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Limitações e Defeitos: O Que Aceitar e o Que mudar

1) Introdução

Em geral, as pessoas tem uma visão equivocada do que sejam limitações e defeitos e também se portam de modo equivocado ao tratar com eles. Assim, de um lado, tentam superar suas limitações, querendo ser e chegar onde não tem condições de viver. Exemplos típicos são os daquele que aspira a um cargo além da sua envergadura (não tem perfil para aquilo, desconhece a matéria e nem terá tempo para estudar e especializar-se nela), daquele que gasta mais do que tem (sem aceitar a limitação dos seus haveres presentes ou de sua capacidade de gerar renda futura tão elevada) ou daquele que não aceita sua constituição física (e vive se quebrando, por praticar esportes radicais para seu biótipo ou faixa etária… o bendito futebol de final de semana).

Outro dia, quando me pediram, num hotel, o número do cartão de crédito, disse que não tinha. Só de débito. E comentei jocosamente, a latere com o colega que me acompanhava: “Isso é que é pobreza!”. Ele, no entanto, rapidamente retrucou: “Isso é que é riqueza! Você gasta o que tem. Eu, com meu cartão de crédito, gasto o que não tenho…”. Realmente, essa tem sido uma marca iniludível da sociedade moderna, que conduziu à crise financeira de setembro de 2008: crédito fácil no mercado, sem a verificação sobre se as pessoas tem condições de pagar os bens de consumo adquiridos, muitas vezes compulsivamente. O importante é produzir e consumir. O velho adágio cartesiano “je pense, donc je suis” foi substituído pelo moderno “I shop, therefore I am”.

Se é difícil aceitar as limitações, mais ainda é mudar os defeitos. Daí que, as pessoas tendam a aceitar seus defeitos com naturalidade, tirando-lhes importância, como se estivessem irremediavelmente incrustados em sua natureza. É o alcoólatra que diz só beber socialmente; é o mulherengo que repete constantemente a frase da Escritura – “é… a carne é fraca…” –; é o atrasado contumaz, sempre com sua desculpa pela importância do que estava fazendo antes ou sobre a conspiração cósmica contra sua pontualidade; é o eterno desordenado, que perde as coisas e esquece os compromissos, por não acreditar na eficácia da agenda e de seguir o conselho daquela professora de Francês: “Une place pour chaque chose; chaque chose a sa place…”.

Assim, Aceitam-se os defeitos e se rebelam contra as limitações, quando, conhecida a diferença entre limitações e defeitos, deveriam combater estes e aceitar aqueles. Onde está, pois, a diferença? São sinônimos ou tem sentidos distintos e equívocos esses dois termos?

2) As Limitações

As limitações dizem respeito à nossa constituição física e anímica: alto ou baixo, gordo ou magro, mais ou menos inteligente, temperamentalmente mais expansivo ou mais retraído, etc.

Costumam os moralistas distinguir entre temperamento e caráter. Enquanto o primeiro é o dado fático bruto, ou o constitutivo anímico de nosso ser, o segundo é o elemento construído, através da prática das virtudes.

Assim, há traços temperamentais que podemos trabalhar e ter sobre eles um certo domínio, enquanto outros estão tão arraigados que sempre os teremos como característica de nosso modo de ser.

Na série de romances de Patrick O’Brian sobre O Mestre dos Mares, os dois personagens principais, apesar de ingleses, ou seja, muito comedidos, contidos e discretos, têm temperamentos bem diferentes, que se complementam, gerando uma amizade íntima e forte.

Jack Aubrey, o comandante da Fragata Surprise, é todo exuberância, primarismo em seus sentimentos, fortes e extravasados nas ordens que dá e nos combates que trava. Já Stephen Maturin é o cirurgião do navio, filósofo e cientista, que mantém seu diário anotando suas mais profundas especulações sobre a condição humana.

No livro A Fragata Surprise (Record – 2007 – Rio de Janeiro), que é o terceiro da série, há uma passagem que mostra a diferença entre o estado bruto do temperamento e o caráter trabalhado, quando aquele aflora em momentos de maior tensão. Maturin é ferido num duelo e, após a operação em que é retirada a bala que se alojou abaixo de seu coração, entra em estado febril e delirante, destrancando sua mente mais secreta, o que faz Aubrey permanecer em seu leito de doente, pois não desejava que mais ninguém lhe ouvisse as confissões:

“Afora segredos oficiais, havia coisa que Jack não desejava que nenhum outro homem escutasse. Sentia vergonha de ouvi-las; para um homem orgulhoso como Stephen (e nesse sentido Lúcifer não chegaria aos pés dele) seria a morte saber que mesmo o amigo mais íntimo ouvira suas nuas afirmações de desejo e todas as suas fraquezas desnudas como no Dia do Juízo (…) Ele havia considerado Stephen o próprio filósofo, forte, praticamente intocado pelos sentimentos comuns, seguro de si e com toda a razão; não tinha maior respeito por nenhum homem da terra. Este Stephen, tão passional, tão totalmente subjugado por Diana e tão cheio de todo tipo de dúvidas o deixava pasmo; não estaria mais perdido se encontrasse a Surprise privada de suas âncoras, do lastro e da agulha magnética” (pgs. 382-383).

Uma das limitações que temos é, justamente, a constituição física, da qual um dos componentes é a idade: a cada fase da vida temos condições de fazer umas coisas e não de outras. A melhor descrição que conheço desse tipo de limitação etária é a que Marguerite Yourcenar (1903-1987) faz no primeiro capítulo de suas ”Memórias de Adriano” (Editora Nova Fronteira – 1980 – Rio de Janeiro, tradução de Martha Calderaro; publicação original de 1951), quando o velho Imperador Romano olha para trás, para o passado, pensando no que era capaz e fez ao longo da vida. Aos 10 anos, amante das corridas (“correr, mesmo no mais curto percurso, ser-me-ia hoje tão impossível quanto para a pesada estátua de um César”), aos 20 da caça; aos 30 da equitação (“A renúncia à equitação é sacrifício mais penoso ainda; uma fera não era senão um adversário; o cavalo era um amigo”); aos 40 da natação (“De cada arte praticada, retiro hoje um conhecimento que me compensa em parte dos prazeres perdidos”); aos 50 dos banquetes (“comer em excesso é hábito romano; eu, porém, fui sóbrio por volúpia”); mas aos 60 anos, pensando também nos amores de sua vida, olhava para traz, vendo a que estava limitado com sua idade e doença…“Confesso que a razão permanece confusa em presença do prodígio do amor, da estranha obsessão que faz com que essa mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe nosso corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la e, se possível, impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma personalidade diferente da nossa e porque representa certos traços de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estariam de acordo” (…) “Tais conceitos sobre o amor poderiam conduzir-me a uma carreira de sedutor. Se não a empreendi foi, sem dúvida, por ter feito coisa melhor” (…). E termina por reclamar da insônia que o acossa: “De todas as venturas que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais preciosas, embora seja das mais comuns também. Um homem que dorme pouco e mal, apoiado sobre dezenas de almofadas, medita com vagar sobre essa volúpia diferente”.

Na História Universal, um dos maiores exemplos de não aceitação das próprias limitações, levando-se toda uma nação à completa exaustão e destruição, foi a continuidade da 2ª Guerra Mundial pelos alemães, não obstante já estivesse perdida desde o desembarque na Normandia. A obstinação germânica, impulsionada pelo fanatismo de seu Führer, é bem descrita na obra-prima de estudo histórico do período “Ascensão e Queda do III Reich”, de William Shirer (Editora Civilização Brasileira S/A – 1962 – Rio de Janeiro, 2ª Edição, Tradução de Pedro Pomar, 4 Volumes) e fez com que a agonia alemã e dos povos submetidos ao seu jugo, além da perda de vidas de aliados e das potências do Eixo, se estendesse ainda por mais um ano.

Saber se dá para começar um projeto e quando está na hora de parar não é pouca ciência.

3) Os Defeitos

Os defeitos são ausência de virtudes que poderíamos e deveríamos ter. Os 7 pecados capitais elencam as raízes de nossos principais defeitos: soberba, luxúria, preguiça, ira, inveja, gula e avareza. São qualidades nocivas ao nosso comportamento, que nos envilecem e corrompem.

Logo no primeiro capítulo do livro “Caminho”, de S. Josemaría Escrivá, dedicado ao tema do “Caráter”, um dos primeiros pontos de meditação é bem incisivo e cai como luva para nossa reflexão sobre as limitações e os defeitos, o temperamento e o caráter:

“Não digas: “Eu sou assim…. são coisas do meu caráter”. São coisas da tua falta de caráter. Sê homem – “esto vir” (ponto 4).

Os defeitos ou vícios são hábitos maus adquiridos e que, uma vez arraigados, são mais difíceis de se tirar, mas não tarefa impossível. Três coisas são essenciais para se vencer um defeito e perder um vício:

a) reconhecer que se tem o defeito – acabar com os eufemismos ou com a visão benevolente que temos de nós mesmos (dar nome aos bois);

b) lutar contra o defeito – praticar as ações da virtude contrária ao vício (moderação no comer, para o guloso; generosidade para o avarento; contar até dez para o irado…);

c) não desistir diante das derrotas – sabendo seguir o conselho da música – “levanta, sacode a poeira e dá volta por cima” – ou o lema daquele general –“de derrota em derrota, até a vitória final!”.

Temos uma dificuldade enorme de reconhecer nossos defeitos: supervalorizamos nossas qualidades e depreciamos nossos defeitos. Luiz Marins, em sua obra de administração de pessoal (divertidamente ilustrada pelo Negreiros) chamada “Só Não Erra Quem Não Faz” (Landscape – 2008 – São Paulo), vai elencando em cada capítulo os vícios que desenvolvemos em nosso trabalho, que devemos combater e que podemos pendurar nos 7 vícios capitais:

a) inveja – hábito de reclamar de tudo e de todos; só falar mal dos outros; sempre com dó de si mesmo (vitimismo); criador de caso, que tudo contesta e com todos encrenca; volúvel que não dá segurança a ninguém;

b) ira – viver dando broncas e gritando com as pessoas; sempre mau-humorado, de cara fechada e de mal com o mundo;

c) orgulho – arrogância de se achar melhor do que os demais; não ouvir ou prestar atenção aos outros; não precisar de ajuda; tornar-se inacessível e indisponível, o que leva ao isolamento e ao fracasso; viver dando desculpas, por não reconhecer que também é falível; intolerância para com erros que todos podem cometer e que são a marca de quem está produzindo; falar muito e de forma empolada, complicada e sem objetividade; suscetibilidade enfermiça que se ofende por tudo e por nada;

d) preguiça – cansaço crônico para tudo o que não seja desfrutar da vida; o fulano que se fossilizou, ancorado no passado (só olha pelo retrovisor e bate no carro da frente) e não sabendo conviver com as inovações e com ter de aprender coisas novas (vive se economizando); pensar antes de falar; medo de se “sujar” e colocar a mão na “m”. o fulano que vive adiando os compromissos, não cumpre os prazos e horários, não decide nunca e está sempre atrasado;

e) avareza – desprezo pelos detalhes e pelas pessoas, esquecendo de dar retorno, de agradecer e de reconhecer os méritos alheios (não sabe elogiar); ativismo que estressa e que faz perder o sentido do descanso e da contemplação (não se tem tempo para os outros, só para a própria carreira e profissão, numa ambição doentia);

i) gula – desconta na comida as insatisfações em outros campos, virando uma bola;

j) luxúria – assédio sexual, do que não vê nas colegas e subordinadas pessoas mas apenas possíveis objetos de prazer (cantadas veladas ou explícitas); viciado em baixaria na internet…

O campo de luta é vastíssimo, se buscamos o aperfeiçoamento profissional e pessoal. Mas, para começar, seguir o conselho antigo de Sócrates: ”Conhece-te a mesmo”. E uma boa maneira, é, para quem está casado, perguntar ao outro cônjuge: ”Quais são os meus modos de ser que te chateiam?”. Saberão descrever os nossos defeitos melhor do que ninguém. É fácil ver os defeitos dos outros, porque não estamos imersos nele, mas com os nossos temos muita benevolência.

Até hoje não encontrei, nos clássicos da Literatura Universal, melhores exemplos descritivos dos recantos sombrios da alma humana, de suas motivações e fraquezas, do que dois grandes escritores russos: Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Leon Tolstoi (1828-1910).

Do primeiro, os romances que mais me atraíram, desde a juventude, foram “Os Irmãos Karamázovi” (Ediouro – 1981 – Rio de Janeiro, tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes) e “O Idiota”. A diferença de temperamento dos 3 irmãos Karamázovi – Dimítri, o idealista violento e desregrado; Ivan, o intelectual ensimesmado e frio; e Aliócha, o religioso singelo e confiante (sem falar no filho ilegítimo Smierdiákov, corrompido parricida) – representando as três facetas que resumem a alma russa – a passional, a racional e a mística –, fazem com que, ao longo da estória, nos vamos identificando com um ou com outro, reconhecendo nos diálogos e reflexões dos personagens, nossas próprias angústias, dilemas e esperanças, verificando como umas podem ser superados e outras sublimadas bastando que se reconheça as fraquezas e se as queira vencer. Olhando de fora, parece tão fácil…

Em “O Idiota” (Editora 34 – 2002 – São Paulo, tradução de Paulo Bezerra), o que mais me impressionou foi o contraste entre a aceitação das próprias limitações por parte do personagem que dá nome ao livro, o Príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin, com a epilepsia que o constrangia, e o orgulho profundo de Aglaia Ivánovna, que perde o seu amor, por não querer manifestá-lo primeiro. A densidade e complexidade das personalidades prende e extasia o leitor, identificando seus próprios modos de agir, pensar e sentir. Poderia ser diferente o desenlace do drama?

Drama não menos polarizante é o “Ana Karênina” de Tolstoi (Abril Cultural – 1971 – São Paulo, tradução de João Gaspar Simões), cuja primeira frase parece ser um resumo conpacto de todo o livro: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Haveria, então, um modo único de ser feliz, e muitos caminhos para a infelicidade?

Na concepção aristotélica de Eudaemonia (felicidade), ela estaria na excelência moral, que supõe a conjugação das quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança, com todas as demais que a elas se ligam). Assim, pela unidade da ordem moral, não é possível alcançar a excelência e a perfeição se se claudica numa delas. Assim, a felicidade supõe não abdicar da luta em nenhuma das frentes, enquanto a infelicidade varia segundo o front no qual se entregou os pontos. No caso de Ana Karênina, foi entregar-se à paixão extra-conjugal pelo Príncipe Vronski, não obstante a bela família que tinha, com filho e marido exemplares. O drama interior de uma alma dividida é bem retratado no livro.

Mas a obra-prima de Tolstoi é, indubitavelmente, “Guerra e Paz” (Editora Itatiaia – 1983 – Belo Horizonte, 2 volumes, Tradução de Oscar Mendes). Nele, o período napoleônico, sob o prisma da Rússia, é tão bem retratado, numa trama que envolve tantos ambientes e famílias inteiras de personagens principais (a edição inglesa da Britannica Great Books – 1952 – London, que elege este como principal livro de Tolstoi, traz logo no início um elenco das principais famílias e seus membros, para facilitar a vida do leitor), que, na época em que o li pela primeira vez, quando não passava dos 14 anos, tendo todos os atrativos de uma Fazenda em Avaré para aproveitar as férias escolares – cavalos, açude, futebol, campos e bosques, gado e plantação de café, animais domésticos e pomares –, lembro-me de passar horas a fio na rede da varanda, lendo as aventuras e desventuras do Conde Pedro Bezukhov e da jovem e inocente Condessa Natásha Rostóva, do valente Príncipe André Bolkonski e de sua adorável esposa Lisa Bolkonskaya, do inescrupuloso Príncipe Anatole Kurágin e de sua sensual irmã Helena Kurágina, imaginando em quadros as passagens de festas e batalhas, com conquistas e derrotas, tanto no campo bélico, quanto no afetivo, a ponto de pensar que a realidade estava ali, no livro, e não na natureza que tinha a meu dispor.

Pois bem, a lição que se tira desse romance histórico é a de que a vida é feita de muitas pequenas derrotas e vitórias, e que, se não se abandona a luta contra os próprios defeitos e se percebe a necessidade da mudança, o resultado final pode ser altamente positivo, de uma forma muito diferente do que imaginávamos no início. Assim, também a felicidade tem vias distintas, concretizando-se de modos nem planejados, nem sonhados.

4) O que mudar e o que aceitar

Dizem que as expectativas no casamento são diametralmente opostas entre marido e mulher, e as frustrações decorrem da ausência de realismo nesse campo. Enquanto o homem espera que a mulher não mude na sua formosura, a mulher espera que o marido mude nos seus defeitos.

Esse é um bom exemplo da diferença entre limitações e defeitos sob o prisma da mudança: não dá para esperar que a beleza física permaneça indefinidamente (trata-se de uma limitação e contingência da natureza e do tempo), como também não dá para esperar que os defeitos arraigados se superem da noite para o dia (mas, havendo disposição, se consegue mudar).

Há uma frase lapidar no filme “Melhor é Impossível” (1997), com Jack Nicholson e Helen Hunt, que dá a pista do mecanismo capaz de provocar uma mudança no modo de ser, de modo a se vencer os defeitos temperamentais. É a que o escritor maníaco diz para a garçonete com a qual começa uma verdadeira amizade: “Você é uma pessoa que faz a gente querer ser melhor!”.

Ou seja, o amor é capaz de promover a mudança, por apresentar um motivo forte para ser diferente, de modo a agradar a quem se ama. Por outro lado, o amor faz aceitar as limitações de quem se ama, pois se ama do modo que é.

Chesterton fala-nos do paradoxo desse aceitar e querer mudar:

“Ninguém duvida que o homem comum consiga harmonizar-se com este mundo, no entanto, não basta que tenhamos força suficiente para nos harmonizarmos com ele: é preciso que tenhamos força bastante para fazê-lo progredir. Poderá o homem odiá-lo o bastante para mudá-lo e, ainda assim, amá-lo o suficiente para julgá-lo merecedor de mudança?” (“Ortodoxia”, LTr – 2001 – São Paulo, pg. 99).

Trata-se, portanto, de amar tanto, que se quer o que é defeituoso por si mesmo, mas se quer também que seja melhor.

Por um lado, quanto às limitações, são um dado da natureza que devemos aceitar e começar a trabalhar a partir dele. Assim, se temos pouca cabeça, teremos que compensar com mais estudo o que outros alcançam com a simples assistência às aulas. Se tempos a tendência fisiológica a engordar, podemos fazer regimes, mas sempre sujeitos a mais baixos que altos no controle do peso. Se a pessoa nasceu com algum defeito físico, não dá para desconversar e tentar viver se enganando ou complexado porque se é limitado de cabeça, careca, feio, baixinho, gordo, diabético, hipertenso, etc.

Mas os defeitos, estes sim, podemos e devemos combater. Não adiante querer mudar o mundo, com tantos projetos de reforma social, se não se está disposto a mudar o próprio interior. Os grandes problemas sociais não são problemas de estruturas, mas de abandono da luta interior por ser melhores. Em vez da revolução exterior, promover em primeiro lugar uma revolução interior que nos faça melhores homens e cidadãos.

Um dos romances mais pessimistas que já li foi ”Os Buddenbrook – Decadência duma Família” (Círculo do Livro – 1975 – São Paulo), de Thomas Mann (1875-1955). Retrata 50 anos da História da Alemanha, a partir de 1835, sob a ótica das vicissitudes de uma família da burguesia germânica. O que impressiona é ver os defeitos de criança dos personagens sendo carregados e agravados pela vida afora. Tony (Antoniette) Buddenbrook mantém seu temperamento difícil de conviver até o final do livro, acabando com seu casamento, justamente porque nunca houve preocupação por mudar e melhorar.

É possível mudar! Mais: o temperamento é apenas o ponto de partida. Explorar seus aspectos positivos (interatividade, afabilidade) e combater seus aspectos negativos (passividade, irascibilidade) é a nossa tarefa na vida.

No mundo empresarial de uma economia globalizada e de extrema competitividade , o segredo do sucesso e a da sobrevivência está na capacidade de mudar e com rapidez: reconhecer os erros, ver as escleroses e perceber o que há de novo exigindo respostas criativas para os desafios do meio (cfr. Arnold Toynbee, Um Estudo da História, Ed. UnB-Martins Fontes – 1987 – Brasília).

Há um autor que aprecio especialmente por seus romances históricos. Trata-se de Louis De Wohl, anglo-germânico, a quem o Papa Pio XII, conhecendo seu gênio literário, propôs escrever biografias de santos, mostrando a vida heróica de homens e mulheres empenhados em viver o ideal cristão nas mais distintas condições e épocas.

Louis De Wohl seguiu o conselho e, graças a ele, temos uma coleção fantástica de biografias romanceadas de grandes santos, onde, a par dos personagens históricos e os dados verídicos, há os personagens de ficção, cuja trama prende do começo ao fim. Cada época é bem retratada é se fixam os acontecimentos que nela se deram. As lutas dos personagens para mudar e vencer seus defeitos fica bem retratada, em derrotas e vitórias, como se pode ver em (a edição brasileira é das Paulinas, mas se encontra esgotada, a inglesa é da J.B. Lippincott Company):

a) “La Lanza – Historia del Centurión Longinos” (Palabra – 1995 – Madrid; original “The Spear”);

b) “El Mensajero del Rey – Novela sobre San Pablo y su Tiempo” (Palabra – 1991 – Madrid; original “The Glorious Folly”);

c) “El Arbol Viviente – Historia de la Emperatriz Santa Elena” (Palabra – 1986 – Madrid; original “The Living Wood”);

d) “Venciste, Galileo! – Historia del Emperador Juliano el Apóstata” (Palabra – 1997 – Madrid; original: “Imperial Renegade”);

e) “Atila – El Azote de Dios” (Palabra – 1997 – Madrid; original: “Attila The Hun”);

f) “Corazón Inquieto – La Vida de San Agustín” (Palabra – 1998 – Madrid; original: “The Restless Flame”);

g) “Ciudadelas de Dios – Novela sobre San Benito de Nursia y su Tiempo” (Palabra – 1997 – Madrid; original: “Citadel of God”);

h) “El Mendigo Alegre – Historia de San Francisco de Asis” (Palabra – 1997 – Madrid, original: “The Joyful Beggar”);

i) “La Luz Apacible – Novela sobre Santo Tomás de Aquino y su Tiempo” (Palabra – 1996 – Madrid; original: “The Quiet Light”);

j) “As Asalto del Cielo – Historia de Santa Catalina de Siena” (Palabra – 1988 – Madrid; original: “Lay Siege to Heaven”);

k) “Juana de Arco – La Chica Soldado” (Palabra – 2005 – Madrid; original – The Girl Soldier”);

l) “El Hilo de Oro – Vida y Epoca de San Ignacio de Loyola” (Palabra – 1989 – Madrid; original: “The Golden Thread”);

m) “El Último Cruzado – La Vida de Don Juan de Austria” (Palabra – 1997 – Madrid; original: “The Last Crusader”).

Alessandro Manzoni (1785-1873), outro mestre da Literatura Universal, tem no romance “Os Noivos” (Abril Cultural – 1971 – São Paulo, Tradução de Marina Guaspari, publicado originalmente  em 1824) uma das melhores descrições da mudança de um personagem que o escritor, jocosamente, designa como O Inominado, para preservar sua imagem, já que, sendo o Senhor Todo-Poderoso da Região de Milão, espezinhando e oprimindo ricos e pobres, passa por um processo de conversão que o faz sair de seu orgulho, procurar o Cardeal, S. Carlos Borromeu (1538-1584), e tentar reparar por sua vida pregressa, especialmente as perfídias que cometera com os noivos Renzo e Lúcia…

Exemplo marcante, no entanto, e mais realista, é o retratado no clássico de Henry Morton Robinson (1898-1961), “O Cardeal” (Editora Mérito S/A – 1964 – São Paulo, 7ª edição, tradução de José Geraldo Vieira), que conta a vida de Stephen Fermoyle, sacerdote norte-americano recém ordenado em Roma, e todos os dramas interiores de quem quer ser fiel à sua vocação, não obstante as tentações que sofre em todos os campos das fraquezas humanas, desde o atrativo feminino, à discussão do aborto em família, às perseguições da Ku-Kux-Klan, à agruras de um pároco de cidade pequena, às batalhas no campo das idéias para defender, já como bispo, a fé e a moral num mundo em transição.

5) Conclusão

A sociedade só melhorará se cada um de seus membros, em vez de reclamar das estruturas sociais, estiver decidido a mudar interiormente. Os defeitos dos outros e das estruturas sociais estão patentes para nós. Podemos apontá-los e descrevê-los com pormenores e abundância de exemplos. O que não vemos ou não queremos mudar e nosso modo chato, arrogante, mexeriqueiro, sensual, desordenado, intemperante e acomodado de ser.

Se a mudança não é consciente, são os fatores externos que prevalecerão e mudarão para pior nosso ambiente e condições de vida. Eric Durschmied titulou de modo interessante o livro em que narra as grandes batalhas da humanidade: “Fora de Controle – Como o Acaso e a Estupidez Mudaram a História do Mundo” (Ediouro – 2003 – Rio de Janeiro, tradução de Lólio Lourenço de Oliveira).

Nesse livro, ao explicar as causas da derrota francesa na Batalha de Azincourt (25/10/1415), na qual brilhou a coragem e humildade de Henrique V, atribuía-a principalmente à prepotência francesa, não sabendo controlar nem a cabeça, nem o coração. Assim se pode resumir a situação e o desenrolar dos acontecimentos, que fizeram a França perder também a 2ª fase da Guerra dos 100 Anos:

a) exército inglês comandado pelo rei Henrique V (28 anos) contava com apenas 5.000 homens (1.000 cavaleiros e 4.000 arqueiros), famintos e fatigados da batalha de Harfleur e da marcha, tendo pela frente a fina nata da cavalaria pesada francesa (10.000 cavaleiros e 15.000 infantes), comandados pelo Condestável da França Charles D’Albret (Conde de Dreux).

b) Vendo a desproporcional  inferioridade inglesa, os nobres franceses decidem atacar, sem levar em conta que o terreno fora recém arrado e chovera a noite inteira.

c) Os arqueiros ingleses provocaram suficientemente os franceses, que estes desencadearam a carga de cavalaria no meio da lama, inviabilizando o impacto.

d) Os arqueiros ingleses, mirando nas cavalgaduras, derrubaram os cavaleiros franceses, que ficaram totalmente vulneráveis com suas pesadas armaduras (massacre da nobreza francesa).

e) Fluellen de Gales, a mando de Henrique, mata todos os prisioneiros franceses (após saber do ataque francês à retaguarda inglesa, matando os pagens e carregadores, infringindo as leis de guerra da época), para poder enfrentar a infantaria que vinha.

Antes de ler o livro de Eric Durschmied, nunca entendera como os ingleses puderam superar uma desvantagem de 5 para 1. Mas Shakespeare retrata bem o espírito inglês na batalha, um tanto épico, mas suficientemente esclarecedor da vantagem de valorizar os subordinados, descendo do pedestal do orgulho. São estimulantes as palavras que Shakespeare coloca na boca do Rei, no discurso que precede o combate (“King Henry V”, Britannica Great Books – 1952 – London, Act 4 – Scene 3 – English Camp, before the battle of Agincourt):

Westmoreland

O that we now had here
But one ten thousand of those men in England
That do no work to-day!

King Henry

What’s he that wishes so?
My cousin Westmoreland? No, my fair cousin:
If we are mark’d to die, we are enow
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.
By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires:
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England:
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more, methinks, would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmoreland, through my host,
That he which hath no stomach this fight,
Let him depart; his passport shall be made
And crowns for convoy put into his purse:
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.
This day is called the feast of Crispian:
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when the day is named,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say ‘To-morrow is Saint Crispian:’
Then will he strip his sleeve and show his scars.
And say ‘These wounds I had on Crispin’s day.’
Old men forget: yet all shall be forgot,
But he’ll remember with advantages
What feats he did that day: then shall our names.

Familiar in his mouth as household words
Harry the king, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester,
Be in their flowing cups freshly remember’d.
This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be remember’d;
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition:
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accursed they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day”
(grifos nossos).

Quando o heraldo francês aparece no campo inglês para propor a rendição e um resgate pelo Rei, este responde apenas: “Outro resgate, meu gentil arauto, não heis de obter além destes meus membros, que, se ficarem como tenho idéia de deixá-los, bem pouco hão de valer”. Ou seja, o desprendimento de Henrique em relação ao seu destino, desde que lutasse com denodo, foi um dos segredos da vitória. Repetindo Luiz Marins, não podemos nos economizar: para mudar o mundo para melhor, temos que começar a árdua tarefa de mudar-nos a nós mesmos, que assim, pelo exemplo e pela palavra poderemos contagiar muitos com nossos ideais, sonhos e esperanças. Assim, após a batalha da nossa vida, poderá ser dito para cada um de nós o que o heraldo francês disse ao Rei Henrique: “The day is yours” (linguagem da época que apontava para quem havia ganhado a batalha). E poderemos cantar, como Henrique V fez com seus soldados, após tão memorável vitória: “Non nobis, Domine, non nobis, sed nomine tuo da gloriam!”.

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