Anfitrite. Vêm da Hélade também as narrativas sobre espíritos das montanhas ou das matas, as dríades e hamadríades e outros seres que interagiam com deuses e mortais. Em mitos Nórdicos e Germânicos os elfos, anões e seres encantados são constantes. E em histórias populares da época medieval vamos encontrar esses mesmos seres, às vezes com outros nomes, sendo alguns deles já demonizados – pois, após o advento do Cristianismo, a maioria dos seres mágicos em quem o povo acreditava foram chamados demônios e diabretes, ligados às forças infernais, com o objetivo claro de afastar as pessoas das tradições pagãs e assim obter mais fiéis – e, por consequência, mais poder.

Autores como William Shakespeare utilizaram a riqueza das tradições Celtas em suas peças, e, no Romantismo, corrente sob cuja influência deu-se o nascimento da novela gótica, temos sempre referências não apenas aos seres mitológicos, mas ainda a criaturas assustadoras e fantasmagóricas. Já na Literatura de Fantasia e Infantil/Juvenil moderna, mais desapegada da necessidade de ater-se apenas à realidade, os elementais voltaram a mover-se com liberdade. Nas prateleiras das livrarias, hoje em dia, encontraremos de tudo: desde os Nibelungos que forjavam metais em cavernas até nobres Elfos de inspiração Tolkieniana e, para nossa alegria, Sacis, Curupiras, Igpupiaras, M’bois e outros habitantes fantásticos das terras brasileiras, sem nos esquecermos dos devas de origem africana, conhecidos como Orixás, igualmente ligados às quatro forças naturais.

Veremos, então, que – como acontece com inúmeros elementos literários – os personagens encantados e encantadores oriundos desses reinos da Natureza podem variar na forma, porém habitam obras vindas de todos os cantos do planeta, sem preconceitos.

É interessante verificar em quantas culturas os elementais da terra são considerados trabalhadores dos metais e das gemas, ligados à ideia de riquezas vindas do solo. São seres telúricos, encarnam as forças da terra. O nome gnomo vem do grego gnosis, conhecimento, talvez pela suposição de que eles saberiam segredos sobre a localização de metais preciosos nas profundezas em que vivem. Foram descritos de muitas maneiras, sendo a descrição mais comum a européia: homenzinhos barbudos e rudes. Como os anões de Tolkien, os Nibelungos eram artífices de metais e preferiam habitar subterrâneos. Assim também são os anões de sagas como Eragon, mas bem mais espertos que os gnomos estúpidos e que vivem discutindo nas histórias de Artemis Fowl (veja abaixo, em Leituras sugeridas). Nos livros de Eoin Colfer, há distinção entre gnomos e anões; estes são descritos como seres da terra, que possuem o maxilar desencaixável para mastigar terra e pedras, capazes de metabolizar esse material ao abrir túneis, expelindo-o, após ser processado, pelas vias naturais… Já nas histórias de Harry Potter os gnomos têm caráter de praga doméstica nos jardins dos bruxos ingleses! Aí, são meros animais que empesteiam jardins. E, na tradição africana, consta que os Orixás relacionados ao elemento terra seriam Oxalá e Xangô.

A relação dos humanos com os elementais da água é bem curiosa. Já citamos os espíritos dos rios e fontes gregos, bem como os tritões que acompanhavam o cortejo de Poseidon. Também da água vêm monstros, demônios e as sereias encantadoras, cujo canto atraía os marinheiros, fazendo-os naufragar, presentes em narrativas antiqüíssimas como a Odisseia de Homero, e descritas de formas diversas, tendo corpos de pássaro ou de peixe. Note-se que na língua inglesa se distingue as sirens (sirenas ou sereias) das mermaids (donzelas do mar). Andersen povoa seu conto “A Pequena Sereia” com todo um povo que habitaria o fundo do mar. Nas “Crônicas de Spiderwick” (veja também em Leituras sugeridas) é dito que elas são seres perigosos pertencentes à família Sirenidae, muito ameaçados pela poluição dos mares. O autor ficcional os descreve em várias espécies, de acordo com o mar que habitam. Já para J. K. Rowling, o povo das águas se chama Merpeople, os Sereianos. Viveriam em todo o planeta, preferindo ser contados entre os animais do que entre os humanóides. Com eles foram assimilados os selkies da Escócia (às vezes chamados homens-foca) e os merrows da Irlanda. Por mais imaginárias que soem suas histórias, contudo, existem até narrativas reais de sereias que teriam vivido entre os humanos! E nas histórias africanas, os Orixás da água seriam Iemanjá (mar), Oxum (rios e cachoeiras) e Nanã (chuva).

Também a respeito dos mais conhecidos elementais do fogo, as salamandras, há referências em bestiários medievais e em obras de não-ficção. Alguns dizem que elas são pequenos dragões; Santo Agostinho cita animais que vivem no fogo, querendo provar que os corpos humanos poderiam viver no fogo do inferno sem serem consumidos… E tanto Aristóteles quanto Leonardo da Vinci atestam a existência real desses animais. Marco Polo até cita ter visto em suas viagens tecidos de pele de salamandra, que não se queimavam no fogo – embora, na verdade, desconfia-se que esses tecidos eram feitos de amianto.

Voltando à ficção, para os bruxos ingleses da saga de Harry Potter as salamandras são lagartos que moram no fogo e se alimentam de chamas, mas fora deles só sobrevivem se comerem pimenta. Considera-se que seu sangue tem propriedades curativas. Sua família, segundo Spiderwick, é a Flammieuntidae, e sua espécie é classificada como Salamander flammulaticus. Quanto aos Orixás, os que se ligam ao fogo são Ogun e Xangô.

Aos elementais do ar, porém, é mais difícil atribuir uma vida “real”. Silfos e elfos fariam parte desse reino, e habitariam montanhas, ventos ou nuvens. Naturalmente, essa classificação está mais ligada às tradições esotéricas e teosóficas do que à mitologia, que via os elfos como meros duendes, mais próprios ao elemento terra. A própria palavra “elfo” vem da mitologia germânica, que acreditava serem eles pequenos, sinistros e misteriosos, dados a pregar peças nos humanos (Sacis?… Embora o cachimbo desses seres sugira sua ligação com o elemento fogo…). Os elfos se misturaram às tradições Celtas provavelmente via cultura Saxã, mesclando-se às narrativas destes sobre povos feéricos. Consta que seu nome vem da palavra alemã alp, pesadelo; na Idade Média acreditava-se que os pesadelos eram culpa de elfos oprimindo o peito de quem dormia para causar-lhes sonhos maus – o equivalente europeu do Jurupari ou da Pisadeira, do folclore brasileiro.

Quando J.R.R.Tolkien, porém, fez uso de tal nome, os elfos se tornaram uma raça anterior à humana; mais nobre e ligada aos destinos da Terra. Eles teriam surgido por criação de Eru Ilúvatar, sendo seus Primogênitos; acordaram sob as estrelas de Elbereth antes de existir o Sol ou a Lua. Criaram a escrita, as artes e todas as coisas belas que antecederam as realizações humanas.

Na série Artemis Fowl, baseada em cultura irlandesa, mas com um toque de tecnologia, os elfos voltaram a ser pequenos e mágicos – muito sarcásticos… enquanto que, para Arthur Spiderwick, personagem das Crônicas, eles seriam pertencentes à família dos Circulifestidae, chamados Wood Elves (Elfos das Florestas), e classificados como Dryas nemorivagans, parentes das Dríades e Hamadríades da mitologia grega. Na mitologia africana, temos Iansã como o Orixá que rege os ventos e os ares.

Autores atuais como Neil Gaiman e Terry Pratchett utilizam esse universo feérico em suas obras. Mas se Pratchett tem uma abordagem satírica, transferindo para o Mundo do Disco tradições de nosso mundo, Gaiman nos presenteia com histórias em que elementais e fadas estão entre nós, em sua forma céltica, poética e às vezes tenebrosa. Bons exemplos são a história em quadrinhos “Sonho de uma noite de verão”, revisitando o clássico de Shakespeare, ou o livro “Stardust”, em que os Thorn atravessam o Muro que separa a cidade de Wall da terra em que Faerie acontece.

Quanto aos dragões… bem, esses seres maravilhosos merecem um artigo só para eles.

Nossa conclusão, após esta pequena viagem pelo mundo dos elementais, é que a contínua popularidade da literatura que os inclui é sinal de que esses seres continuarão por muito tempo a povoar – se não o nosso mundo – as nossas histórias e, consequentemente, os nossos sonhos!

Leituras sugeridas:

Animais Fantásticos e onde habitam – Newt Scamander (J.K. Rowling). SP: Rocco, 2001

As Crônicas de Spiderwick – Tony DiTerlizzi e Holly Black. Rio de Janeiro: Rocco (5 volumes, com títulos e datas de publicação variadas).

O Conto de Fadas – Nelly Novaes Coelho. São Paulo: DCL, 2003.

O Encontro com os Elementais – Cristina Magalhães. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1992.

O Livro dos seres imaginários – Jorge Luís Borges. SP: Companhia das Letras, 2008.

Artemis Fowl, o menino prodígio do crime – Eoin Colfer. Rio de Janeiro: Record, 2001.

E mais: Obras variadas de J. R. R. Tolkien, J.K. Rowling e Neil Gaiman

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