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Ungoliant, Dualismo e Livre-Arbítrio nos Mitos de Tolkien

Alguns temas e personagens abordados por Tolkien em sua obra são enigmas intrigantes por constituírem o que o autor denominava “vistas inatingíveis”. Tais mistérios compõem aquilo que Tolkien preferia deixar a cargo da imaginação de seus leitores, e, para esses elementos, ele se limitou a dar explicações lacônicas que, muitas vezes, apenas acrescentam mais incógnitas a matérias já bastante controversas.

Tais temas são, por sua natureza, muito complexos porque envolvem duas questões cruciais:

a) A questão do cânon tolkieniano ou da pseudo-autoria. A mitologia tolkieniana é, na verdade, uma estrutura mutável e evolutiva, um corpo de mitos que não somente reflete as concepções cambiantes do autor sobre muitos assuntos mas que, também, ilustra o ponto de vista dos cronistas ficcionais aos quais Tolkien atribuiu a “autoria” das histórias dentro do mundo inventado por ele. Logo, muita coisa deve ser considerada quando escolhemos trechos extraídos do vasto material deixado por Tolkien. Nem todas as idéias que ele tinha no início de sua obra permaneceram válidas assim como diversos acréscimos tardios feitos por ele próprio são incompatíveis com a continuidade preestabelecida. E, por outro lado , determinadas histórias nos livros refletem a visão dos narradores criados por Tolkien e não, necessariamente, a dele próprio. É importante tentar distinguir uma coisa da outra.

b) A mitologia do Silmarillion só foi publicada por intermédio do trabalho do filho de Tolkien, Cristopher, que selecionou os materiais para publicação e esta só ocorreu a partir de uma data quatro anos posterior à morte do próprio Tolkien, em 1977. Diversas questões da mitologia anterior ao Hobbit e ao Senhor dos Anéis nem chegaram a ser objeto de deliberação pelo seu autor, simplesmente pelo fato de que tais indagações não foram apresentadas a ele.

A análise por parte de leitores atentos e minuciosos é um excelente modo de um autor ter as obscuridades do seu trabalho trazidas ao seu conhecimento, e, infelizmente, a mitologia do Silmarillion careceu de tal análise durante a vida do seu criador, com exceção, é claro, da que ele próprio fez ,tarefa que, aliás, foi um dos entraves para que a obra adquirisse uma forma publicável devido ao extremo perfeccionismo do escritor.

Essa análise feita pelo Tolkien, entretanto, resultou em muitos materiais que esclarecem pontos obscuros da mitologia* ( vide o texto sobre Glorfindel e sobre os Costumes dos Eldar, por exemplo) e , hoje , eles estão disponíveis na série HOME ( The History of Middle Earth) , no Contos Inacabados e no livro que colige suas cartas. Mas houve alguns detalhes que escaparam do seu escrutínio.

Por causa disso, a obra tolkieniana apresenta questões que, de tempos em tempos, aparecem entre o público leitor, e para as quais não é possível fornecer uma resposta definitiva e simples. Não raro, as possíveis soluções geram mais perguntas que são difíceis de elucidar. Uma dessas questões é a natureza de Tom Bombadil, tema que rende muita especulação na Internet e entre os estudiosos da obra e que, possivelmente, só é menos debatida do que a famosa questão sobre as asas dos balrogs.

Um outro tema parecido, mas que atrai muito menos a atenção do grande público por estar incluído no Silmarillion, é a origem de Ungoliant , a mãe de Laracna ( Shelob) que aparece no segundo volume da trilogia.

Respostas para essas perguntas só podem ser realmente especulações e reflexões de outras mentes sobre a obra tolkieniana, e devem levar em consideração uma série de fatores: época em que os textos foram criados, a inter-relação entre os mesmos, noções de teologia e mitologia comparadas, seja entre as múltiplas versões dos próprios mitos tolkienianos, seja desse conjunto de mitos como um todo em contraste com mitos e concepções teológicas que podem ter influenciado o autor, etc. Logo, é importante ressaltar que não é possível dar uma solução cabal sobre a origem de personagens como Bombadil ou Ungoliant porque é muito difícil dizer com segurança o que Tolkien pensava ( ou pensaria no caso de Ungoliant) a respeito deles na época em que se tornaram do conhecimento do público.

No caso de Ungoliant todas as possíveis ideias sobre a natureza dessa personagem criam questionamentos e especulações, gerando temas correlatos que , inclusive, serão objeto de novos ensaios onde possam ser tratados com mais detalhes.

Portanto, nas próximas páginas , eu pretendo discorrer sobre essas teorias, seus prós- e -contras e, tanto quanto possível dentro do escopo do ensaio , eu tenciono, também, esclarecer alguns dos questionamentos que as teses necessariamente despertarão. Os links incluídos no texto remeterão o leitor para locais da Web onde parte do o material foi pesquisado de modo que ele possa, também, formar suas conclusões.

Ungoliant como um dos Ainur ( Valar e Maiar).

Os Ainur – “Os Sagrados”- são os espíritos engendrados a partir do pensamento de Eru Ilúvatar, o Criador, Pai de Todos. São potências “angelicais” nascidas antes do surgimento do Universo. Desses Ainur, o mais poderoso, Melkor, se corrompeu insurgindo-se contra os desígnios de Ilúvatar, e espalhando a discórdia que criou todos os males que afligem o mundo em que vivemos.

Em sua queda, ele atraiu para o seu partido uma miríade de espíritos menores recrutados dentre as legiões de Maiar , os Ainur de categoria inferior à que o próprio Melkor pertencia, a ordem dos Valar, os “Poderes do Mundo”, regentes do Mundo Material, Eä , o nosso Universo.

Ao se manifestarem na Terra, os Ainur se valem de “fánar”, “véus”, formas moldadas pelo seu próprio pensamento, e que, consoante a sua vontade, podem imitar a aparência de Homens ou Elfos. É em função dessa capacidade de auto-encarnação que uma teoria muito difundida sobre a origem de Ungoliant passou a existir.

Ora, todos os textos referentes à Ungoliant são unânimes em afirmar que ela “tomou a forma de uma aranha”.Tal afirmação, é claro, sugere que essa não é a sua forma original, mas sim que a mesma foi adotada dentro de Arda por escolha da própria Ungoliant. Uma vez que os Mirroanwi , “os Encarnados”, Homens e Elfos, nascem com uma forma física definida (o hröa) onde seus respectivos espíritos ( fëar) são alojados a conclusão é óbvia: em sua origem, Ungoliant era uma entidade puramente espiritual (fairë) que, à semelhança dos Valar e Maiar, era capaz de adotar uma forma visível dentro de Arda.

Os textos que compõem o Silmarillion também sugerem que Ungoliant podia ser um espírito que nos primórdios de Eä foi cooptado por Melkor para a sua causa. Uma passagem muito relevante de um dos textos componentes do Silmarillion ( HOME 10- Morgoth`s Ring- The Later Silmarillion )parece corroborar essa versão pois nela Melkor se dirige a Ungoliant nos seguintes termos:

“APROXIMA-TE!!”- ELE DISSE. : “TRIPLAMENTE TOLA PRIMEIRO POR ME ABANDONARES, POR HABITARES AQUI, DEFINHANDO AO ALCANCE DE INDESCRITÍVEIS BANQUETES, E AGORA POR POR ME EVITARES, PORTADOR DE DÁDIVAS, TUA ÚNICA ESPERANÇA! APROXIMA-TE E VÊ! EU TROUXE PARA TI UM PENHOR DE UMA RECOMPENSA MAIOR A BUSCAR.

‘COME FORTH!’ HE SAID. ‘THRICE FOOL: TO LEAVE ME FIRST, TO DWELL HERE LANGUISHING WITHIN REACH OF FEASTS UNTOLD, AND NOW TO SHUN ME, GIVER OF GIFTS, THY ONLY HOPE! COME FORTH AND SEE! I HAVE BROUGHT THEE AN EARNEST OF GREATER BOUNTY TO FOLLOW.’

Vamos considerar, para efeitos desse ensaio, que essa passagem seja mesmo uma indicação de que,outrora, Melkor havia sido o mestre de Ungoliant. Vamos ignorar que o mesmo texto contém uma passagem repetida com algumas variantes, em todas as versões da história, dando a entender que o trecho todo do encontro de Melkor e Ungoliant, no que tange a esse pormenor, pode resultar de especulações dos elfos, uma vez que nele se diz que:

“NÃO SE SABE DONDE ELA VEIO, MUITO EMBORA , ENTRE OS ELDAR SEJA DITO QUE EM ERAS ANTERIORES ELA HAVIA DESCIDO DAS TREVAS QUE JAZEM EM TORNO DE ARDA, QUANDO MELKOR OLHOU PELA PRIMEIRA VEZ COM DESPEITO PARA A LUZ NO REINO DE MANWË. MAS ELA HAVIA ABANDONADO SEU MESTRE, DESEJANDO SER SENHORA DE SUA PRÓPRIA COBIÇA, TOMANDO TODAS AS COISAS PARA ALIMENTAR O SEU VAZIO.”

“IT IS NOT KNOWN WHENCE SHE CAME, THOUGH AMONG THE ELDAR IT WAS SAID THAT IN AGES LONG BEFORE SHE HAD DESCENDED FROM THE DARKNESS THAT LIES ABOUT ARDA, WHEN MELKOR FIRST LOOKED DOWN IN ENVY UPON THE LIGHT IN THE KINGDOM OF MANWE. BUT SHE HAD DISOWNED HER MASTER, DESIRING TO BE MISTRESS OF HER OWN LUST, TAKING ALL THINGS TO HERSELF TO FEED HER EMPTINESS”.

É um dos casos onde a narração feita pelos cronistas elfos pode diferir e não corresponder, exatamente, ao que o Tolkien, como escritor onisciente, pensaria. A passagem toda é , em última instância, uma “estória” élfica, uma criação dos cronistas com base em suposições e rumores ouvidos ao longo de séculos para suprir uma lacuna em seus registros, sobre fatos que não foram presenciados em primeira mão.

Feitas essas considerações, vamos esquecer as dúvidas e considerar como fatos os seguintes pressupostos:
• Ungoliant é uma entidade espiritual que se manifesta no mundo visível sob a forma de uma aranha
• A mesma Ungoliant foi ,outrora, uma serva de Melkor corrompida ou atraída por ele na aurora do tempo.

Esses dois fatos, por si sós, garantem que ela era um dos Ainur? Se ela era uma dos “Sagrados”, a qual ordem ela pertenceria? Aos Valar ou aos Maiar?

Bem, o Tolkien disse que, dos Ainur, aqueles que penetraram dentro do Universo, Eä, e que eram mais poderosos se tornaram Valar. O leitor e, durante um certo tempo, o próprio Tolkien, tiveram como um fato o conceito de que todos os Valar do Universo vieram para Arda e são conhecidos por aqueles que aqui habitam. Entretanto, o Tolkien quando avaliou mais detidamente seus conceitos cosmogônicos e a natureza do “Reino” de Arda (HOME 10 -Myths tranformed) chegou à conclusão de que:

“EXISTIAM OUTROS, INCONTÁVEIS PARA ALÉM DO NOSSO PENSAMENTO, EMBORA CONHECIDOS E NUMERADOS NA MENTE DE ILÚVATAR, CUJO LABOR JAZ EM OUTRO LUGAR E EM OUTRAS REGIÕES E HISTÓRIAS DO GRANDE CONTO, ENTRE ESTRELAS REMOTAS E MUNDOS ALÉM DO ALCANÇE DO MAIS LONGíNQUO PENSAMENTO. MAS DESSES OUTROS, NÓS NADA SABEMOS E PODEMOS SABER, AINDA QUE OS VALAR DE ARDA, TALVEZ, SE RECORDEM DE TODOS ELES”

“OTHERS THERE WERE, COUNTLESS TO OUR THOUGHT THOUGH KNOWN EACH AND NUMBERED IN THE MIND OF ILUVATAR, WHOSE LABOUR LAY ELSEWHERE AND IN OTHER REGIONS AND HISTORIES OF THE GREAT TALE, AMID STARS REMOTE AND WORLDS BEYOND THE REACH OF THE FURTHEST THOUGHT. BUT OF THESE OTHERS WE KNOW NOTHING AND CANNOT KNOW, THOUGH THE VALAR OF ARDA, MAYBE, REMEMBER THEM ALL.”

É de se presumir que essas outras cortes de Valar tivessem seus respectivos séquitos de Maiar como acontecia com os Valar “telúricos”ou “terrestres”.

Considerando que Ungoliant é proveniente da escuridão fora de Arda, é tentador supor que ela poderia ser um desses espíritos Ainur corrompidos , talvez, até mesmo, uma Valië “extraterrena” que houvesse atendido ao chamado de Melkor quando ele foi expulso da Terra durante a Primavera de Arda. Mas Tolkien disse que, muito embora haja uma hierarquia entre os Valar, por força da qual os Aratar sejam os mais reverenciados e Manwë seja considerado seu soberano, eles não são servos uns dos outros no sentido correspondente à vassalagem devida pelos Maiar a seus respectivos senhores Valar. Se Ungoliant era uma “serva” de Melkor é improvável que ela fosse uma dos Valar que teriam originalmente habitado outras regiões de Eä .Além disso, a idéia de que Ungoliant fosse um espírito Ainu esbarra em alguns entraves inarredáveis.

Em primeiro lugar, a natureza de seus poderes que consiste na habilidade de absorver Luz e gerar as Trevas que são, não a ausência de luz, mas a presença de uma coisa nova, dotada de ser próprio, não são condizentes com os atributos de qualquer dos Maiar e Valar. Mesmo Melkor, que era considerado Senhor das Trevas e que tinha espiritos de sombra como seus servidores não era capaz de criar a Antiluz de Ungoliant. Os Balrogs caminhavam embuçados em trevas, mas a escuridão que os encobria carecia das propriedades da Antiluz : sua tangibilidade ( as teias de Ungoliant aprisionaram Tulkas) e a capacidade de estrangular e subjugar a vontade de suas vítimas( um poder herdado por Laracna pois suas teias tinham essa mesma capacidade).

Ungoliant também possuía uma habilidade que lhe era peculiar: o Dom de absorver o poder armazenado em receptáculos e construtos místicos mesmo que eles NÃO FOSSEM previamente designados para esse fim ( transferir o poder para ela, como era o caso das carnes com as quais Morgoth deu de comer a Carcharoth) quer fossem eles produto do labor de espíritos Ainur, (as árvores de Valinor , os poços de Varda), quer fossem originados pelos Eldar ( as jóias de Valinor que os Noldor aprenderam a criar, onde parte do seu poder ficava alojado).

Isso é uma coisa que, até onde sabemos, nem sequer os Ainur são capazes de fazer( pelo que vimos dela, ela drenaria o poder de Sauron se devorasse o Anel, por exemplo). E muito menos, é claro, um Hröa formado pela matéria de Arda. O que reforça mesmo a tese de que ela era a única do seu tipo.

Agora, o principal indício de que Ungoliant não era um membro dos Ainur consiste no sequinte fato: Ungoliant, à semelhança de Melian, gerou uma prole com seres encarnados em Arda. Isso é um detalhe que, inclusive, foi destacado em uma discussão na Internet.

http://hammer.prohosting.com/~xenite07/archive_56/11349.htm

Tolkien sugere que o caso de Melian foi uma concessão feita por Eru Ilúvatar, pois, no caso dela, o corpo com o qual ela concebeu Lúthien Tinúviel era um organismo real, um Hröa nutrido pela substância física de Arda e não um fána com o qual os Ainur se “vestem” no mundo visível.

Tal informação consta de uma nota ( a de nº 53) no texto SHIBOLLETH OF FËANOR no livro The Peoples of Middle Earth, HOME 12:

“LÚTHIEN FOI ATRAVÉS DE SUA MÃE, MELIAN, DESCENDENTE, TAMBÉM, DOS MAYAR ( MAIAR) O POVO DOS VALAR, CUJO SER COMEÇOU ANTES QUE O MUNDO FOSSE FEITO. MELIAN, ÚNICA DE TODOS AQUELES ESPÍRITOS, ASSUMIU UMA FORMA CORPÓREA, NÃO APENAS COMO UMA VESTIMENTA MAS COMO UMA HABITAÇÃO PERMANENTE EM FORMA E PODERES IDÊNTICA AOS CORPOS DOS ELFOS. ISSO ELA FEZ POR AMOR A ELWË; E TAL FOI PERMITIDO SEM DÚVIDA PORQUE ESSA UNIÃO JÁ TINHA SIDO PREVISTA NO COMEÇO DAS COISAS, E FOI TECIDA NO AMARTH* DO MUNDO, QUANDO ERU PRIMEIRO CONCEBEU O SER DE SUAS CRIANÇAS, ELFOS E HOMENS COMO É CONTADO( NA MANEIRA E DE ACORDO COM A COMPREENSÃO DE SUAS CRIANÇAS) NAQUELE MITO QUE É CHAMADO A MÚSICA DOS AINUR.”

*( DESTINO)

“ (LUTHIEN WAS THROUGH HER MOTHER, MELIAN, WHOSE BEING BEGAN BEFORE THE WORLD WAS MADE DESCENDED ALSO FROM THE MAYAR, THE PEOPLE OF THE VALAR.) MELIAN ALONE OF ALL THOSE SPIRITS ASSUMED A BODILY FORM, NOT ONLY AS A RAIMENT BUT AS A PERMANENT HABITATION IN FORM AND POWERS LIKE TO THE BODIES OF THE ELVES. THIS SHE DID FOR LOVE OF ELWE; AND IT WAS PERMITTED, NO DOUBT BECAUSE THIS UNION HAD ALREADY BEEN FORESEEN IN THE BEGINNING OF THINGS, AND WAS WOVEN INTO THE AMARTH OF THE WORLD, WHEN ERU FIRST CONCEIVED THE BEING OF HIS CHILDREN, ELVES AND MEN, AS IS TOLD (AFTER THE MANNER AND ACCORDING TO THE UNDERSTANDING OF HIS CHILDREN) IN THAT MYTH THAT IS NAMED THE MUSIC OF THE AINUR.”

Isso só pode significar duas coisas: Que o caso de Melian não era tão singular assim e que outros “apetites” que não o amor podem fazer um Ainu suportar a provação de ser preso pelas cadeias da carne de Arda, e que ,no caso de Ungoliant, isso possa se dar com uma certa frequência e facilidade, mesmo sem que isso faça parte dos desígnios de Eru ( o que eu duvido), OU que a natureza de Ungoliant seja MESMO diferente da de outros espíritos, como os Ainur, em consonância com o que já foi dito e sugerido em outras partes dos livros do Tolkien. ( o que eu acho mais provável).

É óbvio que as características de Ungoliant não se coadunam com os aspectos nem dos fánar( manifestações dos Ainur no plano material) nem dos hröar ( corpos físicos). A forma adotada por Ungoliant parece ter uma natureza híbrida similar àquela com a qual Gandalf foi devolvido à vida por Eru Ilúvatar ( conforme consta da carta nº 158 ).Tolkien disse que aquela forma era um corpo material, como aquele no qual os Valar o enviaram para a Terra Média, mas esse novo corpo “trajava-se de branco e se tornou uma chama radiante mas ainda velada , salvo em momentos de grande necessidade” * ) e era imune a armas convencionais , a julgar pelo que Gandalf disse em seu encontro com Aragorn, Legolas e Gimli em Fangorn- O Cavaleiro Branco, livro III cap 5) (“ De fato meus amigos, nenhum de vocês possui qualquer arma capaz de me ferir”)

(*Contos Inacabados, ensaio sobre os Istari)

Assim sendo, eu acredito que o corpo de Ungoliant era uma forma intermediária entre hröa e fána, capaz de procriar com Encarnados mas ainda apta a manifestar os poderes do seu espírito. Essa forma não pode ser criada pela vontade de seres como os Ainur, no caso de Gandalf, ela proveio da vontade de Eru, e é um dos seus “Milagres” ( consistente na inserção dentro de Eä de elementos não prefigurados na canção dos Ainur). A tranformação de Melian, ao que parece, também é um feito realizado por Ilúvatar, e merece, inclusive, um ensaio à parte.

Além disso, a tendência de Tolkien, no caso do Silmarillion, seria dizer, explicitamente, que ela era uma maia, assim como ele fez no caso de Sauron, mas ele não agiu assim.

Em o Senhor dos Anéis, como a história é predominantemente marcada pelo ponto de vista dos hobbits, uma omissão como essa ou falta de afirmação é até lugar comum.

No Senhor dos Anéis não foi só o Tom Bombadil que não teve a sua natureza revelada pois o mesmo ocorreu com os Istari , com o próprio Sauron e com Fruta d’Ouro (esposa de Bombadil). Os nomes maia ou maiar não são sequer mencionados, e, até mesmo nos Apêndices , Tolkien se referiu à Melian apenas como um membro do “povo dos Valar”

Mas o Silmarillion é um livro de escopo totalmente diverso. Nele, a intenção dos cronistas fictícios, cujos trabalhos Tolkien teria adaptado e compilado por intermédio do Bilbo* seria, justamente, a de traçar o perfil de toda a cosmogonia e de seus principais protagonistas, ainda que de maneira abreviada, e, naturalmente, limitada ao ponto de vista élfico. Muito provavelmente, se Tom Bombadil fosse um elemento tão importante para o desenrolar da trama central do Silmarillion, a sua natureza teria sido, pelo menos, sugerida, como ocorreu com os lobisomens, ents e Thuringwethil.

*( Cristopher Tolkien comenta na introdução do Livro dos Contos Perdidos que O Silmarillion, como chegou até nós, seria os dois volumes de “Traduções do Élfico” feitos por Bilbo em Valfenda)

Assim sendo, o silêncio de Tolkien sobre Bombadil no Senhor dos Anéis é perfeitamente compreensível pois o intento do livro é narrar uma guerra ao invés de discorrer sobre a natureza do Mundo e seus habitantes ( além de que a omissão resulta de uma intenção expressa da parte dele no sentido de deixar algumas vistas inatingíveis.) mas, no caso de Ungoliant, o fato de Tolkien evitar discorrer sobre a sua natureza parece resultar de um intento um pouco mais amplo.

No caso de Bombadil, as vistas inatingíveis que a sua origem oculta o são apenas para nós mas não para indivíduos tais como os Maiar e Valar. Gandalf, no final de O Senhor dos Anéis( portanto depois de ter se tornado o Cavaleiro Branco e ter recuperado pelo menos parte do seu conhecimento como Olórin, o mais sábio dos Maiar), dá a entender que sabe muito bem o tipo de ser que Bombadil era, a ponto de tecer comparações entre ambos ( Senhor dos Anéis , livro VIII cap 7, A caminho de casa).

Mas no tocante à Ungoliant ,no Lost Tales, Tolkien diz que nem os Valar sabem a sua origem, ao passo que, no Silmarillion, ele afirma que os Eldar (pupilos de Valar e Maiar) também desconhecem donde ela proveio. A vista inatingível à qual Ungoliant corresponde é muito mais do que um artifício para se produzir a famosa “impressão de profundidade” porque a tendência dos cronistas da Quenta Silmarillion é a de dar palpite até sobre assuntos dos quais são ignorantes. ( o que será objeto de outro ensaio) Portanto, o silêncio de Tolkien sobre um assunto desses no Silmarillion é mais significativo do que seria no Senhor dos Anéis e no Hobbit É uma sugestão de que o conhecimento dos Valar sobre a natureza dos seres não é completo, de que há mistérios sobre os quais os escritores élficos nem sequer estavam cientes.

A omissão do escritor é uma exceção ao princípio que rege a composição do livro. E o fato é que, segundo esse princípio, Tolkien teria dito que Ungoliant era uma maia se essa fosse a sua intenção.

Assim sendo, analisada essa primeira possibilidade, vamos à segunda teoria

Ungoliant como uma manifestação da discórdia entre os temas da Ainulindalë

A página da Intenet encontrada no seguinte link contém uma especulação interessante derivada desse trecho do Myths Tranformed que foi publicado no Morgoth`s Ring, HOME 10.( muito embora o autor não tenha feito a referência textualmente)

“PROVENIENTES DAS DISCÓRDIAS DA MÚSICA-NÃO DIRETAMENTE DE NENHUM DOS TEMAS, SEJA O DE ERU OU O DE MELKOR, MAS DA DISSONÂNCIA ENTRE UM E OUTRO – COISAS MALÉFICAS SURGIRAM EM ARDA, AS QUAIS NÃO DESCENDEM DE NENHUM PLANO DIRETO OU VISÃO DE MELKOR: ELAS NÃO ERAM “SUAS CRIANÇAS”; E , PORTANTO, UMA VEZ QUE TODO MAL ODEIA, ODIAVAM-NO TAMBÉM. A PROGENITURA DAS COISAS FOI CORROMPIDA.

“OUT OF THE DISCORDS OF THE MUSIC – SC. NOT DIRECTLY OUT OF EITHER OF THE THEMES, ERU’S OR MELKOR’S, BUT OF THEIR DISSONANCE WITH REGARD ONE TO ANOTHER – EVIL THINGS APPEARED IN ARDA, WHICH DID NOT DESCEND FROM ANY DIRECT PLAN OR VISION OF MELKOR: THEY WERE NOT ‘HIS CHILDREN’; AND THEREFORE, SINCE ALL EVIL HATES, HATED HIM TOO. THE PROGENITURE OF THINGS WAS CORRUPTED.”

Essa noção de que determinadas criaturas possam ter surgido da dissonância dos temas da Ainulindalë é bastante interessante e pode explicar alguns pontos obscuros da mitologia de Tolkien, mas, pessoalmente, eu não penso que essa idéia fornece uma explicação adequada para a existência de Ungoliant. Os motivos que me levam a pensar dessa maneira são basicamente dois:

• Os seres maléficos originados pela dissonância teriam passado a existir dentro de Arda ao passo que, em todos os textos que tratam de Ungoliant, consta sempre a afirmação de que ela é originária de fora de Arda e talvez de fora do próprio Universo (Eä)

• na carta nº 144 Tolkien disse que:

“AS ARANHAS GIGANTES ERAM APENAS A DESCENDÊNCIA DE UNGOLIANTE A PRIMORDIAL DEVORADORA DE LUZ, QUE EM FORMA DE ARANHA AUXILIOU O PODER NEGRO MAS QUE NO FIM CONTENDEU COM ELE. NÃO HÁ, ENTÃO, ALIANÇA ENTRE SHELOB ( LARACNA) E SAURON , O SUBSTITUTO DO PODER NEGRO , APENAS UM ÓDIO COMUM.”

“THE GIANT SPIDERS WERE THEMSELVES ONLY THE OFFSPRING OF UNGOLIANTE THE PRIMEVAL DEVOURER OF LIGHT, THAT IN SPIDER-FORM ASSISTED THE DARK POWER, BUT ULTIMATELY QUARRELLED WITH HIM. THERE IS THUS NO ALLIANCE BETWEEN SHELOB AND SAURON, THE DARK POWER’S DEPUTY; ONLY A COMMON HATRED”

Ora o uso da palavra primordial( primeval) no trecho transcrito acima indica que Ungoliant seria um ser “primevo” que ela antecederia a própria criação de Eä. Logo, ela não poderia ser primeva e ao mesmo tempo ter sido gerada pela dissonância da Ainulindalë, que foi o que deu origem ao Universo. Há uma contradição lógica entre os conceitos

Descartadas essas duas hipóteses , a de que ela seria um dos Ainur e de que ela seria produto da Dissonância na Ainulindalë, resta uma terceira teoria a qual , a meu ver, fornece a melhor explicação para a origem e natureza de Ungoliant.

Passemos então ao tópico seguinte onde essa hipótese será discutida.

Ungoliant como encarnação da Noite Primordial
Essa, por sinal, é a teoria adotada pelos game designers do RPG MERP ( Middle Earth Role Playing). Nele, Ungoliant é descrita como um ser diverso de qualquer outro existente no cosmo tolkieniano, é definida como um Espírito do Vazio.

Nos links abaixo estão algumas páginas sobre o MERP que abordam esse tema.

http://www.cabed-en-aras.com/giantspiders.html
http://www.chilli.net.au/~jazz/shelob/rules/spells.htm

Ocorre que os criadores do MERP, até onde eu sei, nunca disseram quais foram os fundamentos para essa teoria. Para sabermos então a procedência desse conceito é necessária uma leitura cuidadosa da série HOME. A resposta pode ser encontrada no quia de nomes do primeiro volume da série, The Book of Lost Tales I.

Trata-se de um pormenor que muitas pessoas tendem a ignorar, porque ao lerem o texto dos livros se restringem apenas às histórias em si, enquanto o Tolkien conferia à nomenclatura ( como manifestação das línguas criadas por ele) de suas obras uma importância superior às próprias narrativas.

Nove anos atrás quando eu lia a esmo o livro recém -comprado tentado decifrar aquele Inglês barroco tão diferente do que era ensinado no colégio eu me detive no Glossário de Nomes porque era a parte mais fácil do livro. :-P. Eu ainda não conhecia RPGs e nem sequer tinha ouvido falar sobre o MERP, mas lá, escondidinha em um verbetezinho onde o nome Ungoliant ou Ungweliantë, como ela é chamada no Book of Lost Tales , está ausente ( para piorar), está a única afirmação explícita do Tolkien sobre a origem de Ungoliant.

Por amor à claridade é bom que o trecho seja trancrito por extenso

“MÓRU_GL, EM UM ACRÉSCIMO POSTERIOR FORNECE MURU, UM NOME DA NOITE PRIMORDIAL PERSONIFICADA COMO GWERLUM OU GUNGLIONT, DAÍ MINHA LEITURA* DO TEXTO COMO MÓRU NO LUGAR DE MORN. ENTRE OS VERBETES ORIGINAIS EM GL ESTÁ MÚRI, TREVAS, NOITE. VEJA MORNIË.

* ( feita pelo Cristopher Tolkien que teve que desvendar os intrincados manuscritos do seu pai)

“MÓRU- GL* IN A LATER ADDITION GIVES MURU A NAME OF THE PRIMEVAL NIGHT PERSONIFIED AS GWERLUM OR GUNGLIONT, HENCE MY READING IN THE TEXT MÓRU RATHER THAN MORN. AMONG THE ORIGINAL ENTRIES IN GL IS MÚRI, DARKNESS, NIGHT. SEE MORNIË.”

*( Goldogrim Lexicon , é um pequeno livro do idioma “Gnômico” , nome da língua dos Noldor que, nos Lost Tales, são chamados de Gnomos)

“Personificada como Gwerlum”. E quem é Gwerlum? Ora é o próprio texto do The Book of the Lost Tales que fornece a resposta no capítulo VI THE THEFT OF MELKO AND THE DARKENING OF VALINOR. ( Da Fuga de Melko e do Escurecimento de Valinor)

OS ELDAR A CHAMARAM DE UNGWË LIANTI A GRANDE ARANHA QUE ENLEIA , CHAMANDO-A TAMBÉM WIRILOMË OU URDIDORA DE SOMBRAS, ENQUANTO QUE OS NOLDOLI FALAM DELA COMO UNGOLIONT , A ARANHA, OU COMO GWERLUM A NEGRA.

UNGWE LIANTI THE GREAT SPIDER WHO ENMESHES DID THE ELDAR CALL HER, NAMING HER ALSO WIRILOMË OR GLOOMWEAVER, WHENCE STILL DO THE NOLDOLI SPEAK OF HER AS UNGOLIONT THE SPIDER OR AS GWERLUM THE BLACK.

Anos depois, eu fiquei realmente satisfeito ao ver que os responsáveis pelo MERP pesquisaram o Lost Tales e incorporaram esse indício no seu trabalho, mas, talvez pelo fato deles não terem feito menção à fonte de suas idéias, quase ninguém entre os estudiosos de Tolkien incorporou essa concepção até os dias atuais. (Parece haver páginas em Grego escritas sobre isso na Internet, mas não em Inglês e os links estão inoperantes).

Atualização: recentemente páginas da Internet já começam a aparecer com essa teoria como é o caso dessas abaixo:

http://www.annalsofarda.dk/annals-of-arda/Others-index-tables/Others/Ungoliant.htm

http://www.trentu.ca/~mfenwick/mythlorepaper.htm

Aliás, a série HOME contém materiais valiosíssimos que ainda não foram assimilados pelos fãs e nem, tampouco, por muitos experts pelo simples fato de que a série editada pelo filho de Tolkien é lida por pouca gente, até mesmo entre pessoas cujo idioma original seja o Inglês.

Esse trecho do The Book of Lost Tales, em tese, já bastaria para afastar quaisquer dúvidas, mas o conceito esbarra em alguns problemas em termos de exegese tolkieniana em função de diversos motivos:

• 1º) o que vem a ser a Noite Primordial da qual Ungoliant era a encarnação? A resposta para essa questão não é tão simples assim

• 2º) mesmo que Tolkien tenha pensado desse modo no tempo da composição do Book of Lost Tales quem pode assegurar que ele não tenha mudado de idéia? Afinal, na conceituação original, Nienna era regente de um tipo de Purgatório e os Maiar não existiam com essa denominação, embora houvesse espíritos de diversas categorias que acompanhavam os Valar e fossem seus vassalos em Eä. Alguns dos Maiar mais célebres ou eram considerados Valar ( caso de Ossë ) ou eram filhos dos Valar nascidos dentro de Arda ( Eonwë, arauto de Manwë e Gothmog , senhor dos Balrogs eram filhos de Manwë e Varda e de Melko ( Melkor em sua denominação original) e de uma criatura chamada Ulbandi, respectivamente).

• 3º) Se Ungoliant é uma manifestação da Noite primordial, essa “Noite” é uma força independente de Ilúvatar? Ela teria tido influência na corrupção de Melkor? Esse fato indicaria que Tolkien incorporou conceitos “maniqueístas” ou dualistas em sua mitologia, implicando na existência de um outro ser que seria a contraparte “má” de Eru Ilúvatar? Isso modificaria muito a noção corriqueira dos mitos de Tolkien.

Essas são algumas das questões complexas que surgem dessa definição de Ungoliant como Espírito do Vazio e eu vou, em seguida, abordá-los um de cada vez .

A NOITE PRIMORDIAL.


Essa “noite” primeva não pode ser aquela que existe fora dos círculos do mundo, fora de Arda, porque, sendo “primordial”, existia antes do nosso universo, de Eä e ,consequentemente, antes da própria criação. Ungoliant ou Ungweliantë, como é chamada nos “Contos Perdidos”, é uma forma avatar do Vazio, da ausência de luz divinizada que jaz fora de Eä ( fora dos Círculos do Mundo com maiúscula) e das habitações de Eru Ilúvatar, as Mansões eternas( The Timeless Halls). Como tal, aparentemente ela NÃO é uma criação de Ilúvatar mas uma manifestação de uma força independente

É bom destacar que foi enquanto vagava pelo Vazio que Melkor começou a ter idéias diferentes das dos demais Ainur . E, apesar de que parte desse vácuo original está agora preenchido por Eä, essa Noite primeva, esse vazio que jaz além das Portas da Noite, guardadas por Eärendil, ainda existe e é, segundo o Silmarillion, o lugar para onde Melkor foi banido no final da Primeira Era (na verdade Tolkien desmentiu essa noção mais tarde, justamente no MYTHS TRANFORMED do Morgoth`s Ring, HOME 10) ,.

Essa interpretação do duplo sentido da palavra “noite” na cosmologia do Silmarillion é um fato mencionado pelos especialistas. Robert Foster, autor do The Complete Guide to Middle Earth, recomendado pelo próprio Cristopher Tolkien no Unfinished Tales ( Os Contos Inacabados), comenta sobre a existência de DUAS “Portas da Noite” : A Porta da Noite entre Eä e o Vazio e a Porta da Noite entre Arda e Ilmen, o lugar onde estão as estrelas. Vê-se que, nesses casos, “noite” ora é identificada com o Vazio, ora com Ilmen, e que a Noite primordial, da qual Tolkien disse que Ungoliant é personificação não pode ser outra coisa que não o Vazio. Esse problema ocorrido com o termo Noite também aconteceu com outras expressões ( círculos do mundo por exemplo)e em todos esses casos, os motivos remontam a uma origem comum que vai ser tratada em outro ensaio.

Indícios da Permanência da Noção Original na Mitologia

A Carta nº 144 ,à qual já foi feita referência, parece combinar muito bem com a idéia do The Lost Tales, até mesmo no que corresponde à terminologia empregada. O glossário do Lost Tales diz que Ungoliant era uma “encarnação da Noite primordial”, enquanto que a Carta redigida décadas mais tarde , depois da publicação do Senhor dos Anéis, diz que ela era a “devoradora primordial da luz”.

No caso das demais alterações feitas por Tolkien em sua mitologia, as modificações implicaram em tranformações substanciais da caracterização dos personagens e da ambientação. Nienna, por exemplo, foi completamente modificada em relação à sua concepção primitiva que a tornava muito mais próxima da deusa nórdica dos mortos, a filha de Loki, Hela. Idéias como a dos filhos dos Valar foram abandonadas sem a menor sombra de dúvida, mas, no que diz respeito à Ungoliant, a realidade é outra.

A personagem reteve todas as suas características, e a origem de Ungoliant, como contada nos Contos Perdidos, não contraria detalhes do Silmarillion ,mas ,pelo contrário, elucida-os, apesar de, inevitavelmente, resultar em questionamentos sobre a estrutura da mitologia como um todo.

Aliás, os pormenores acrescentados pelas versões posteriores combinam muito bem com o conceito de personificação da Noite primordial. Em passagens do Silmarillion como essas reproduzidas abaixo, a relação de Ungoliant com o Vazio está implícita pois a dissolução aparente do próprio ser é um efeito colateral da Antiluz, e o Vazio é caracterizado pela ausência do Fogo Secreto que confere ser e vida independente às coisas. Essa vinculação com o Vazio exterior explica a sua fome insáciável por luz e o fato de que os poderes e a natureza de Ungoliant sempre remetem ao conceito de vácuo , de vazio, de ausência de ser.

MAS ELA HAVIA ABANDONADO SEU MESTRE, DESEJANDO SER SENHORA DE SUA PRÓPRIA COBIÇA, TOMANDO TODAS AS COISAS PARA ALIMENTAR O SEU VAZIO.

BUT SHE HAD DISOWNED HER MASTER, DESIRING TO BE MISTRESS OF HER OWN LUST, TAKING ALL THINGS TO HERSELF TO FEED HER EMPTINESS

UMA CAPA DE NEGRUME TECEU UNGOLIANT sobre si mesma: UMA ANTILUZ, NA QUAL AS COISAS PARECIAM DEIXAR DE SÊ-LO E QUE OS OLHOS NÃO PODIAM PENETRAR , POIS ERA VÁCUO.

A CLOAK OF DARKNESS SHE WOVE ABOUT HERSELF: AN UNLIGHT, IN WHICH THINGS SEEMED TO BE NO MORE, AND WHICH EYES COULD NOT PIERCE, FOR IT WAS VOID.>>>

Curiosamente, enquanto as árvores são análogas aos atributos do Sol e da Lua, a Antiluz da “Gloomweaver” evoca as qualidades de um buraco negro do qual nem sequer a luz logra escapar. É interessante reparar que, no centro de um buraco negro, o tempo pára, enquanto o Vazio está fora dos limites do tempo.Tais habilidades me parecem combinar muito bem com uma criatura avatar do Vazio primordial.

Aliás, essa noção de que Ungoliant era um ser avatar, uma personificação de uma força atemporal e primeva, parece ecoar no nome escolhido por Tolkien para batizar a região de Aman na qual ela se ocultava quando Melkor veio à sua procura: Avathar.

Eu penso que, à semelhança de muitos outros nomes de mitologias “reais” que foram adaptados para as línguas élficas, ( Atalantë, Avalonnë, Eä, etc) retendo, não obstante, uma vinculação marginal com suas raízes, o termo Avatar foi escolhido por Tolkien pela sua conexão com a idéia de personificação.

A palavra Avatar vem do sânscrito e significa literalmente “Aquele que desce”. É um termo aplicado às múltiplas manifestações de Vishnu, o preservador da mitologia hindu, no plano terrestre que enverga um corpo humano para restaurar a ordem das coisas. Rama e Krishna são tidos como avatares e os avatares são exatamente o que Ungoliant parece ser: a personificação de uma entidade cósmica.

Já no Tolkien, a explicação para a etimologia de Avathar é a seguinte: a palavra resulta da composição de três radicais élficos: awa, que significa “exterior”, elemento presente em Ava Kúma ( o nome da Noite Primordial, significando literalmente “Vazio exterior”) e Avalonnë; wath , que significa “sombra” e thar que quer dizer “através” ou que, segundo alguns, no caso, seria uma expressão representando a forma plural.

É, no mínimo, muita coincidência que Ungoliant, que, nos Lost Tales, seria a encarnação do Vazio ou Noite exterior, no Silmarillion, habite uma região cujo nome significa precisamente ou “sombra estendida sobre o exterior” ou “sombras exteriores”. ( do lado de fora da Muralha da Pelóri que confinava a Luz das Árvores) e que tem uma contraparte em sânscrito, certamente de conhecimento do Tolkien, que designa a encarnação de um ser divino.

A Noite Primordial e o Dualismo nos Mitos de Tolkien.

Robert Foster, o autor do The Complete Guide to Middle Earth, já na Segunda edição do seu livro, demonstrou uma acuradíssima intuição para o significado metafísico de certas expressões no Silmarillion e nos demais livros de Tolkien, simplesmente atentando para o sentido da nomenclatura e detalhes como o uso de letras maísculas e minúsculas. E isso em 1978, cinco anos antes da publicação do The Book of Lost Tales I, o primeiro volume da série HOME
Esses são três dos verbetes encontrados no seu livro , as definições de Vazio ( Void) , Trevas ( Darkness) e Noite do Vazio ( Night of the Void)

VAZIO: A AUSÊNCIA DE ILÚVATAR E DA CHAMA IMPERECÍVEL. MELKOR VAGUEOU PELO VAZIO PROCURANDO PELA CHAMA ( DE FATO EM VÃO ) E EÄ FOI COLOCADO NO MEIO DO VAZIO MAS NÃO ERA UMA PARTE DELE.

TAMBÉM CHAMADO O VAZIO EXTERIOR, O VAZIO ATEMPORAL ( EM CONTRASTE COM AS MANSÕES ATEMPORAIS E O TEMPO DE EÄ), AS TREVAS ETERNAS E AS ANTIGAS TREVAS ( TALVEZ O NADA) E O LADO EXTERIOR)

TREVAS: A NATUREZA, INFLUÊNCIA E EXTENSÃO DO MAL, A AUSÊNCIA OU NEGAÇÃO DA LUZ DE ILÚVATAR. POR VEZES ( COMO EM TREVAS INESCAPÁVEIS) A PALAVRA SE REFERE AO DOMÍNIO DO MAL, EM OUTRAS VEZES,(COMO EM ANTIGAS TREVAS) ELA SE REFERE AO VAZIO, A AUSÊNCIA DE ILÚVATAR PERCEBIDA AO FINAL DA VISÃO E ACOLHIDA POR MELKOR COMO UM VEÍCULO DO MAL. A PALAVRA NA MAIORIA DAS VEZES SE REFERE AO PODER EM GERAL OU A INFLUÊNCIA DE MELKOR OU DE SEU SERVO SAURON.

TAMBÉM CHAMADA A TREVA E A SOMBRA.

NOITE DO VAZIO: A ESCURIDÃO DO VAZIO, A TOTAL AUSÊNCIA DA CHAMA IMPERECÍVEL

Se Ava Kúma , o Vazio, é um tipo de força relacionada com a Escuridão, isso indica que Tolkien assimilou uma concepção “maniqueísta” ou dualista na sua mitologia? A questão é muito mais complexa do que se pode pensar a princípio. Para começar a responder a essa pergunta, é necessário, primeiro, esclarecer certas coisas.

Existe relação de causalidade entre o Vazio e a corrupção de Melkor? Ao que tudo indica sim. Essa noção está presente na mitologia do Tolkien desde o The Book of Lost Tales ( onde era até mais explícita) e continuou válida nas versões posteriores. Os trechos transcritos abaixo pertencem, respectivamente, à Cancão dos Ainur no The Book of Lost Tales e no Silmarillion ( que é idêntica nesse trecho à versão apresentada no volume X de HOME).

A MELKO ENTRE OS AINUR HAVIAM SIDO CONCEDIDAS POR ILÚVATAR ALGUMAS DAS MAIORES DÁDIVAS DE PODER, SABEDORIA E CONHECIMENTO , E ELE HAVIA FREQUENTEMENTE IDO SOZINHO A LUGARES ESCUROS E AOS VAZIOS PROCURANDO O FOGO SECRETO QUE CONFERIA VIDA E REALIDADE ( POIS ELE TINHA UM DESEJO ARDENTE DE TRAZER À EXISTÊNCIA COISAS PRÓPRIAS) MAS ELE NÃO A ENCONTROU, POIS ELA ESTAVA COM ILÚVATAR, E ISSO ELE NÃO SOUBE A NÃO SER DEPOIS.

LÁ , ENTRETANTO ELE COMEÇOU A CONGEMINAR, PENSAMENTOS PROFUNDOS E MALICIOSOS DE SUA PRÓPRIA LAVRA, OS QUAIS ELE NÃO REVELAVA NEM SEQUER PARA ILÚVATAR. ALGUMAS DESSAS CRIAÇÕES E IMAGINAÇÕES ELE ENTRETECEU EM SUA MÚSICA, E IMEDIATAMENTE ASPEREZA E DISCÓRDIA CRESCERAM À SUA VOLTA, E MUITOS DOS QUE TOCAVAM PERTO DELE PERDERAM O ÂNIMO E SUA MÚSICA ENFRAQUECEU, SEUS PENSAMENTOS FICARAM INCONCLUSOS E NUBLADOS, AO PASSO QUE MUITOS OUTROS PASSARAM A AFINAR SUA MÚSICA PELA DELE AO INVÉS DE PELO GRANDE TEMA COM O QUAL ELES TINHAM COMEÇADO.

DESSE MODO A PERFÍDIA DE MELKO GRASSOU CORROMPENDO A MÚSICA, POIS ESSES PENSAMENTOS DELE VIERAM DAS TREVAS EXTERIORES PARA AS QUAIS ILÚVATAR AINDA NÃO HAVIA VOLTADO A LUZ DA SUA FACE; E DEVIDO AO FATO DE QUE SEUS PENSAMENTOS OCULTOS NÃO TINHAM AFINIDADE COM A BELEZA DO DESÍGNIO DE ILÚVATAR SUAS HARMONIAS FORAM QUEBRADAS E DESTRUÍDAS.

MELKO HAD AMONG THE AINUR BEEN GIVEN SOME OF THE GREATEST GIFTS OF POWER AND WISDOM AND KNOWLEDGE BY ILUVATAR; AND HE FARED OFTEN ALONE INTO THE DARK PLACES AND THE VOIDS SEEKING THE SECRET FIRE THAT GIVETH LIFE AND REALITY (FOR HE HAD A VERY HOT DESIRE TO BRING THINGS INTO BEING OF HIS OWN); YET HE FOUND IT NOT, FOR IT DWELLETH WITH ILUVATAR, AND THAT HE KNEW NOT TILL AFTERWARD.’

THERE HAD HE NONETHELESS FALLEN TO THINKING DEEP CUNNING THOUGHTS OF HIS OWN, ALL OF WHICH HE SHOWED NOT EVEN TO ILUVATAR. SOME OF THESE DEVISINGS AND IMAGININGS HE NOW WOVE INTO HIS MUSIC, AND STRAIGHTWAY HARSHNESS AND DISCORDANCY ROSE ABOUT HIM, AND MANY OF THOSE THAT PLAYED NIGH HIM GREW DESPONDENT AND THEIR MUSIC FEEBLE, AND THEIR THOUGHTS UNFINISHED AND UNCLEAR, WHILE MANY OTHERS FELL TO ATTUNING THEIR MUSIC TO HIS RATHER THAN TO THE GREAT THEME WHEREIN THEY BEGAN.

IN THIS WAY THE MISCHIEF OF MELKO SPREAD DARKENING THE MUSIC, FOR THOSE THOUGHTS OF HIS CAME FROM THE OUTER BLACKNESS WHITHER ILUVATAR HAD NOT YET TURNED THE LIGHT OF HIS FACE; AND BECAUSE HIS SECRET THOUGHTS HAD NO KINSHIP WITH THE BEAUTY OF ILUVATAR’S DESIGN ITS HARMONIES WERE BROKEN AND DESTROYED.

MAS À MEDIDA QUE O TEMA SE DESENVOLVIA, ENTROU NO CORAÇÃO DE MELKOR A VONTADE DE ENTRETECER NELE ASSUNTOS DA SUA PRÓPRIA IMAGINAÇÃO QUE NÃO ESTAVAM DE ACORDO COMO O TEMA DE ILÚVATAR, POIS PROCURAVA, ASSIM, AUMENTAR A FORÇA E A GLÓRIA DA PARTE QUE LHE FORA DESTINADA. A MELKOR, ENTRE OS AINUR, TINHAM SIDO DADOS OS MAIORES DONS DO PODER E CONHECIMENTO E ELE COMPARTILHAVA DE TODOS OS DONS DOS SEUS IRMÃOS. FORA MUITAS VEZES SOZINHO AOS LUGARES VAZIOS À PROCURA DA FLAMA IMPERECÍVEL, POIS CRESCIA, ARDENTE, NELE O DESEJO DE DAR VIDA A COISAS SUAS E PARECIA-LHE QUE IÚVATAR NÃO PENSAVA NO VAZIO E ESTAVA IMPACIENTE COM ESSA VACUIDADE; CONTUDO, NÃO ENCONTROU O FOGO POIS ELE ESTAVA COM ILÚVATAR. MAS, SOZINHO, COMEÇARA A CONCEBER PENSAMENTOS PRÓPRIOS, DIVERSOS DOS DOS SEUS IRMÃOS.

BUT AS THE THEME PROGRESSED, IT CAME INTO THE HEART OF MELKOR TO INTERWEAVE MATTERS OF HIS OWN IMAGINING THAT WERE NOT IN ACCORD WITH THE THEME OF ILUVATAR; FOR HE SOUGHT THEREIN TO INCREASE THE POWER AND GLORY OF THE PART ASSIGNED TO HIMSELF. TO MELKOR AMONG THE AINUR HAD BEEN GIVEN THE GREATEST GIFTS OF POWER AND KNOWLEDGE, AND HE HAD A SHARE IN ALL THE GIFTS OF HIS BRETHREN; AND HE HAD GONE OFTEN ALONE INTO THE VOID PLACES SEEKING THE IMPERISHABLE FLAME. FOR DESIRE GREW HOT WITHIN HIM TO BRING INTO BEING THINGS OF HIS OWN, AND IT SEEMED TO HIM THAT ILUVATAR TOOK NO THOUGHT FOR THE VOID, AND HE WAS IMPATIENT OF ITS EMPTINESS. YET HE FOUND NOT THE FIRE, FOR IT IS WITH ILUVATAR. BUT BEING ALONE HE HAD BEGUN TO CONCEIVE THOUGHTS OF HIS OWN UNLIKE THOSE OF HIS BRETHREN.

Há mais duas passagens do Silmarillion na qual a relação entre Melkor, sua corrupção e o Vazio está implícita. Esse trecho abaixo da Valaquenta

“COMEÇOU PELO DESEJO DA LUZ MAS NÃO A PODENDO POSSUIR SÓ PARA SI DESCEU ATRAVÉS DE FOGO E IRA NUM GRANDE INCÊNDIO, À ESCURIDÃO ( DARKNESS)”.

. He began with the desire of Light, but when he could not possess it for himself alone, he descended through fire and wrath into a great burning, down into Darkness.

Há ainda essa outra passagem extraída do Começo dos Dias ( cap. 1º da Quenta Silmarillion). Depois de Ter sido expulso de Arda por Tulkas , Melkor se refugiou na “escuridão exterior” e, ao retornar, e iniciar às escondidas a construção de Utumno, sua grande fortaleza no Norte, ele havia se tornado “negro como a Noite do Vazio”.

“OS VALAR ESTAVAM, POIS, ENTÃO, REUNIDOS EM ALMAREN, SEM RECEAR NENHUM MAL E, POR VIA DA LUZ DE ILLUIN, NÃO SE APERCEBERAM DA SOMBRA PROJETADA POR MELKOR SOBRE O NORTE POIS MELKOR TORNARA-SE NEGRO COMO A NOITE DO VAZIO.”

“Now therefore the Valar were gathered upon Almaren, fearing no evil, and because of the light of Illuin they did not perceive the shadow in the north that was cast from afar by Melkor; for he was grown dark as the Night of the Void.”

Então, realmente, podemos admitir que a Noite do Vazio foi um fator desencadeador do Mal em Melkor. Mas, uma vez que Ungoliant seria uma personificação do Vazio, isso indicaria que o Vazio seria o Mal dotado de ser próprio, um contraponto dualista à existência de Ilúvatar?

O elucidamento dessa questão demanda uma explicação sobre dois conceitos sobre os quais as pessoas têm uma série de pensamentos equivocados, uma vez que o seu uso na linguagem corrente difere da acepção real da palavra.

A verdadeira acepção do conceito de dualismo: a paridade de forças

O tipo de pensamento religioso conhecido como dualista, em sua manifestação de dualismo antagônico, aquele que se pauta na contraposição de duas entidades equipotentes que correspondem aos princípios cósmicos do Bem e do Mal, teve sua origem na Pérsia. A sua sistematização se deveu à iniciativa do profeta Zaratustra, que, no Ocidente, é chamado Zoroastro , o responsável pela reforma da antiga religião do Irã que consistia num tipo de culto politeísta sacrificial. A reforma instaurada por Zoroastro implantou a crença num Deus único Ahura Masdah, ( chamado Ormuzd, o Senhor Sábio) que possuía um gêmeo maléfico Angre Mainyu (ou Ahriman).

Ambos eram os filhos de uma entidade que personificava o tempo, Zurvam Akarana , e o seu nascimento dava origem às forças motrizes contrárias que regiam o universo.

A Enciclopédia Simpozio de História da Filosofia que, no presente momento, está indisponível na Internet trazia um excelente sumário do Dualismo e de sua derivação, o Maniqueísmo. O material é tão bom que merece uma transcrição na íntegra. O que vem a seguir é a citação da parte referente ao Dualismo Zoroástrico;

Atualização dia 12 de Outubro de 2003

Transcrições da Enciclopédia Simpozio foram obtidas daqui

http://www.simpozio.ufsc.br/Port/1-enc/y-mega/mega-filosgeral/filosofia-religiao/7270y110.html

<<OCORREU DEPOIS A REFORMA DO PROFETA ZARATUSTRA (NASCIDO PELA VOLTA DE 650, A.C.), – QUE NO EXTERIOR SE FEZ CONHECER ATRAVÉS DA FORMA GREGA ZOROASTRÊS, DE ONDE ZOROASTRO, – COM TENDÊNCIA À SIMPLIFICAÇÃO RITUAL E À SISTEMATIZAÇÃO.

NO PERÍODO DOS GRANDES REIS AQUEMÊNIDAS (538-330 A.C.) O ZOROASTRISMO ESTEVE SOB A PROTEÇÃO OFICIAL E SE DIFUNDIU POR TODO O GRANDE IMPÉRIO CRIADO POR CIRO (+ 529 A.C.), CONQUISTADOR DE BABILÔNIA (538 A.C.), EGITO E ÁSIA MENOR, INCLUSIVE DA JÔNIA GREGA. CONSOLIDADO O IMPÉRIO SOB CAMBISES (529-522 A. C.) E DÁRIO I (521-486 A.C.), O ZOROASTRISMO INFLUENCIOU VASTAMENTE TODA A REGIÃO, INCLUSIVE SOBRE AO JUDAÍSMO RECENTE, E ATRAVÉS DESTE AO FUTURO CRISTIANISMO.
MAS NO CURSO DESTES MESMOS REIS AQUEMÊNIDAS, SOBRETUDO APÓS DÁRIO I (+ 486 A.C.) DERIVOU O ZOROASTRISMO PAULATINAMENTE PARA A FORMA DENOMINADA MASDEÍSMO (OUTROS ESCREVEM MASDEÍSMO), ), QUE ACENTUOU NOVAMENTE O RITUALISMO E COMPLEXIFICOU A ESCATOLOGIA.

ULTERIORMENTE OCORRERÃO FORMAS CONHECIDAS POR MITRAÍSMO, MANIQUEÍSMO, ALÉM DAS INFLUÊNCIAS SOBRE O ORFISMO E PITAGORISMO, ESTE COM EXTENSÃO ATÉ O SUL DA ITÁLIA.

A DOUTRINA FUNDAMENTAL DO ZOROASTRISMO É A DE UM DEUS ÚNICO – AHURA MASDAH, ( TAMBÉM CHAMADO ORMUZD) O SENHOR SÁBIO. ELE É O CRIADOR E O GOVERNADOR DO UNIVERSO.
MAS EM POSIÇÃO OPOSTA ESTÁ UM PRINCÍPIO MAU. – ANGRE MAINYU (OU AHRIMAN)

A RELIGIÃO PERSA É, PORTANTO, UM DUALISMO METAFÍSICO, NO QUAL O BEM E O MAL ESTÃO PERSONIFICADOS E EM LUTA ETERNA. O PRÍNCIPE DA LUZ DEVERÁ VENCER O PRÍNCIPE DAS TREVAS, AINDA QUE NÃO O CONSEGUINDO DESTRUIR.>>>

Na decisão desse conflito o homem exerce o seu papel combatendo a influência de Ahriman, o que reforçaria o poder de Ahura Mazda . Após a morte, o justo seria recompensado e aqueles que perseveraram no Mal seriam punidos.

O Zoroastrismo também foi o grande introdutor da Escatologia ( a Crença no Juízo Final) no Ocidente. No mitologia persa, o Juízo Final é chamado de Frashkart , a Renovação Final na Quarta Era do Mundo, cujo arauto é Saosyant, o Salvador do mito. A Frashkart e Saoysant aliás são contrapartes exatas de elementos da mitologia hindu : A Quarta era, Kali Yuga, e Kalki, o último Avatar de Vishnu, que purificará o Mal no mundo.

O Judaísmo, o Islamismo e, por conseguinte, o Cristianismo tiveram uma influência marcante da doutrina Dualista pregada por Zoroastro.

Agora o ponto focal onde, frequentemente, o senso comum é impreciso em analisar o conceito de dualismo está no aspecto de que não basta haver entidades que manifestam a dicotomia entre o bem e o mal , é necessário que uma delas seja considerado o Deus digno de veneração E que a outra, além de ser a epítome de tudo que é maligno, lhe seja também EQUIVALENTE. Deve haver uma equiparação entre o poder de ambas. Sob esse prisma, a mitologia de Tolkien, a despeito das aparências analisadas superficialmente, NUNCA PODERIA abrigar um verdadeiro dualismo antagônico.

Essa verdade pode ser inferida claramente desse trecho do Diálogo de Finrod e Andreth que faz parte do HOME 10, Morgoth`s Ring. Nele a mortal Andreth faz as seguintes afirmações com as quais Finrod concorda plenamente.

“COMO POSSO SÊ-LO, SENHOR? TODA SABEDORIA ESTÁ CONTRA ELES. QUEM É O ÚNICO, A QUEM CHAMAIS ERU? SE COLOCARMOS DE LADO OS HOMENS QUE SERVEM O INOMINÁVEL, COMO MUITOS O FAZEM NA TERRA-MÉDIA, AINDA ASSIM MUITOS HOMENS PERCEBEM O MUNDO APENAS COMO UMA GUERRA ENTRE A LUZ E A ESCURIDÃO EQUIPOTENTES. MAS DIREIS: NÃO, ISSO É MELKOR E MANWË; ERU ESTÁ ACIMA DELES. É ENTÃO ERU SOMENTE O MAIOR DOS VALAR, UM GRANDE DEUS ENTRE DEUSES, COMO A MAIORIA DOS HOMENS DIRÁ, MESMO ENTRE OS ATANI: UM REI QUE VIVE LONGE DE SEU REINO E DEIXA QUE PRÍNCIPES MENORES FAÇAM LÁ O QUE LHES APROUVER? NOVAMENTE DIZEIS: NÃO, ERU É ÚNICO, SOZINHO E SEM-PAR, E ELE FEZ EÄ, E ESTÁ ALÉM DELA; E OS VALAR SÃO MAIORES QUE NÓS, E CONTUDO NÃO MAIS PRÓXIMOS DE SUA MAJESTADE. NÃO É ASSIM?”

Na carta nº211 Tolkien ao analisar o conteúdo da Ainulindalë afirma que:

“NO MITO COSMOGÔNICO* É DITO QUE MANWË É “IRMÃO” DE MELKOR, OU SEJA QUE AMBOS ERAM COEVOS E EQUIPOTENTES NA MENTE DO CRIADOR. MELKOR SE TORNOU O REBELDE, E O “DIABOLOS” DESSAS ESTÓRIAS, AQUELE QUE DISPUTAVA O REINO DE ARDA COM MANWË.

( um mito cosmogônico é o que narra a origem do Universo, a Teogonia da Mitologia Grega e o Gênesis da Bíblia são mitos cosmogônicos)

IN THE COSMOGONIC MYTH MANWË IS SAID TO BE ‘BROTHER’ OF MELKOR, THAT IS THEY WERE COËVAL AND EQUIPOTENT IN THE MIND OF THE CREATOR. MELKOR BECAME THE REBEL, AND THE DIABOLOS OF THESE TALES, WHO DISPUTED THE KINGDOM OF ARDA WITH MANWË.>>>

É por essa razão, devido ao fato de que a supremacia de Ilúvatar é inconteste, estando ele acima do conflito entre Manwë e Melkor ( que, nesse aspecto, trazem influências de Ahura Mazda e Ahriman e do arcanjo Miguel em oposição a Satã), que Tolkien explica nessa outra carta ( nº 109) que :

“Mesmo o combate entre trevas e luz ( como ele o chama, não eu) é para mim apenas uma fase particular da história, um exemplo do seu padrão, talvez, mas não O Padrão;”

“Even the struggle between darkness and light (as he calls it, not me) is for me just a particular phase of history, one example of its pattern, perhaps, but not The Pattern”;

Outra palavra que corriqueiramente é empregada pelas pessoas fora da sua acepção em sentido estrito e é muito popular, sendo usada como uma das principais críticas à obra do Tolkien como um todo, é o famoso e infame Maniqueísmo.

O Maniqueísmo em sentido estrito

O Maniqueísmo na verdade foi uma seita que se originou do Dualismo Zoroástrico ( é tida como uma variação ocidental do Zoroastrismo tendo sido criada por Mani ou Maniqueu. ( Aqui em seguida vai a transcrição da Enciclopedia Simpozio:

O MANIQUEÍSMO VEIO DA PÉRSIA, COMO SEITA DE FUNDO PAGÃO, COM EMPRÉSTIMOS TOMADOS AO CRISTIANISMO. POR ISSO PÔDE SE ESTENDER PARA O OCIDENTE, ONDE ADQUIRIU FEIÇÕES DE HERESIA CRISTÃ. PROVOU COMO É POSSÍVEL UMA VASTA INTERAÇÃO ENTRE AS DOUTRINAS.
ESTE MOVIMENTO DUALISTA RECEBEU MESMO A SIMPATIA INICIAL DE AGOSTINHO DE HIPONA.
RECEBEU SEU NOME DE MANES (C. DE 215-276), DA PÉRSIA, E SEU MAIS DESTACADO PREGADOR. MANES ACREDITOU SER UM ILUMINADO, COMO COSTUMA ACONTECER COM OS VISIONÁRIOS FUNDADORES DE RELIGIÃO. COM VISTAS A RENOVAR A RELIGIÃO, PREGOU A PARTIR DO ANO 240 EM DIVERSAS REGIÕES DA PÉRSIA IRAQUE, SOB A PROTEÇÃO DO REI SAPOR I (241-272). MAS SOB O SUCESSOR BAHARAM (274-277) NUMA REAÇÃO DOS SACERDOTES DE ZOROASTRO, FOI MORTO E ESFOLADO, VINDO A SER EMPALHADO E ASSIM PENDURADO ÀS PORTAS DA CAPITAL.
NÃO OBSTANTE À REPRESSÃO DOS IMPERADORES CRISTÃOS, O MANIQUEÍSMO CONSEGUIU DESENVOLVER-SE POR MAIS DE UM SÉCULO, INFLUENCIANDO AS MENTES.
NA IDADE MÉDIA REFLORIU NA BULGÁRIA E NO OCIDENTE COM OS CÁTAROS (ISTO É, OS PUROS) E ALBIGENSES, DE NOVO REPRIMIDOS VIOLENTAMENTE PELAS CRUZADAS CRISTÃS.
ALIÁS, FOI A ESTE PROPÓSITO QUE NASCEU A INQUISIÇÃO, QUE LEVOU À FOGUEIRA NÃO SÓ AOS NOVOS MANIQUEUS, MAS TAMBÉM A MUITOS OUTROS ATÉ O PRINCÍPIO DOS TEMPOS MODERNOS.

ENSINAVA O MANIQUEÍSMO A EXISTÊNCIA DE DOIS PRINCÍPIOS ETERNOS, O DA LUZ E O DAS TREVAS, EM LUTA ENTRE SI. AS EMANAÇÕES DE AMBOS SE MESCLAM NO HOMEM. PARA SEPARAR AS MESCLAS FORAM ENVIADOS OS PROFETAS, JESUS E MANES, EM CORPO DE MERA APARÊNCIA (A MATÉRIA NÃO A PODERIAM ASSUMIR, POR SER MÁ).
A PURIFICAÇÃO DOS INDIVÍDUOS, QUANDO JÁ EM ESTADO SUPERIOR (OS ELEITOS) SE FARIA PELA GNOSIS (= SABER) E ABSTENÇÃO DO MATRIMÔNIO (CELIBATO), DA CARNE, DO VINHO, BEM COMO DA ABSTENÇÃO DOS TRABALHOS MANUAIS. DE MANEIRA MAIS SIMPLES, A PURIFICAÇÃO DOS INFERIORES SE FARIA PELO CUMPRIMENTO DOS DEZ MANDAMENTOS.

A base do Maniqueísmo residia na noção de que o Homem e a Matéria tinham uma parte de sua natureza contaminada pelo princípio metafísico do Mal, que esse Mal lhe era inerente, e que era necessário purgá-lo através da abstinência , de práticas ascéticas que libertassem a essência benigna que lhe estava mesclada.

O Maniqueísmo, então, se caracterizava por uma radicalização do Dualismo em que a própria vida terrena seria um tipo de mal, qualquer prática que exaltasse a fruição dos prazeres materiais seria uma porta aberta para que o homem imergisse na contaminação disseminada pela essência do Mal, que seria Absoluto e completamente contrastante com o princípio do Bem. O espírito estaria encadeado com a matéria, e ambos estariam em eterno conflito um com o outro. O simples ato de viver com um corpo físico seria um tipo de confinamento que nos apartaria do Bem.

É lógico que, a exemplo do que aconteceu com o Dualismo de Zoroastro ,Tolkien também incorporou algumas idéias do Maniqueísmo. Os Valar e Maiar se manifestam no mundo visível em fánar que nada mais são além de “corpos de mera aparência”. Entretanto, eles assim o fazem devido à sua natureza celestial, por que esse é o cumprimento do seu ser, e não porque a matéria é corrupta. Melian, quando uniu-se a Thingol, e se tornou capaz de gerar Lúthien Tinúviel, não se corrompeu, e o seu ato enobreceu a estirpe dos Filhos de Ilúvatar, permitindo que entre eles se alojasse uma porção da essência dos Ainur.

É também verdade, no entanto, que a matéria no Tolkien não está isenta de Mal porque Melkor, em sua busca por controle sobre Arda, realizou o que nenhum dos outros Valar, como Poderes do Mundo, jamais conceberia. Ele fundiu o seu ser com a matéria que compõe o nosso planeta. No texto de HOME 10, Myths Tranformed, Tolkien explica que:

“MELKOR “ENCARNOU-SE” (COMO MORGOTH) PERMANENTEMENTE. ELE FEZ ISSO PARA CONTROLAR O HROA, A “CARNE” OU MATÉRIA FÍSICA , DE ARDA. ELE PROCUROU SE IDENTIFICAR COM ELA. UM PROCEDIMENTO MAIOR E MAIS PERIGOSO, EMBORA DE FEIÇÃO SIMILAR ÀS OPERAÇÕES DE SAURON COM OS ANÉIS. ASSIM, FORA DO REINO ABENÇOADO, TODA “MATÉRIA” TENDIA A POSSUIR UM “INGREDIENTE MELKOR”, E AQUELES QUE TINHAM CORPOS, NUTRIDOS PELO HRÖA DE ARDA, POSSUÍAM, COMO ELA PRÓPRIA UMA TENDÊNCIA, PEQUENA OU GRANDE, DE SERVIREM AOS PROPÓSITOS DE MELKOR: NENHUM DELES ERA COMPLETAMENTE LIVRE DELE EM SUAS FORMAS ENCARNADAS, E SEUS CORPOS TINHAM UM EFEITO SOBRE SEUS ESPÍRITOS”.

Entretanto, é, novamente, o próprio Tolkien quem esclarece em uma nota do Diálogo de Finrod e Andreth ( nota nº 10

A “MATÉRIA” NÃO É TIDA COMO MALIGNA OU OPOSTA AO ESPÍRITO. A MATÉRIA ERA EM SUA ORIGEM INTEIRAMENTE BOA. ELA PERMACECEU UMA “CRIATURA DE ERU” E ERA AINDA EM GRANDE PARTE BENIGNA, E DE FATO AUTO-CURATIVA, QUANDO NÃO SOFRIA INTERFERÊNCIAS: OU SEJA QUANDO O MAL LATENTE INTRODUZIDO POR MELKOR NÃO FOSSE DELIBERADAMENTE DESPERTADO E USADO POR MENTES MALIGNAS”

‘MATTER’ IS NOT REGARDED AS EVIL OR OPPOSED TO ‘SPIRIT’. MATTER WAS WHOLLY GOOD IN ORIGIN. IT REMAINED A ‘CREATURE OF ERU’ AND STILL LARGELY GOOD, AND INDEED SELF-HEALING, WHEN NOT INTERFERED WITH: THAT IS, WHEN THE LATENT EVIL INTRUDED BY MELKOR WAS NOT DELIBERATELY ROUSED AND USED BY EVIL MINDS.

O ser das criaturas de Arda no Tolkien é um todo que integra corpo e alma , hroä e fëa, a separação do corpo e do espírito, a “morte” entendida como tal, é resultado da corrupção de Melkor; e, embora a matéria seja um veículo para a propagação da vontade maligna de Morgoth, ela ,em si, não é má, ao contrário do que ensinava o Maniqueísmo.

Além do mais, Tolkien percebeu e destacou em sua obra o lapso principal da teoria maniqueísta. Devido à sua tendência de considerar a matéria como algo corrupto, levadas ao extremo, as premissas do Maniqueísmo acabavam por sugerir que o Demônio e não Deus seria o criador do mundo em que vivemos, desembocando numa linha de pensamento análoga ao do Budismo, onde a realidade física é uma ilusão manipulada por Mara , o Senhor das Trevas ( na verdade uma versão maligna do Deus Mara do Hinduísmo).

Atualização, 12 de outubro de 2003- essa, aliás, é a concepção exata da versão gnóstica do Cristianismo onde Yaldabaoth, o Demiurgo, é o carcereiro da humanidade, o Arquiteto da nossa realidade –simulacro, referência presente em Matrix, por exemplo.

Ensaio ótimo sobre o tema aqui

http://www.divinevirus.com/matrix.html

Essas noções acima descritas são perfeitamente demonstradas por esse trecho do Diálogo de Finrod e Andreth ( que está disponível na Valinor em tradução feita pelo Inrahil e cuja leitura é ALTAMENTE RECOMENDÁVEL pra quem quiser realmente aproveitar esse ensaio)

Athrabeth Finrod ah Andreth

O trecho relevante é esse destacado abaixo

“NÃO, NÃO ACREDITO NISSO”, DISSE ANDRETH. “POIS ISSO SERIA DESPREZO PELO CORPO, E É UM PENSAMENTO DA ESCURIDÃO NÃO-NATURAL EM QUALQUER DOS ENCARNADOS, CUJA VIDA INCORRUPTA É UMA UNIÃO DE AMOR MÚTUO. MAS O CORPO NÃO É UMA ESTALAGEM QUE MANTÉM UM VIAJANTE AQUECIDO POR UMA NOITE, ANTES QUE ELE SIGA SEU CAMINHO, E DEPOIS RECEBE OUTRO. É UMA CASA FEITA PARA UM HABITANTE APENAS, E DE FATO NÃO APENAS CASA MAS TAMBÉM VESTIMENTA; E NÃO ESTÁ CLARO PARA MIM SE DEVERÍAMOS NESTE CASO DIZER QUE A VESTIMENTA É ADEQUADA AO USUÁRIO E NÃO QUE O USUÁRIO É ADEQUADO À VESTIMENTA.

SUSTENTO ENTÃO QUE NÃO SE DEVE PENSAR QUE A SEPARAÇÃO DESTES DOIS PODERIA SER DE ACORDO COM A VERDADEIRA NATUREZA DOS HOMENS. POIS SE FOSSE “NATURAL” PARA O CORPO SER ABANDONADO E MORRER, MAS “NATURAL” PARA O FËA CONTINUAR A VIVER, ENTÃO DE FATO HAVERIA UMA DESARMONIA NO HOMEM, E SUAS PARTES NÃO ESTARIAM UNIDAS POR AMOR. SEU CORPO SERIA NA MELHOR DAS HIPÓTESES UM IMPEDIMENTO, OU UMA CADEIA. DE FATO UMA IMPOSIÇÃO, E NÃO UMA DÁDIVA. MAS HÁ ALGUÉM QUE IMPÕE, E QUE CONCEBE CADEIAS, E SE TAL FOSSE A NOSSA NATUREZA NO PRINCÍPIO, ENTÃO DEVERÍAMOS DERIVÁ-LA DELE – MAS ISTO, DIZEIS, NÃO SE DEVE SER FALADO.

AI DE NÓS! LÁ FORA NA ESCURIDÃO OS HOMENS O DIZEM MESMO ASSIM, MAS NÃO OS ATANI COMO OS CONHECEIS, NÃO AGORA. SUSTENTO QUE NISTO SOMOS COMO VÓS SOIS, VERDADEIRAMENTE ENCARNADOS, E QUE NÃO VIVEMOS EM NOSSO SER CORRETO E EM SUA PLENITUDE SALVO NUMA UNIÃO DE AMOR E PAZ ENTRE A CASA E O HABITANTE. DE ONDE A MORTE, QUE OS DIVIDE, É UM DESASTRE PARA AMBOS”.

Vemos, então, que, em suas conceituações strictu sensu, a mitologia de Tolkien não é nem maniqueísta nem dualista na vertente seguida por Zoroastro. O Maniqueísmo e o Dualismo são idéias que o Tolkien adaptou e anexou com restrições ao seu esquema teológico, sem se comprometer com nenhuma delas.
Isso nos leva ao nosso próximo ponto.

No link abaixo o leitor vai encontrar um texto muito interessante em Português sobre o Maniqueísmo.

http://www.xr.pro.br/Ensaios/MANIQUEISMO.html

Maniqueísmo lato sensu ou impróprio- razões da sua inexistência nos mitos de Tolkien.

Agora é necessário entender que, quando as pessoas dizem que a obra de Tolkien é maniqueísta, elas empregam o termo, simplesmente, como uma maneira de dizer que o Mal e o Bem estão polarizados no Tolkien e que as caracterizações dos personagens refletem essa dicotomia ( esquecendo-se de ou desconhecendo personagens como Fëanor e seus filhos, Gollum, Maeglin, Húrin e tantos outros). O que essas mesmas pessoas desconhecem é que NEM SEQUER desse modo Tolkien pode ser chamado de maniqueísta.

Chegamos, enfim, ao ponto onde as pessoas em geral cometem grandes erros de julgamento em se tratando de Tolkien. Pelo fato do autor ter incorporado elementos de correntes de pensamento dualistas e maniqueístas, muitos tendem a tomar a parte pelo todo e ignoram determinados pormenores de suma importância na mitologia de Tolkien que demonstram que o Mal e o Bem não são princípios antitéticos na sua ambientação.

Que pormenores são esses?

1) Bom, nos tópicos anteriores, ficou demonstrado que qualquer doutrina que pregue a contraposição antinômica entre o Bem e o Mal vê esse último como algo inteiramente corrupto que deve ser expurgado a todo custo. É com essa finalidade de separar o joio do trigo que as religiões, em geral, pregam sobre a existência de um tipo de Inferno, ao menos como uma espécie de estância purgatorial., isso no caso das correntes mais brandas que acham que o Mal pode ser redimido de alguma forma. Em oposição a esse Inferno, existe sempre uma espécie qualquer de Paraíso . ( Valhalla e o Mundo de Hel na mitologia nórdica, os Campos Elíseos e o Tártaro e na Mitologia Grega são alguns dos equivalentes nos mitos pagãos)

Pois bem : a mitologia de Tolkien carece de um Inferno no sentido Judaico-Cristão, ou mesmo de qualquer coisa correspondente encontrada no Zoroastrismo* ou em outra mitologia Indo-Européia. E, de maneira similar, ela também prescinde de qualquer conceito análogo ao Céu, muito embora Aman, o Reino Abençoado, possa ser considerado como um correspondente do Paraíso Terrestre.

*( no qual em Frashkart “OS VIVOS E OS MORTOS SUPORTARÃO UMA TORRENTE INCANDESCENTE QUE OS PURIFICARÁ DOS SEUS PECADOS E LHES PERMITIRÁ REGRESSAR GOZOSAMENTE JUNTO A ORMUZD. NO ENTANTO, PARA OS JUSTOS A TORRENTE SERÁ COMO LEITE MORNO”) **

**(CITAÇÃO EXTRAÍDA DO ATLAS DO EXTRAORDINÁRIO, MITOS E LENDAS II, VERBETE SAOYSANT, EDICIONES DEL PRADO)

Na mitologia tolkieniana, o mais próximo que se tem de um Purgatório são as Mansões de Mandos, onde os espíritos de Elfos residem enquanto expiam suas faltas e aguardam o momento em que será permitido que eles reencarnem. Mas essa expiação é feita através de reflexão e pelo próprio decurso do tempo, sem a infligência de castigos suplementares. E os espíritos élficos , inclusive, contam com a faculdade de não atenderem à convocação para se submeterem ao juízo de Mandos ( o correspondente ao Hades grego, o vala que preside o julgamento dos mortos).

A grande fortaleza de Melkor , Utumno ( e /ou Angband) , poderia até corresponder àquilo que a iconografia judaico-cristã concebia como um Inferno, mas Utumno era um lugar existente no nosso mundo ( como as Mansões de Mandos também o eram, aliás) e não um plano metafísico reservado para a punição dos pecadores e/ou sua expiação.

Já os espíritos dos Homens residem durante um curto período de tempo em Mandos, mas, depois de lá, partem para cumprir o destino que lhes está reservado por Eru Ilúvatar, cuja natureza somente o Único sabe ao certo.

2) Outro elemento importante correlacionado com o primeiro: a morte no Tolkien não é uma punição por alguma transgressão passada, mas, sim, uma dádiva que resulta da mercê de Eru Ilúvatar. Era após a morte que o juízo divino poderia prescrever os respectivos quinhões de recompensas e punições a justos a pecadores. No Tolkien, inexiste essa concepção abraçada pelo Dualismo e demais crenças por ele influenciadas.

3) A canção de Ilúvatar, em seu terceiro tema, incorporou a discórdia de Melkor e tornou-a “tributária de sua glória”. O Mal no Tolkien é ASSIMILADO, NÃO DESTRUÍDO, e através dele e /ou por causa dele, muitas coisas foram integradas no plano original de Ilúvatar que, do contrário, não estariam lá. Que coisas?
Bom, só para começar, os Homens e os Elfos foram introduzidos por Ilúvatar no terceiro tema que assimilou a dissonância gerada por Melkor, o que implica em dizer que, se Melkor não tivesse se rebelado., em tese, os Filhos de Ilúvatar não existiriam.

4) É sugerido com frequência nos livros de Tolkien que a Escuridão e os seres que são dela partidários têm uma dependência de luz e de que dela carecem mesmo odiando -a. Mas qual é a natureza desse ódio e desse sentimento de privação , de ausência ? Ele é de alguma forma responsável pelos atos praticados pelo Mal?

Vamos dar alguns exemplos que fornecem a chave para se entender melhor esse dilema (especialmente o último deles).

No Senhor dos Anéis, quando os Hobbits foram capturados pelo espectro das colinas tumulares, nas cercanias da Floresta Velha , Tolkien disse que:

INESPERADAMENTE COMEÇOU UMA CANÇÃO: MURMÚRIO FRIO QUE SE ELEVAVA E BAIXAVA. ERA UMA VOZ REMOTA E DESMESURADAMENTE LÚGUBRE, ÀS VEZES ESTRIDENTE NO AR, ÀS VEZES UM GEMIDO BAIXO NO CHÃO. A TORRENTE DISFORME DE SONS TRISTES, HORRÍVEIS TOMAVA FORMATO, CHUSMAS DE PALAVRAS, VEZ POR OUTRA. PALAVRAS DURAS, SOMBRIAS, FRIAS, DESUMANAS E TRISTES. A NOITE INVECTIVAVA CONTRA A MANHÃ QUE NÃO TINHA NUNCA, E O FRIO TECIA MALDIÇÕES CONTRA O CALOR PELO QUAL ANSIAVA.

SUDDENLY A SONG BEGAN: A COLD MURMUR, RISING AND FALLING. THE VOICE SEEMED FAR AWAY AND IMMEASURABLY DREARY, SOMETIMES HIGH IN THE AIR AND THIN, SOMETIMES LIKE A LOW MOAN FROM THE GROUND. OUT OF THE FORMLESS STREAM OF SAD BUT HORRIBLE SOUNDS, STRINGS OF WORDS WOULD NOW AND AGAIN SHAPE THEMSELVES: GRIM, HARD, COLD WORDS, HEARTLESS AND MISERABLE. THE NIGHT WAS RAILING AGAINST THE MORNING OF WHICH IT WAS BEREAVED, AND THE COLD WAS CURSING THE WARMTH FOR WHICH IT HUNGERED

No Silmarillion quando se fala de Ungoliant: ( O Escurecimento de Valinor)

MAS ELA TRAÍRA O SEU SENHOR DESEJANDO SER SENHORA DA SUA PRÓPRIA GULA, TOMANDO PARA SI TODAS AS COISAS PARA ALIMENTAR O SEU VAZIO; E FUGIRA PARA O SUL, ESCAPANDO AOS ATAQUES DOS VALAR E AOS CAÇADORES DE OROMË, POIS A VIGILÂNCIA DESTES CONCENTRARA-SE NO NORTE, E O SUL FICARA LONGO TEMPO IGNORADO. DAÍ ARRASTARA-SE NA DIREÇÃO DA LUZ DO REINO ABENÇOADO, POIS TINHA FOME DE LUZ E AO MESMO TEMPO ODIAVA-A.

BUT SHE HAD DISOWNED HER MASTER, DESIRING TO BE MISTRESS OF HER OWN LUST, TAKING ALL THINGS TO HERSELF TO FEED HER EMPTINESS. TO THE SOUTH SHE HAD FLED, AND SO HAD ESCAPED THE ASSAULTS OF THE VALAR AND THE HUNTERS OF OROME, FOR THEIR VIGILANCE HAD EVER BEEN TO THE NORTH, AND THE SOUTH WAS LONG UNHEEDED. THENCE SHE HAD CREPT TOWARDS THE LIGHT OF THE BLESSED REALM; FOR SHE HUNGERED FOR LIGHT AND HATED IT.

Está se descortinando um padrão, não é?

Na Valaquenta, se afirma, também, que Melkor

“COMEÇOU PELO DESEJO DA LUZ MAS NÃO A PODENDO POSSUIR SÓ PARA SI DESCEU DESCEU ATRAVÉS DE FOGO E IRA NUM GRANDE INCÊNDIO, À ESCURIDÃO”.

HE BEGAN WITH THE DESIRE OF LIGHT, BUT WHEN HE COULD NOT POSSESS IT FOR HIMSELF ALONE, HE DESCENDED THROUGH FIRE AND WRATH INTO A GREAT BURNING, DOWN INTO DARKNESS.

Como esse desejo pela Luz pode ser entendido?

Robert Foster novamente ajuda a esclarecer a questão. Luz em maíscula, é claro, deve ser o oposto de Escuridão ou Trevas ( Darkness) quando escrito com letra maíscula; então, nas palavras, do próprio Foster,

LUZ É : “O OPOSTO DE ESCURIDÃO OU SOMBRA, A PRESENÇA DE ILÚVATAR, A ACEITAÇÃO DE SUA VONTADE E DA BELEZA DE SUA CRIAÇÃO ESPECIALMENTE DAS DUAS ÁRVORES.”

Mas por que as Trevas iriam depender da Luz ? Qual seria a correlação entre essa dependência e a corrupção de Melkor?

A referência que, no meu entendimento, contém a grande pista para esclarecer essa indagação está na Valaquenta na parte que fala de Varda, Elbereth Gilthoniel, a esposa de Manwë.

COM MANWË HABITA VARDA, SENHORA DAS ESTRELAS, QUE CONHECE TODAS AS REGIÕES DE EÄ. A SUA BELEZA É TÃO GRANDE QUE NÃO PODE SER DESCRITA EM PALAVRAS DOS HOMENS OU DOS ELFOS, POIS A LUZ DE ILÚVATAR AINDA VIVE NO SEU ROSTO. NA LUZ ESTÁ O SEU PODER E A SUA VENTURA. DAS PROFUNDEZAS DE EÄ ACUDIU EM SOCORRO DE MANWË, POIS A MELKOR CONHECIA-O ANTES DA COMPOSIÇÃO DA MÚSICA E REPELIA-O E ElE A TEMIA E ODIAVA MAIS DO QUE TODOS OS OUTROS FEITOS POR ERU.

WITH MANWË DWELLS VARDA, LADY OF THE STARS, WHO KNOWS ALL THE REGIONS OF EÄ. TOO GREAT IS HER BEAUTY TO BE DECLARED IN THE WORDS OF MEN OR OF ELVES; FOR THE LIGHT OF ILÚVATAR LIVES STILL IN HER FACE. IN LIGHT IS HER POWER AND HER JOY. OUT OF THE DEEPS OF EÄ SHE CAME TO THE AID OF MANWË; FOR MELKOR SHE KNEW FROM BEFORE THE MAKING OF THE MUSIC AND REJECTED HIM, AND HE HATED HER, AND FEARED HER MORE THAN ALL OTHERS WHOM ERU MADE.

Esse trecho sugere claramente que não era só a soberania sobre o reino de Arda o que Melkor invejava em Manwë. Ao que parece, ele cobiçava, também, Varda, mas foi rejeitado por ela, e como, frequentemente, o amor não correspondido se converte em um ódio proporcionalmente grande, Melkor odiava Varda mais do que todos os seres criados por Ilúvatar.


E, entretanto, qual era a chave desse desejo por Varda? O próprio trecho elucida isso quando diz que a beleza de Varda não pode ser descrita porque “a luz de Ilúvatar ainda vive no seu rosto”. O que Melkor almeja em Varda, o que ele deseja, e ,ao mesmo tempo, odeia, porque não pode ter só para si, é a Luz de Ilúvatar da qual ela é portadora.

Essa relação conturbada entre Melkor e a Luz de Ilúvatar está implícita na sua busca pelo Fogo Secreto ( a causa de suas andanças pelo Vazio) e está totalmente explícita na história tardia em que Tolkien reformulou o Mito do Sol e da Lua, uma versão incluída no Myths Tranformed ( Mitos Transformados ), que faz parte do HOME 10.

Nessa narrativa, Varda foi especialmente agraciada por Ilúvatar com um tipo especial de Luz com a qual ela consagrou o nosso Sol, que seria, nessa concepção, o centro do nosso sistema solar, e este, por sua vez, seria denominado de Arda, o reino regido pelos Valar “terrestres”. Nessa versão, a Terra, o nosso planeta, seria somente a parte sólida, habitável, de Arda, chamada Imbar.

Mas o que acontece é que, uma vez criado o Sol que iluminaria a Terra, Varda designou um espírito maia poderoso como sua guardiã, a versão posterior de Arien, que aqui é chamada de Arië, e deu a ela a Luz mística ( um dos Milagres de Ilúvatar que não constam da Ainulindalë). Melkor que, entretanto, cobiçava toda a luz para si ( “pois as luzes menores se tornam trevas quando estão perante a maior”) e que havia assumido uma forma ofuscantemente luminosa veio em busca de Arië e lhe fez a seguinte proposta:

“EU ESCOLHI A TI, E TU SERÁS MINHA ESPOSA, ASSIM COMO VARDA É PARA MANWË, E JUNTOS NÓS DETEREMOS TODO O ESPLENDOR E SOBERANIA. ENTÃO O GOVERNO DE ARDA SERÁ MEU DE FATO COMO O É DE DIREITO, E TU COMPARTILHARÁS DE MINHA GLÓRIA”

Mas Arië rejeitou Melkor e zombou dele, avisando-o de que havia no Sol uma chama que não lhe seria subserviente, e que, se ele a tocasse, ela o queimaria e o enegreceria, muito embora a potência dele pudesse lograr a sua destruição.

Ignorando o aviso, Melkor replicou , gritando:

“-A DÁDIVA QUE É RECUSADA EU ARREBATO”.E ele “violentou” Arië, “TENTANDO HUMILHA-LÁ E TOMAR OS SEUS PODERES PARA SI”. Depois disso, angustiada e colérica, Arië abandonou Arda e o sol ficou privado da luz de Varda e ficou conspurcado pelo assalto de Melkor.

Todas essas referências demonstram que a relação entre a Luz e as Trevas é bem diferente da que é visualizada no “maniqueísmo” pois aqui, não só o Mal tem um papel a ser desempenhado, como ele, também, depende da Luz, anseia por ela, e por isso mesmo, a odeia.

A Noite Primordial como Manifestação do Caos.

E o que essa discussão tem a ver com Ungoliant? Recapitulando, Ungoliant segundo a versão que me parece mais correta é um Espírito do Vazio, uma encarnação da Noite primordial que é o Vazio não criado, privado da Luz de Ilúvatar ,a própria “Alma” das Trevas.

Mas essas Trevas do Vazio são a manifestação suprema do Mal do qual todo o resto derivou? A resposta a princípio é sim. Mas é importante salientar de que o Mal do qual estamos tratando aqui não é o Mal metafísico, absoluto do Maniqueísmo, nem sequer uma personificação dele, como era o caso de Ahriman.

Santo Agostinho definiu que o Mal é desprovido de dimensão ontológica, ou seja , ele não possui ser próprio, nada mais é que a privação de Bem , assim como as trevas são a ausência da luz.

No Silmarillion, quando Tolkien descreve os efeitos da Antiluz de Ungoliant, ele parece dialogar com essa doutrina para, em seguida, descartá-la

A LUZ APAGOU-SE MAS A ESCURIDÃO QUE SE SEGUIU FOI MAIS DO QUE PERDA DE LUZ. NESSA HORA FEZ-SE UMA ESCURIDÃO QUE PARECIA NÃO A FALTA DE QUALQUER COISA, MAS SIM UMA COISA COM SER PRÓPRIO, POIS ERA REALMENTE FEITA DE MALIGNIDADE, A PARTIR DA LUZ, E TINHA A FACULDADE DE TRASPASSAR OS OLHOS E ENTRAR NO CORAÇÃO E NA MENTE E ESTRANGULAR A PRÓPRIA VONTADE.

THE LIGHT FAILED; BUT THE DARKNESS THAT FOLLOWED WAS MORE THAN LOSS OF LIGHT. IN THAT HOUR WAS MADE THE DARK WHICH SEEMS NOT LACK BUT A THING WITH BEING OF ITS OWN: FOR IT WAS INDEED MADE BY MALICE OUT OF LIGHT, AND IT HAD THE POWER TO PIERCE THE EYE, AND TO ENTER HEART AND MIND, AND STRANGLE THE VERY WILL.

Mas é interessante então, que, em suas cartas, Tolkien insiste que não há o Mal absoluto em sua mitologia, que tal coisa seria o Nada.

<<< EM MINHA ESTÓRIA EU NÃO TRATO DO MAL ABSOLUTO. EU NÃO ACHO QUE HAJA TAL COISA, UMA VEZ QUE ELA SERIA NULA. EU NÃO PENSO DE MODO ALGUM QUE ALGUM “SER RACIONAL” SEJA INTEIRAMENTE MAU. >>> ( carta nº183)

<<< IN MY STORY I DO NOT DEAL IN ABSOLUTE EVIL. I DO NOT THINK THERE IS SUCH A THING, SINCE THAT IS ZERO. I`DO NOT THINK THAT AT ANY RATE ANY ‘RATIONAL BEING’ IS WHOLLY EVIL. >>>

Então aqui nós ficamos num aparente impasse. Como combinar essas duas afirmações aparentemente tão díspares?

O que acontece é que Tolkien sabia que o Dualismo havia sido a grande influência por detrás da concepção judaico-cristã do Mal, que a havia assimilado com a quebra da equipotência entre os princípios do Mal e do Bem. No Dualismo , Ormuzd e Ahriman eram gêmeos, enquanto que no mito Judaico -Cristão, Satã era um ser criado que havia se rebelado contra Deus. Como já foi dito antes, o conflito do Dualismo é refletido na inimizade entre Manwë e Melkor ,enquanto a relação entre Deus e o Diabo é espelhada pela oposição entre Eru Ilúvatar e Melkor.

Mas Tolkien, como um estudioso de mitologia comparada, sabia que o próprio Dualismo remontava as suas raízes não na contraposição antitética entre o Bem e o Mal. Originalmente, o conflito que as entidades patriarcais, os deuses solares, enfrentavam não era contra uma manifestação do Mal propriamente dita, mas, sim, contra uma personificação do Caos primordial.

Essa luta entre a Ordem e o Caos reflete-se em praticamente todas as mitologias do mundo. Na Grécia, o Caos foi o progenitor de toda a vida e ele, frequentemente, gerava entidades sombrias que se contrapunham aos Deuses do Olimpo. Nos países Nórdicos, o Caos era chamado Ginungagap e seu filho primogênito era o gigante do Gelo, Ymir, que foi morto por Odin e seus irmãos. Com os despojos de seu corpo os primeiros Deuses forjaram o universo tal como o conhecemos.

Destino similar teve a Deusa-Dragão da mitologia sumério-babilônica, a célebre Tiamat ( imortalizada pela sua contraparte dos RPGs e do desenho Caverna do Dragão). Um de seus descendentes, Marduk, filho de Ea, o deus das águas, que se tornaria o Deus supremo do panteão babilônico, também usou o seu corpo como matéria prima para criar o cosmo.


E acontece que, no mito Judaico-Cristão, há uma entidade, mencionada pouquíssimas vezes, que é o correspondente semita da deusa Tiamat. No Velho Testamento ( Isaías, cap 51, versículos 9 a 10 , o Salmo nº 89 versículos 9 e 10, O Livro de Jó cap 7, versículo 12 ( referência ao Mar e ao “Dragão) , cap 9,v. 13)) essa entidade que é uma manifestação do caos, das trevas e da ausência de Deus é chamada Raab ( em Inglês Rahab).

O link abaixo conduz a um excelente texto ( em Inglês) que analisa a existência do Caos como a matéria prima para a criação do Mundo na Bíblia

http://www.cresourcei.org/bibsgen3.html

Atualização 23/12/2003 novo endereço

http://www.cresourcei.org/biblestudy/bbgen3.html

É desse texto que eu extraí o trecho traduzido abaixo

“O ESCRITOR AQUI USA DOIS OUTROS TERMOS MARCADAMENTE SIMBÓLICOS PARA FOCALIZAR A SUA MENSAGEM. HÁ MUITAS PASSAGENS DO VELHO E NOVO TESTAMENTOS ONDE TREVAS SÃO UMA METÁFORA PARA A AUSÊNCIA DE DEUS, ASSIM COMO A LUZ É UM SÍMBOLO DA SUA PRESENÇA. AQUI, O ELO ENTRE O CONCEITO DE CAOS COM A IMAGEM DE TREVAS É UMA METÁFORA PARA A AUSÊNCIA DE DEUS. OU, ANALISANDO-SE POR UM OUTRO ÂNGULO, O QUAL É PROVAVELMENTE, MAIS PRÓXIMO DO QUAL O ESCRITOR QUERIA DIZER, SEM DEUS E SUA PRESENÇA ATIVA NO MUNDO HÁ APENAS ESCURIDÃO, DESORDEM E CAOS. ISSO FORNECE UM PANO DE FUNDO PARA A ATIVIDADE CRIATIVA DE DEUS.

A SEGUNDA METÁFORA É O TERMO PROFUNDEZAS. ALGUNS TENTARAM FAZER UMA CONEXÃO LINGUÍSTICA ENTRE ESSA PALAVRA EM HEBRAICO ( TEHOM) E O DRAGÃO DO CAOS NA MITOLOGIA BABILÔNICA, TIAMAT. EMBORA HAJA ALGUMAS SIMILARIDADES, ELAS NÃO SÃO SUFICIENTES PARA ESTABELECER UMA VINCULAÇÃO LINGUÍSTICA DIRETA. ENTRETANTO, PARECE ÓBVIO ATRAVÉS DE VÁRIAS OUTRAS PASSAGENS, QUE OS ISRAELITAS ADOTARAM A IMAGEM DA CAÓTICA ÁGUA PRIMORDIAL DA CULTURA BABILÔNICA PARA REPRESENTAR A AMEAÇA DA DESORDEM E DO CAOS NO MUNDO. ESSA ÁGUA CAÓTICA DESCONTROLADA É, FREQUENTEMENTE, PERSONIFICADA COMO UM DRAGÃO OU COMO UM MONSTRO MARINHO NAS ESCRITURAS. AS PROFUNDEZAS SÃO UMA ALUSÃO A ESSA INDÔMITA ÁGUA DO CAOS. É ESSE MESMO TERMO QUE É USADO NA HISTÓRIA DE NOÉ ONDE A DESCONTROLADA ÁGUA DAS PROFUNDEZAS É LIBERADA NO MUNDO COMO UMA CONSEQUÊNCIA DO PECADO ( GEN 6: 11).

HÁ PASSAGENS DEMAIS NAS QUAIS ESSA METÁFORA OCORRE PARA SEREM EXAMINADAS EM DETALHE. BASTA DIZER QUE A IDÉIA DE ÁGUA COMO UMA AMEAÇA PARA O MUNDO, COMO UMA EVIDÊNCIA DO JULGAMENTO DE DEUS, É UM TEMA CONSTANTE NA ESCRITURAS. CONSEQUENTEMENTE, A CONQUISTA OU O AMANSAR DA ÁGUA É UMA METÁFORA COMUM PARA DESCREVER AS TRANFORMADORAS E CRIATIVAS AÇÕES DE DEUS NO MUNDO, ESPECIALMENTE EM JUNÇÕES CRUCIAIS DA HISTÓRIA HUMANA. NO MEIO DO LIVRO DE ISAÍAS, EM UMA SEÇÃO QUE ESTÁ ENCORAJANDO UMA NAÇÃO DERROTADA COM A PROMESSA DE UMA NOVA AÇÃO DE DEUS PARA POR FIM AO SEU EXÍLIO, O ESCRITOR RECORRE ÀS VELHAS METÁFORAS DE DEUS DERROTANDO O DRAGÃO DO CAOS ( AQUI CHAMADO RAAB)

A REFERÊNCIA IMEDIATA É PARA O ÊXODO DO EGITO E A TRAVESSIA DO MAR VERMELHO, MAS A LINGUAGEM ESTILIZADA E METAFÓRICA É A IMAGEM DO DRAGÃO DO CAOS ( ISAÍAS 51 9-10)

9 DESPERTA, DESPERTA, REVESTE-TE DE FORÇA, BRAÇO DO SENHOR!
DESPERTA COMO NOS DIAS DE OUTRORA,
NO TEMPO DAS GERAÇÕES ANTIGAS!
ACASO NÃO FOSTE TU QUE MASSACRASTE RAAB,
VARANDO DE LADO A LADO O DRAGÃO?
10 NÃO FOSTE TU QUE SECASTE O MAR,
AS ÁGUAS DO VASTO OCEANO,
TRANSFORMANDO EM ESTRADA AS PROFUNDEZAS DO MAR,
PARA ABRIR PASSAGEM AOS RESGATADOS?

OUTRO EXEMPLO É DO SALMO 89, UM HINO A DEUS COMO O DEFENSOR E AUXILIADOR DA MONARQUIA DE DAVI E POR CONSEGUINTE DE ISRAEL. PRIMEIRO, DEUS É EXALTADO COMO O DEUS CRIADOR QUE CONQUISTOU E VENCEU O CAOS NOVAMENTE NA FIGURA DO DRAGÃO RAAB ( SALMO 89: 9-10)

9SENHOR DEUS TODO-PODEROSO, QUEM É IGUAL A TI?
PODEROSO ÉS TU, SENHOR ,
E TUA FIDELIDADE É TEU CORTEJO.
10 TU DOMINAS A FÚRIA DO MAR;
QUANDO SE SUBLEVAM AS VAGAS, TU AS AMANSAS.
11 TRITURASTE O CADÁVER DE RAAB,
DISPERSASTE OS INIMIGOS COM O PODER DE TEU BRAÇO.”

As traduções da Bíblia utilizadas nos trechos acima foram obtidas do site abaixo

http://www.biblia.inf.br/Antigo/nov.html

Posteriormente, o Leviatã passou a ser a imagem bíblica que era a contraparte judaica do Dragão babilônico do Caos e é desse modo que ele é aludido no Apocalipse de São João.

Reparem na similaridade entre Marduk e Tiamat e seus correspondentes gregos, Zeus e Tífon(nome que originou o termo “tufão”)

A Noite Primordial, no Tolkien, corresponde a esse tipo de entidade do caos que, entre os babilônicos e os semitas, era, frequentemente, correlacionado com a imagem do mar. Isso, inclusive, parece refletir na maneira com a qual Tolkien descreveu a súbita propagação da Antiluz no Escurecimento de Valinor.

VARDA OLHOU PARA BAIXO , DE TANIQUETIL, E VIU A SOMBRA SUBIR EM TORRES SÚBITAS DE TREVAS; VALMAR AFUNDARA-SE NUM MAR PROFUNDO DE NOITE. EM BREVE A MONTANHA SAGRADA SE ERGUIA SOZINHA, ÚLTIMA ILHA NUM MUNDO AFOGADO.

VARDA LOOKED DOWN FROM TANIQUETIL, AND BEHELD THE SHADOW SOARING UP IN SUDDEN TOWERS OF GLOOM; VALMAR HAD FOUNDERED IN A DEEP SEA OF NIGHT. SOON THE HOLY MOUNTAIN STOOD ALONE, A LAST ISLAND IN A WORLD THAT WAS DROWNED

Mas entendida como tal, ela representa um pólo dualista oposto para Eru Ilúvatar? Eru e Ava Kúma poderiam ser os Gêmeos Cósmicos originados por uma Unidade Pré-Existente da mesma forma que Zurvam Akarana ( a Eternidade, o Tempo) havia gerado Ormuzd e Ahriman?*

• *( Zurvam Akarana foi uma figura que se originou a partir de uma mitigação do dualismo zoroástrico, uma entidade que transcendia e conciliava os opostos e que, na verdade, foi uma revivescência de conceitos anteriores à reforma empreendida pelo profeta persa.)

Eu penso que não porque Tolkien disse que não há o Mal Absoluto em sua Mitologia, e além do mais, o nome de Eru significa o “Ünico”. Se a referência principal para o Deus Tolkieniano foi o Deus Judaico-Cristão, e isso é inegável, a conclusão lógica é que Ilúvatar é sempiterno ( sem começo , nem fim).

Então o que é a Escuridão? Primeiro vamos analisar mais detidamente o que é a Luz de Ilúvatar. A Luz que Melkor invejava em Ilúvatar , que ele via refletida em Varda, e que, mais tarde, ele cobiçou nos Silmarils, é a manifestação da presença do Único que permeia todas as coisas , a materialização de seu desígnio criativo, nada mais além da coisa que Melkor buscava em vão no Vazio: O próprio Fogo Secreto, a Chama Imperecível.

Tolkien disse no Silmarillion que os Ainur nasceram do pensamento de Eru e este disse aos Ainur que ele havia ateado a contelha de seus seres com o Fogo Secreto. Logo, o Pensamento de Ilúvatar e o Fogo Secreto são a mesma coisa e o poder do Fogo Secreto se apresenta sob a forma de luz que é o manifestação da presença de Eru Ilúvatar e do seu pensamento.

Em uma das suas notas ao texto do Diálogo de Finrod e Andreth (nota 11), Tolkien definiu o que é o Fogo Secreto:

ISSO, DE FATO, JÁ É ENTREVISTO NA AINULINDALË, NA QUAL UMA REFERÊNCIA É FEITA À CHAMA IMPERECÍVEL. ISSO PARECE SIGNIFICAR A ATIVIDADE CRIATIVA DE ERU ( DE ALGUMA FORMA DISTINTA PROVENIENTE DELE OU DO SEU INTERIOR), PELA QUAL AS COISAS PODEM TER UMA EXISTÊNCIA “REAL” E INDEPENDENTE ( MUITO EMBORA DERIVATIVA E CRIADA). A CHAMA IMPERECÍVEL É ENVIADA POR ERU, PARA HABITAR NO CORAÇÃO DO MUNDO , E A PARTIR DE ENTÃO O MUNDO PASSA A EXISTIR NO MESMO PLANO QUE OS AINUR, E ELES PODEM ENTRAR NELE. MAS ESSE NÃO É DE FATO O MESMO QUE A RE-ENTRADA DE ERU PARA DERROTAR MELKOR. É, AO INVÉS UMA REFERÊNCIA PARA O MISTÉRIO DA “AUTORIA”, PELA QUAL O AUTOR, ENQUANTO PERMANECE “DE FORA” E INDEPENDENTE DO SEU TRABALHO, TAMBÉM “HABITA” NELE, NO SEU PLANO DERIVATIVO, ABAIXO DO SEU PRÓPRIO SER, COMO A FONTE E A GARANTIA DA SUA EXISTÊNCIA.>>>

<<< THIS IS ACTUALLY ALREADY GLIMPSED IN THE AINULINDALE’, IN WHICH REFERENCE IS MADE TO THE ‘FLAME IMPERISHABLE’. THIS APPEARS TO MEAN THE CREATIVE ACTIVITY OF ERU (IN SOME SENSE DISTINCT FROM OR WITHIN HIM), BY WHICH THINGS COULD BE GIVEN A ‘REAL’ AND INDEPENDENT (THOUGH DERIVATIVE AND CREATED) EXISTENCE. THE FLAME IMPERISHABLE IS SENT OUT FROM ERU, TO DWELL IN THE HEART OF THE WORLD, AND THE WORLD THEN IS, ON THE SAME PLANE AS THE AINUR, AND THEY CAN ENTER INTO IT. BUT THIS IS NOT, OF COURSE, THE SAME AS THE RE-ENTRY OF ERU TO DEFEAT MELKOR. IT REFERS RATHER TO THE MYSTERY OF ‘AUTHORSHIP’, BY WHICH THE AUTHOR, WHILE REMAINING ‘OUTSIDE’ AND INDEPENDENT OF HIS WORK, ALSO ‘INDWELLS’ IN IT, ON ITS DERIVATIVE PLANE, BELOW THAT OF HIS OWN BEING, AS THE SOURCE AND GUARANTEE OF ITS BEING.>>>

O Fogo Secreto é , portanto, a maneira pela qual Eru Ilúvatar se faz presente em sua própria criação, Eä, o Universo Material; é o veículo de sua Onipresença no plano físico. Ele queima dentro de tudo que possui ser individual, existência própria

Vemos, portanto, que o Fogo Secreto é algo similar ao Espírito Santo de Deus na concepção judaico-cristã cuja morada é em cada ser vivo, combinado com o conceito da Alma Universal ( o Brahman) dos Hindus que se contrapõe ao Atmã,a alma individual.

BRAHMAN: PALAVRA HINDU BRAHMAN ( NEUTRO) , SIGNIFICANDO A SUPREMA ESSÊNCIA OU ALMA DO MUNDO; QUANDO PERSONIFICADA É BRAHAMÃ ( MASCULINO)

ATMAN: O ETERNO “ EU”, COMO SE DIFERENCIA DO FALSO “EU”. O PRINCÍPIO UNIVERSAL NO HOMEM.

Extraído do Glossário de Sabedoria da China e da Índia ( vol 1) de Lin Yutang, Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro.

Como o Espírito Santo, o Fogo Secreto está dentro de todas as Almas, mas, assim como o Brahman hindu, o Fogo Secreto está difundido, também, por tudo que existe como uma emanação do Criador ( mas sem se confundir com o próprio, como acontece nessa concepção panteísta da realidade, em que o Universo e o Criador são a mesma coisa.)

Assim como Sauron precisou exteriorizar o seu poder para engendrar o Anel, Ilúvatar emanou o seu próprio Pensamento para começar a criar coisas diversas dele próprio. Assim surgiu a Chama Imperecível.

Mas se Ilúvatar tem um pensamento consciente, um impulso criativo , não poderá haver dentro dele um Inconsciente Divino, que surgiu como um contraposto necessário da emanação que deu nascimento ao Fogo Secreto? Não poderia o Vazio ser uma emanação de Ilúvatar , que, à semelhança do Caos e do Inconsciente Humano, é potencialidade destituída de forma visível?

Assim, dentro do Vazio, haveria uma “sombra da Luz de Ilúvatar”, uma potencialidade para o ser que corresponderia à probabilidade de um lugar às escuras de comportar luz. Por isso é que Eä ( com o Fogo Secreto queimando em seu interior) foi posto no meio do Vazio e é sustentado por ele embora não faça parte dele. A totalidade das coisas demanda um Vazio para que possa se propagar.

É exatamente essa a noção que John Milton adotou no seu Paraíso Perdido. Nesse poema épico, Deus, ao criar o Terra, ‘usurpa” os domínios das divindades primevas da mitologia grega listadas na Teogonia de Hesíodo: O Caos, a Noite, Erebus ( a Treva) e outros. Aliás, assim como aconteceu com Melkor e Ungoliant, no Paraíso Perdido , Satanás se alia a eles para por fim a um tipo de Paraíso. No Paraíso Perdido, após ter o seu acesso franqueado através dos domínios do Caos, Satanás chega até a Terra, onde causa a Queda de Adão e Eva. No Silmarillion, Melkor e Ungoliant, a personificação do Vazio e do Caos, fazem um pacto através do qual eles provocam a Queda dos Noldor e o Escurecimento de Valinor.

Agora suponhamos o fato de que essa emanação de Ilúvatar tenha, de alguma forma, se apartado de Eru, que ela tenha ficado menos controlável. Vamos supor, talvez, que o próprio Eru tenha sido de alguma maneira afetado pela cisão de sua mente e que ele já não esteja plenamente ciente da natureza da Noite que faz fronteira com a luz dimanada pelo seu Pensamento. Vamos supor que Eru tenha se esquecido de uma parte do que ele é…

Desse modo quando essa parte incita* à rebelião o mais poderoso dos seus Ainur, Eru reformula o seu plano, fazendo da discórdia de Melkor e da interferência da Escuridão uma parte do todo que compõe o seu propósito divino . Eru Ilúvatar, nessas circunstâncias, iria necessitar de um veículo para sondar o seu próprio Inconsciente ( “conhece-te a ti mesmo”, no descumprimento dessa máxima estaria o limite de sua onisciência) e desvendar a verdade. Isso explicaria o porquê do Tolkien ter afirmado que a discórdia de Melkor ,e portanto o Mal, são contrários ao tema de Ilúvatar apenas aparentemente( vide o trecho da carta transcrito abaixo). A dissonância de Melkor e a influência “corruptora” do Vazio seriam tributários da sua glória.

*( “ incita” em termos porque o que acontece é que, privado da Luz de Ilúvatar, o poder de Criar ao invés de subcriar, Melkor recorre às Trevas que são a potencialidade irrealizada da Criação, o Marco Zero de onde ela deve se originar, a página em branco na qual ele queria pintar)

ISSO FOI PROPOSTO INICIALMENTE EM FORMA ABSTRATA OU MUSICAL , E ENTÃO EM UMA “VISÃO HISTÓRICA”. NA PRIMEIRA INTERPRETAÇÃO, A VASTA MÚSICA DOS AINUR, MELKOR INTRODUZIU ALTERAÇÕES , NÃO INTERPRETAÇÕES DA MENTE DO ÚNICO, E GRANDE DISCÓRDIA SE PROPAGOU. O ÚNICO ENTÃO APRESENTOU ESSA MÚSICA, INCLUINDO AS APARENTES DISCÓRDIAS COMO UMA “HISTÓRIA” VISÍVEL. ( CARTA Nº 212)

THIS WAS PROPOUNDED FIRST IN MUSICAL OR ABSTRACT FORM, AND THEN IN AN ‘HISTORICAL VISION’. IN THE FIRST INTERPRETATION, THE VAST MUSIC OF THE AINUR, MELKOR INTRODUCED ALTERATIONS, NOT INTERPRETATIONS OF THE MIND OF THE ONE, AND GREAT DISCORD AROSE. THE ONE THEN PRESENTED THIS ‘MUSIC’, INCLUDING THE APPARENT DISCORDS, AS A VISIBLE ‘HISTORY’.

A origem e a natureza de Ungoliant com uma forma Avatar do Caos

Como já foi dito antes, o conjunto de todas as coisas que têm ser possui no seu Centro , o Fogo Secreto, que está “dentro dele e simultaneamente em todas as suas partes e é a sua vida”. A Chama Imperecível crepita dentro de Eä e é a garantia da sua existência. O Fogo Secreto é colocado no meio do Vazio, que é a potencialidade para o Ser ainda não realizado, definindo as fronteiras entre aquilo que é e o que pode ainda vir a ser. A totalidade das coisas é definida e circunscrita pelo Vazio que a cerca.

Isso, é claro, explica a maneira predatória pela qual Ungoliant existe. Ela necessita devorar Luz para conservar o seu precário estado de “ser”, a sua dimensão ontológica, enquanto estiver dentro de Eä. Do contrário, ela devora a si mesma, deixa de existir. Nessa dependência de uma porção da essência de Ilúvatar, provavelmente, se encontra a explicação para o fato de Ungoliant, em sua origem, ser uma serva de Melkor.

Muito possivelmente a luz que conferiu ser à Ungoliant, que moldou a própria substância do Vazio e lhe conferiu uma existência anômala dentro de Eä, foi proveniente do próprio Melkor ( os espíritos dos Ainur e de todos os espíritos no universo de Tolkien são acesos com um porção do Fogo Secreto) , que, assim procedendo, fez uma das primeiras dispersões do seu poder primitivo. Esse tipo de doação, mais tarde, foi repetida por ele inúmeras vezes, com os Dragões e com Carcharoth *por exemplo.

*( que sendo alimentado pela mão de Morgoth com carne na qual ele colocou uma parte do seu poder e que ficou possuído por “um espírito devorador, atormentado e terrível” )

Da História de Beren e Lúthien no Silmarillion:

ENTÃO MORGOTH, RECORDOU-SE DO DESTINO DE HUAN, ESCOLHEU UM DE ENTRE OS FILHOS DA RAÇA DE DRAUGLUIN E ALIMENTOU-O COM A SUA PRÓPRIA MÃO, DE CARNE VIVA, E PÔS NELE O SEU PODER. RAPIDAMENTE O LOBO CRESCEU , ATÉ NÃO PODER ENTRAR EM NENHUM COVIL E PERMANECER ENORME E FAMINTO AOS PÉS DE MORGOTH. AÍ FOGO E ANGÚSTIA DE INFERNO ENTRARAM NELE E ELE SE ENCHEU DE UM ESPÍRITO DEVORADOR, ATORMENTADO, TERRÍVEL E FORTE.

THEN MORGOTH RECALLED THE DOOM OF HUAN, AND HE CHOSE ONE FROM AMONG THE WHELPS OF THE RACE OF DRAUGLUIN; AND HE FED HIM WITH HIS OWN HAND UPON LIVING FLESH, AND PUT HIS POWER UPON HIM. SWIFTLY THE WOLF GREW, UNTIL HE COULD CREEP INTO NO DEN, BUT LAY HUGE AND HUNGRY BEFORE THE FEET OF MORGOTH. THERE THE FIRE AND ANGUISH OF HELL ENTERED INTO HIM, AND HE BECAME FILLED WITH A DEVOURING SPIRIT, TORMENTED, TERRIBLE, AND STRONG.

O Espírito que Ungoliant possuía seria então uma centelha da essência de Melkor( que é, por sua vez, uma parcela do Fogo Secreto) e, em Eä ,esse espírito se conservava ( porque habitava uma forma moldada a partir da Escuridão exterior e não um corpo feito de carne) parasitando as centelhas de outras coisas vivas e não-vivas.

No início, Ungoliant deve ter sido pouco mais do um brinquedo, um tipo de mascote, antes que ela tivesse absorvido Luz o bastante para adquirir auto-suficiência após o que ela fugiu de Melkor, refugiando-se onde estava o tipo de Luz mais pura em Arda, próximo das fronteiras do Reino Abençoado, onde residia a Luz de Telperion e Laurelin.

Fica assim , eu penso, explicado o aparente paradoxo da dimensão ontológica do Mal no Tolkien.

O Vazio em si é desprovido de consciência real ( Tolkien afirmou que ele não acredita que algo racional possa ser absolutamente mau) e nesse sentido ele é de fato, “nulo”, mas possui Substância, a qual é um reflexo da Luz manifestada por Ilúvatar por intermédio do Fogo Secreto. ( Luz é uma forma de Energia, Matéria e Energia, como ensina a Relatividade, são intecambiáveis e Ungoliant gera matéria ( Antiluz) derivada da Luz). E, embora sendo dotado de dimensão ontológica, o Mal Tolkieniano não é o Mal Absoluto, Maniqueísta ou Dualista.

Assim, quando tornou o “Mal” uma manifestação da influência do Vazio ( que não é literalmente vácuo, mas a matéria informe que é o Caos Primordial) Tolkien deu um ser próprio ao “Mal” SEM contradizer Santo Agostinho, porque o Caos, em si, é privado de consciência , NÃO TEM LIVRE -ARBÍTRIO, é a mera Potencialidade da Luz não realizada e, portanto, não é Absoluto.

Tem dimensão ontológica no que diz respeito ao “Corpo” mas não no que tange à Alma; tem a Forma do Mal ( que é a Escuridão não criada onde a Luz pode se propagar, a ausência da Luz) mas não o Conteúdo- a vontade que procura reverter a criação de Ilúvatar ao Caos. Essa Vontade é atributo de Melkor, que assim sendo é o Espírito do Mal* mas que também não é em si a personificação do Mal porque foi criado a partir da Luz de Ilúvatar, e a busca pela Escuridão empreendida por ele é resultado da cobiça pela Luz, não de um desejo pelas Trevas em si mesmas . Ele as vê como seu instrumento, não como uma parte do seu próprio ser.

• No texto do Athrabeth (nota nº 7) Tolkien disse que:

MELKOR NÃO ERA APENAS UM MAL LOCAL NA TERRA, NEM UM anjo GUARDIÃO DA TERRA* QUE HAVIA SE CORROMPIDO, ELE ERA O ESPÍRITO DO MAL, SUBLEVANDO-SE ANTES MESMO DA CRIAÇÃO DE EÄ. SUA TENTATIVA DE DOMINAR A ESTRUTURA DE EÄ E DE ARDA EM PARTICULAR, E ALTERAR OS DESÍGNIOS DE ERU ( O QUAL GOVERNAVA TODAS AS OPERAÇÕES DOS VALAR FIÉIS) HAVIA INTRODUZIDO O MAL, OU UMA TENDÊNCIA ABERRANTE EM RELAÇÃO AO DESÍGNIO EM TODA A MATÉRIA FÍSICA DE ARDA.

*Isso é uma alusão de Tolkien à contraparte de Melkor na mitologia criada por C.S.Lewis na sua Trilogia do Espaço Exterior ( Além do Planeta Silencioso, Perelandra e Aquela Força Medonha) que está disponível em Portugal. Nesses livros, o espírito angelical protetor da Terra, o Oyarsa do nosso planeta, membro da raça dos Eldils , correpondente aos Ainur ou aos Valar, era justamente o Caído, cujo nome original era, provavelmente, Tellus ou Thulcandra , o nome do nosso planeta Terra. ( mais informações no link abaixo)

http://www.lewrockwell.com/elkins/elkins40.html

MELKOR WAS NOT JUST A LOCAL EVIL ON EARTH, NOR A GUARDIAN ANGEL OF EARTH WHO HAD GONE WRONG: HE WAS THE SPIRIT OF EVIL, ARISING EVEN BEFORE THE MAKING OF EÄ. HIS ATTEMPT TO DOMINATE THE STRUCTURE OF EÄ, AND OF ARDA IN PARTICULAR, AND ALTER THE DESIGNS OF ERU (WHICH GOVERNED ALL THE OPERATIONS OF THE FAITHFUL VALAR), HAD INTRODUCED EVIL, OR A TENDENCY TO ABERRATION FROM THE DESIGN, INTO ALL THE PHYSICAL MATTER OF ARDA.

Para que houvesse o Mal Absoluto da concepção maniqueísta ou gnóstica na Mitologia Tolkieniana, seria preciso começar com uma FUSÃO entre Melkor e a Noite Primordial, seria preciso que o Corpo e a Alma estivessem unificados numa única entidade .

O que é, então, o corpo do Vazio? Se Ungoliant é a sua personificação dentro dos Círculos do Mundo que características dela são resultado das propriedades inerentes ao Caos?

O que compõe o “Vazio” é a própria Matéria da Escuridão, que, dentro de Eä, se manifesta sob a forma da Antiluz, algo que podemos chamar de protomatéria porque contém a matéria que forma o Universo mas com seus elementos todos mesclados e fundidos num todo disforme e “caótico”. A protomatéria das Trevas, dentro da estrutura do Espaço-Tempo ( ou seja em Eä), só pode existir drenando a essência do Fogo Secreto.

Por esse motivo, Ungoliant tem uma fome insaciável por Luz, que, uma vez sorvida, será convertida em Antiluz, que nada mais é do que a parte mais “volátil” , menos condensada da própria Ungoliant, o excedente com a qual ela pode capturar mais Luz ( urdindo suas teias de Trevas), mas que, se emanado em excesso, pode acabar por sufocá-la, privando-a do seu alimento. Vê-se então que Ungoliant é um ser preso em uma cadeia circular, num círculo vicioso. Ela precisa absorver Luz para sobreviver, mas, ao fazê-lo, ela cresce e libera cada vez mais Antiluz fatos que a obrigam a drenar mais e mais.

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Isso é uma característica do Mal tolkieniano que tende a se auto-aniquilar. Ele é vítima de uma “loucura niilista” ( niilismo é uma corrente de pensamento que se traduz na supressão do próprio ser, na aniquilação da qual a palavra procede) que, nos termos do próprio Tolkien, tende a reverter a criação a um estado informe de Caos. É por esse motivo que Lúthien Tinúviel hipnotizou Melkor fazendo com que ele sonhasse com a Noite do Vazio, o Caos primitivo a partir do qual ele almejava recriar o Universo à sua imagem e semelhança. Ela deu a ele uma imagem perfeita do seu maior desejo, tornado palpável.

Aliás, essa propriedade do encanto de Lúthien é tornada explícita nesse trecho do The Book of Lost Tales II ( no Conto de Tinúviel) transcrito abaixo.

E AQUELES QUE SE SENTAVAM SOBRE OS MUROS OU PERMANECIAM NAQUELE LUGAR SUCUMBIRAM UM POR UM AO SONO, IMERGINDO EM SONHOS PROFUNDOS COM TUDO QUE SEUS CORAÇÕES PERVERSOS DESEJAVAM

AND THE FOLK THAT SAT ABOUT THE WALLS OR STOOD IN THAT PLACE WERE WHELMED ONE BY ONE IN SLEEP, FALLING DOWN INTO DEEP DREAMS OF ALL THAT THEIR ILL HEARTS DESIRED.

De Béren e Lúthien, cap 19 da Quenta no Silmarillion

TODA A SUA CORTE ADORMECEU E TODAS AS FOQUEIRAS ESMORECERAM E SE APAGARAM, MAS OS SILMARILS DA COROA QUE MORGOTH TINHA NA CABEÇA BRILHARAM SUBITAMENTE COM UMA RADIÂNCIA DE CHAMA BRANCA; E O PESO DESSA COROA E DAS SUAS PEDRAS PRECIOSAS CURVOU-LHE A CABEÇA, COMO SE O MUNDO ESTIVESSE EM CIMA DELA, CARREGADO COM UM PESO DE CUIDADOS, MEDO E DESEJO*, QUE NEM A VONTADE DE MORGOTH PODIA SUPORTAR. ENTÃO LÚTHIEN AGARROU NA SUA VESTIMENTA ALADA E SALTOU PARA O AR, E A SUA VOZ DESCEU COMO CHUVA EM CHARCOS PROFUNDOS E ESCUROS. PASSOU A SUA CAPA DIANTE DOS OLHOS DELE E MERGULHOU-O NUM SONHO NEGRO COMO O VAZIO EXTERIOR ONDE ELE EM TEMPOS CAMINHARA SOZINHO.

* “medo e desejo” outra referência à ambivalente obsessão de Melkor com a Luz do Poder Criativo de Eru Ilúvatar, o Fogo Secreto.Essa Luz tem sua expressão mais pura nas Árvores e só subsiste dentro dos Silmarils que, aliás, foram consagrados por Varda.

ALL HIS COURT WERE CAST DOWN IN SLUMBER, AND ALL THE FIRES FADED AND WERE QUENCHED; BUT THE SILMARILS IN THE CROWN ON MORGOTH’S HEAD BLAZED FORTH SUDDENLY WITH A RADIANCE OF WHITE FLAME; AND THE BURDEN OF THAT CROWN AND OF THE JEWELS BOWED DOWN HIS HEAD, AS THOUGH THE WORLD WERE SET UPON IT, LADEN WITH A WEIGHT OF CARE, OF FEAR, AND OF DESIRE, THAT EVEN THE WILL OF MORGOTH COULD NOT SUPPORT. THEN LÚTHIEN CATCHING UP HER WINGED ROBE SPRANG INTO THE AIR, AND HER VOICE CAME DROPPING DOWN LIKE RAIN INTO POOLS, PROFOUND AND DARK. SHE CAST HER CLOAK BEFORE HIS EYES, AND SET UPON HIM A DREAM, DARK AS THE OUTER VOID WHERE ONCE HE WALKED ALONE.

Do texto Myths Tranformed do HOME 10, “Morgoth`s Ring”:

ISSO ERA PURO NIILISMO, E NEGAÇÃO ERA A SUA META PRINCIPAL: SE TIVESSE SIDO VITORIOSO, SEM DÚVIDA MORGOTH NO FIM TERIA ELIMINADO SUAS PRÓPRIAS “CRIATURAS”, TAIS COMO OS ORCS, QUANDO ELES TIVESSEM SERVIDO AO SEU ÚNICO PROPÓSITO: A DESTRUIÇÃO DE ELFOS E HOMENS. O DESESPERO E A IMPOTÊNCIA FINAIS DE MELKOR RESIDIAM NISSO: QUE ENQUANTO OS VALAR ( E , NO SEU NÍVEL ELFOS E HOMENS) PUDESSEM AINDA AMAR ARDA DESFIGURADA, OU SEJA ARDA COM UM INGREDIENTE MELKOR, E PUDESSEM AINDA CURAR ESSA OU AQUELA FERIDA, OU PRODUZIR A PARTIR DA PRÓPRIA DESFIGURAÇÃO, INICIANDO DO PROPRIO ESTADO EM QUE ELA SE ENCONTRAVA, COISAS BELAS E DIGNAS DE AMOR, MELKOR NÃO PODERIA FAZER NADA COM ARDA, A QUAL NÃO ERA PROVENIENTE DA SUA PRÓPRIA MENTE SENDO ENTREMEADA COM O TRABALHO E COM OS PENSAMENTOS DE OUTROS: MESMO QUE TIVESSE PODIDO AGIR COMO LHE APROUVESSE ELE PODERIA APENAS CONTINUAR FURIOSO ATÉ QUE TUDO ESTIVESSE REDUZIDO NOVAMENTE A UM CAOS INFORME. E MESMO ASSIM, ELE AINDA TERIA SIDO DERROTADO, PORQUE ELA TERIA AINDA “EXISTIDO” INDEPENDENTE DA SUA PRÓPRIA MENTE, E COMO UM MUNDO EM POTENCIAL

THIS WAS SHEER NIHILISM, AND NEGATION ITS ONE ULTIMATE OBJECT: MORGOTH WOULD NO DOUBT, IF HE HAD BEEN VICTORIOUS, HAVE ULTIMATELY DESTROYED EVEN HIS OWN ‘CREATURES’, SUCH AS THE ORCS, WHEN THEY HAD SERVED HIS SOLE PURPOSE IN USING THEM: THE DESTRUCTION OF ELVES AND MEN. MELKOR’S FINAL IMPOTENCE AND DESPAIR LAY IN THIS: THAT WHEREAS THE VALAR (AND IN THEIR DEGREE ELVES AND MEN) COULD STILL LOVE’ARDA MARRED’, THAT IS ARDA WITH A MELKOR-INGREDIENT, AND COULD STILL HEAL THIS OR THAT HURT, OR PRODUCE FROM ITS VERY MARRING, FROM ITS STATE AS IT WAS, THINGS BEAUTIFUL AND LOVELY, MELKOR COULD DO NOTHING WITH ARDA, WHICH WAS NOT FROM HIS OWN MIND AND WAS INTERWOVEN WITH THE WORK AND THOUGHTS OF OTHERS: EVEN LEFT ALONE HE COULD ONLY HAVE GONE RAGING ON TILL ALL WAS LEVELLED AGAIN INTO A FORMLESS CHAOS. AND YET EVEN SO HE WOULD HAVE BEEN DEFEATED, BECAUSE IT WOULD STILL HAVE ‘EXISTED’, INDEPENDENT OF HIS OWN MIND, AND A WORLD IN POTENTIAL.

Caso deseje saber mais sobre o Niilismo, o leitor vai encontrar informações muito úteis e esclarecedoras num ensaio presente nessa página

O link específico é esse abaixo

http://www.consciencia.org/contemporanea/nietabath.shtml

Como um complemento , transcrito logo abaixo, está o trecho em que Lúcifer se prepara para transpor o abismo que fica entre o Inferno e a Terra. Esse abismo nada mais é do que os domínios do Caos , da velha Noite, que entra num acordo com ele permitindo-lhe a passagem pelo seu reino.

NESSE ABISMO SELVAGEM, SEIO DA NATUREZA,E TALVEZ SEU TÚMULO, NESSE ABISMO QUE NÃO É NEM MAR, NEM TERRA,NEM AR, NEM FOGO, MAS TODOS ESSES ELEMENTOS MISTURADOS NAS SUAS CAUSAS FECUNDAS, QUE DEVEM LUTAR SEMPRE ASSIM, A MENOS QUE O TODO PODEROSO-CRIADOR ORDENE AOS SEUS NEGROS MATERIAIS QUE CRIEM NOVOS MUNDOS ; NESSE ABISMO SELVAGEM, SATANÁS, O CAUTELOSO INIMIGO, MANTÉM-SE À BEIRA DO INFERNO, CONTEMPLA-O ALGUM TEMPO, REFLETINDO SOBRE A SUA VIAGEM…

JOHN MILTON PARAÍSO PERDIDO, LIVRO II, TRADUÇÃO DE CONCEIÇÃO G. SOTTO MAIOR. CLÁSSICOS DE OURO-EDIOURO- PÁG 52.

Dualismo Complementar: O Verdadeiro Dualismo Tolkieniano


Vemos, portanto, que levadas às suas últimas conclusões, a Teologia Tolkieniana sugere que O Mal Absoluto inexiste. O que existe é o Caos do qual a ordem da criação pode florescer uma vez que ele é imbuído com a Luz do Fogo Secreto. A Noite Primordial, da qual Ungoliant é um “avatar”, nada mais é do que a Potencialidade para o Ser ainda carente de “Alma” aqui entendida como o Dom da existência individual, que é a dádiva do Fogo Secreto, mediante a qual as coisas que vão existir são individuadas e isoladas. Dentro do “Vazio”/ Caos as coisas estão “confundidas”.

A outra manifestação do Mal no Tolkien é a vontade destrutiva de Melkor, seu desejo niilista, que, em última instância, busca a negação do Ser, o Vazio, a Noite Primordial, porque ele contém o potencial para dar início a uma nova Criação.

Ambos esses tipos de Mal são complementos para o Propósito de Ilúvatar, no caso do Vazio, porque ele nada mais é que a Sombra projetada pela Luz de Ilúvatar, é a medida pela qual sua existência se define, o Ponto Zero que serve para aquilatar a sua materialidade. Já os impulsos destrutivos de Melkor foram assimilados pelo terceiro tema de Ilúvatar, então, mesmo os acordes mais triunfantes da discórdia de Melkor foram “entretecidos no seu solene padrão”, de sorte que, por exemplo, se Ulmo não pensara na neve , “no trabalho artístico da geada” ou “na altura e glória das nuvens de par com a queda da chuva na Terra”, tais coisas passaram a existir quando “Melkor pensou em frio e calor imoderados”. Os próprios Filhos de Ilúvatar, que foram introduzidos no Terceiro Tema, não teriam existido como tais se não fosse pela Dissonância criada por Melkor.

E ILÚVATAR FALOU A ULMO E DISSE “ NÃO VÊS TU COMO AQUI, NESTE PEQUENO REINO DAS PROFUNDEZAS DO TEMPO, MELKOR ABRIU GUERRA CONTRA O QUE ERA PROVÍNCIA TUA? ELE PENSARA EM FRIO AGRESTE E IMODERADO, E , CONTUDO, NÃO DESTRUIU A A BELEZA DAS TUAS FONTES, NEM DAS TUAS CLARAS LAGOAS. VÊ A NEVE E O ARTÍSTICO TRABALHO DA GEADA! MELKOR IMAGINARA CALORES E FOGO SEM MODERAÇÃO, MAS NÃO SECOU O TEU DESEJO NEM SILENCIOU COMPLETAMENTE A MÚSICA DO MAR. DEVES OLHAR É A ALTURA E A GLÓRIA DAS NUVENS E AS NÉVOAS SEMPRE A MUDAR E ESCUTA A QUEDA DA CHUVA NA TERRA. E NESSAS NUVENS ÉS LEVADO PARA MAIS PERTO DE MANWË, TEU AMIGO, A QUEM AMAS.”

E ULMO RESPONDEU: “EM VERDADE, A ÁGUA TORNOU-SE AGORA MAIS BELA DO QUE O MEU CORAÇÃO IMAGINARA, E TAMPOUCO O MEU SECRETO PENSAMENTO CONCEBERA O FLOCO DE NEVE, NEM EM TODA A MINHA MÚSICA ESTAVA CONTIDA A QUEDA DA CHUVA. PROCURAREI MANWÉ PARA QUE ELE E EU POSSAMOS FAZER ETERNAMENTEE MELODIAS PARA TEU DELEITE!” E MANWË E ULMO FORAM DESDE O PRINCÍPIO, ALIADOS E EM TODAS AS COISAS SERVIRAM FIELMENTE O PROPÓSITO DE ILÚVATAR.

AND ILÚVATAR SPOKE TO ULMO, AND SAID: ‘SEEST THOU NOT HOW HERE IN THIS LITTLE REALM IN THE DEEPS OF TIME MELKOR HATH MADE WAR UPON THY PROVINCE? HE HATH BETHOUGHT HIM OF BITTER COLD IMMODERATE, AND YET HATH NOT DESTROYED THE BEAUTY OF THY FOUNTAINS, NOR OF MY CLEAR POOLS. BEHOLD THE SNOW, AND THE CUNNING WORK OF FROST! MELKOR HATH DEVISED HEATS AND FIRE WITHOUT RESTRAINT, AND HATH NOT DRIED UP THY DESIRE NOR UTTERLY QUELLED THE MUSIC OF THE SEA. BEHOLD RATHER THE HEIGHT AND GLORY OF THE CLOUDS, AND THE EVERCHANGING MISTS; AND LISTEN TO THE FALL OF RAIN UPON THE EARTH! AND IN THESE CLOUDS THOU ART DRAWN NEARER TO MANWË, THY FRIEND, WHOM THOU LOVEST.’

THEN ULMO ANSWERED: ‘TRULY, WATER IS BECOME NOW FAIRER THAN MY HEART IMAGINED, NEITHER HAD MY SECRET THOUGHT CONCEIVED THE SNOWFLAKE, NOR IN ALL MY MUSIC WAS CONTAINED THE FALLING OF THE RAIN. I WILL SEEK MANWË, THAT HE AND I MAY MAKE MELODIES FOR EVER TO MY DELIGHT!’ AND MANWË AND ULMO HAVE FROM THE BEGINNING BEEN ALLIED, AND IN ALL THINGS HAVE SERVED MOST FAITHFULLY THE PURPOSE OF ILÚVATAR.

POIS OS FILHOS DE ILÚVATAR SÓ POR ELE ERAM IMAGINADOS; VIERAM COM O TERCEIRO TEMA E NÃO CONSTAVAM DO TEMA PROPOSTO POR ILÚVATAR AO PRINCÍPIO E NENHUM DOS AINUR PARTICIPARA NA SUA CRIAÇÃO.

FOR THE CHILDREN OF ILÚVATAR WERE CONCEIVED BY HIM ALONE; AND THEY CAME WITH THE THIRD THEME, AND WERE NOT IN THE THEME WHICH ILÚVATAR PROPOUNDED AT THE BEGINNING, AND NONE OF THE AINUR HAD PART IN THEIR MAKING.

Então vemos que, na mitologia Tolkieniana, tudo leva a crer que há, na verdade, uma forma abrandada de Dualismo Complementar em que o Mal é a disparidade entre as partes que contribui para a harmonia do todo. Em religiões de dualismo complementar é reconhecida a existência dos opostos mas eles são contraditórios e complementares. Assim é a noção defendida principalmente nas religiões orientais como o Budismo e o Taoísmo.

Sobre isso o leitor vai encontrar mais informações no link abaixo

http://www.geocities.com/cassalgado/part_two.htm

No Tolkien esse dualismo complementar é temperado por influências do dualismo antagonístico que Tolkien herdou do Zoroastrismo e do Maniqueísmo, uma vez esses últimos tiveram uma notável influência na teologia Judaico-Cristã.

Origens do Mal e Livre Arbítrio. O Mal é inevitável?

Uma última questão sobre a qual é necessário fazer alguma consideração. Até que ponto o Mal de Melkor seria derivado da Noite do Vazio e até onde ele seria proveniente de um mau uso do legado do próprio Ilúvatar? Se uma parte do “mal’ de Morgoth foi herdado de Eru isso implicaria que Melkor é destituído de livre-arbítrio?

Novamente, vamos ter que comparar a noção da origem do Mal em dois momentos distintos da criação mitológica de Tolkien

Na versão original da Canção dos Ainur, constante do The Book of Lost Tales ( HOME I)

CONTEMPLAI VOSSO CORAL E VOSSA MÚSICA! NO MESMO INSTANTE EM QUE VÓS A TOCASTES, POR MINHA VONTADE, ELA TOMAVA FORMA, E OLHAI!. AGORA MESMO O MUNDO SE DESDOBRA E SUA HISTÓRIA SE INICIA COMO FEZ O MEU TEMA EM VOSSAS MÃOS. CADA UM IRÁ ENCONTRAR DENTRO DO DESÍGNIO QUE É MEU OS ADORNOS E AFORMOSEAMENTOS QUE ELE MESMO CRIARA, E , ATÉ MESMO MELKO IRÁ DESCOBRIR AQUELAS COISAS QUE ELE PENSOU CONCEBER A PARTIR DE SEU PRÓPRIO CORAÇÃO E FORA DE HARMONIA COM A MINHA MENTE, E ELE IRÁ DESCOBRIR QUE ELES SÃO, TÃO SOMENTE, UMA PARTE DO TODO E TRIBUTÁRIOS DE SUA GLÓRIA.

: “BEHOLD YOUR CHOIRING AND YOUR MUSIC! EVEN AS YE PLAYED SO OF MY WILL YOUR MUSIC TOOK SHAPE, AND LO! EVEN NOW THE WORLD UNFOLDS AND ITS HISTORY BEGINS AS DID MY THEME IN YOUR HANDS. EACH ONE HEREIN WILL FIND CONTAINED WITHIN THE DESIGN THAT IS MINE THE ADORNMENTS AND EMBELISHMENTS THAT HE HIMSELF DEVISED; NAY, EVEN MELKO WILL DISCOVER THOSE THINGS THERE WHICH HE THOUGHT TO CONTRIVE OF HIS OWN HEART, OUT OF HARMONY WITH MY MIND, AND HE WILL FIND THEM BUT A PART OF THE WHOLE AND TRIBUTARY TO ITS GLORY.

Uma vez que um trecho do Lost Tales I citado anteriormente ( e repetido abaixo) estabelece textualmente que os pensamentos de Melko eram oriundos do Vazio, fica claro que Ilúvatar, a princípio, não teria qualquer coisa a ver com o Mal que seria contrário ao seu pensamento. Mais importante: se as Trevas Exteriores influenciaram os pensamentos de Melko a conclusão lógica é que o Vazio é um ser sensciente , capaz de raciocinar.

DESSE MODO A PERFÍDIA DE MELKO GRASSOU CORROMPENDO A MÚSICA, POIS ESSES PENSAMENTOS DELE VIERAM DAS TREVAS EXTERIORES PARA AS QUAIS ILÚVATAR AINDA NÃO HAVIA VOLTADO A LUZ DA SUA FACE; E DEVIDO AO FATO DE QUE SEUS PENSAMENTOS OCULTOS NÃO TINHAM AFINIDADE COM A BELEZA DO DESÍGNIO DE ILÚVATAR SUAS HARMONIAS FORAM QUEBRADAS E DESTRUÍDAS.

Todavia, na versão mais nova da Ainulindalë, Tolkien implementou algumas sutis alterações que podem perfeitamente ter mudado inteiramente o quadro.

OLHAI A VOSSA MÚSICA! ESSA É A VOSSA ARTE DE MENESTRÉIS ; E CADA UM DE VÓS ACHARÁ AQUI CONTIDO, ENTRE O DESÍGNIO QUE VOS APRESENTEI, TODAS AQUELAS COISAS QUE LHE PODEM PARECER TER SIDO POR ELE PRÓPRIO INVENTADAS OU ACRESCENTADAS. E TU, MELKOR, DESCOBRIRÁS TODOS OS PENSAMENTOS SECRETOS DA TUA MENTE E COMPREENDERÁS QUE SÃO APENAS UMA PARTE DO TODO E TRIBUTÁRIOS DA SUA GLÓRIA.

‘BEHOLD YOUR MUSIC! THIS IS YOUR MINSTRELSY; AND EACH OF YOU THAT HAD PART IN IT SHALL FIND CONTAINED THERE, WITHIN THE DESIGN THAT I SET BEFORE YOU, ALL THOSE THINGS WHICH IT MAY SEEM THAT HE HIMSELF DEVISED OR ADDED. AND THOU, MELKOR, WILT DISCOVER ALL THE SECRET THOUGHTS OF THY MIND, AND WILT PERCEIVE THAT THEY ARE BUT A PART OF THE WHOLE AND TRIBUTARY TO ITS GLORY.’

Vê-se que, embora a noção de que o Mal foi incorporado como uma parte do todo esteja presente em ambas as versões, Tolkien muda a frase original para dizer que os Ainur, em geral, e não apenas Melkor incorporaram pensamentos na sua canção que haviam, na verdade, sido enviados por uma força externa. Essa força externa, na primeira versão, era a Noite do Vazio, que era pensante, enquanto, na Segunda versão, fica claramente sugerido que essa força alheia aos Ainur era o próprio Eru.

Por que eu penso dessa maneira?

Uma vez que, posteriormente, Tolkien reelaborou o seu mito ao sugerir que a Noite Primordial não poderia ser um ser racional ( se ela fosse racional haveria então algo “absolutamente” mau e Tolkien disse que não acreditava que um ser assim pudesse existir* ) o verdadeiro emanador dos pensamentos implantados nas mentes dos Valar só pode ter sido Ilúvatar ( e esses pensamentos são “bons” afinal de contas. Nada mais natural, uma vez que eles são filhos do pensamento do Único). Mas aí vem a pergunta : se Ilúvatar pode ter induzido determinados pensamentos nos Ainur sem eles perceberem, o mesmo não poderia ter se dado com Melkor? Se o Criador tinha acesso aos pensamentos de todos os Ainur ( e ele o tinha, como ficará demonstrado em um futuro ensaio**) ele não poderia e deveria conhecer de antemão os desígnios de Melkor?

* e mesmo no caso do The Book of Lost Tales onde a Noite Primordial parece ser dotada de consciência ela não corresponderia ao Mal Absoluto Metafísico porque suas influências propagadas através de Melko(r) foram absorvidas e não eliminadas. O Mal Absoluto é antinômico, incompatível com a Forca do Bem.

**( sobre isso, vide a tradução do Osanwë Quenta na Valinor

http://www.tolkien.com.br/textos/textos_osanwe.asp)

A resposta para ambas as perguntas é sim .Ao que parece, na versão mais recente do mito cosmogônico, as características “más” de Melkor foram apenas despertadas pelo contato com a Noite Primordial mas não foram criadas por ela porque ela não é racional .

Melkor via as Trevas como um meio para atingir um fim , que era a posse da Luz de Eru Ilúvatar só para si, ou a sua completa obliteração, se tal coisa não fosse possível. ( é a velha frase: “se não puder ser meu não será de ninguém’).

O “Mal” de Melkor , que nasceu do seu desejo impotente de criar, é a degeneração das virtudes concedidas por Eru Ilúvatar, são as próprias qualidades do Criador desvirtuadas, voltadas contra si próprias.

Porém Eru incorporou no seu Desígnio até mesmo a loucura niilista de Melkor, o que sugere que a tendência das ações de Melkor em reduzir tudo ao Caos, de volta à Noite Primordial, pode ter sido uma propensão inerente à porção do pensamento de Ilúvatar que deu origem ao Vala Rebelde. E, segundo a presente teoria, O Vazio seria a manifestação do Inconsciente de Eru Ilúvatar, a potencialidade destituida de Forma visível que é um contraponto do pensamento materializado do Único que é o Fogo Secreto.

Se tal coisa for verdade, Ilúvatar pode ter embutido em Melkor a inclinação pelo “Mal”, mas esse “Mal” seria apenas um retorno àquilo que também é uma manifestação do próprio Eru. Através de Melkor , Ilúvatar estaria fazendo a reconciliação das partes da sua própria Mente e a superação de uma dualidade ilusória que é apenas aparente. E isso é inteiramente consistente com a afirmação de Tolkien de que a discórdia de Melkor existe apenas em aparência.

Agora é importante salientar: mesmo que tal propensão possa ter sido criada ou prevista por Eru, e aqui, realmente, nos deparamos com a Problemática do Mal em vista da Livre-Vontade ( Free Will ou Livre Arbítrio) , chamada de Teodicéia, naquilo que ela tem de mais enigmático, em nenhum momento, o livre-arbítrio de Melkor foi perdido.

Há quem argumente que a não privação do livre-arbítrio é fruto da posse do Fogo Secreto, do qual Melkor possui uma parte dentro de si que é a quintessência do seu espírito , mas, pessoalmente, eu penso que não.

O Fogo Secreto, no Tolkien, é o que promove a manifestação de ser individual e é com ele que os espíritos de todos os seres são acesos mas ele não está presente apenas em seres dotados de alma. Uma pedra no Tolkien possui uma centelha do Fogo Secreto que permeia tudo que existe no Universo, em Eä, mas ela não é portadora de um espírito ( o qual é uma configuração distinta do Fogo Secreto do ponto de vista quantitativo e/ou qualitativo) e, logicamente, não pode possuir livre-arbítrio.

Trocando em miúdos, todo espírito é uma fagulha da Chama Imperecível, mas nem toda coisa que tem ser próprio e que possui o Fogo Secreto como a base da sua existência contém um espírito dentro de si. Logo, o que faz com que o livre-arbítrio de Melkor não seja afetado é a posse de um espírito próprio, que, muito embora possa carregar a influência do pensamento de Ilúvatar, não tem as suas ações predeterminadas por ela.

Tolkien nunca disse que os Elfos e os Homens perderam o livre-arbítrio quando Melkor passou a influenciá-los atrávés da matéria que compõe os seus corpos e, nem, tampouco, quando ele se tornou capaz de influenciar espiritualmente os Homens no momento da sua Queda ( a dos Homens). ( mais detalhes sobre isso virão mais tarde em um ensaio à parte). Os Anões, também, não foram esbulhados de sua livre vontade apenas porque diversas de suas qualidades e defeitos foram herdados do pensamento de Aulë ( limitado e imperfeito em relação ao de Eru, que disse que não iria corrigir o trabalho feito por Aulë).

Melkor é, então, livre para tomar suas próprias decisões ainda que ele possa estar “destinado” a fazer certas escolhas.

A última parte desse ensaio, como não poderia deixar de ser, arca com o pesado ônus de lidar, por muito difícil que este seja, com o Problema do Mal. Existem, é claro, infinitos modelos teológicos que buscam solucionar esse dilema. A teoria aqui apresentada é, nada mais, nada menos, do que mais um desses modelos, especialmente criado para ser aplicado à Mitologia de Tolkien ; que, em última análise, esbarra no conceito central de toda teologia: o mistério da Fé, insondável e infefável como o Fogo Secreto tolkieniano.

Dois excelentes textos em Português sobre esse assunto ( o problema do mal) encontram-se nos links abaixo:

http://www.geocities.com/Athens/Column/8413/problema_do_mal.html

http://incredulos.tripod.com/page_17.html

Depois de tudo isso, o mais irônico é ver textos como esse traduzido no Estado de S.Paulo ( e escrito por Andrew Rissik) , uma matéria que comentava a falta de introspeção filosófica e religiosa nos livros de Tolkien e no seu mundo “onde raças se misturam à vontade” ( sic) LOL 😛 ;-P

Essa “obra prima do pensamento humano” pode ser encontrada no seguinte link e foi desse texto que eu extraí o trecho transcrito logo abaixo.

http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2000/09/10/cad939.html

“É ESSA AUSÊNCIA DE SENSO PRÁTICO LITERÁRIO QUE ME FAZ SENTIR QUE UM CRÍTICO QUE ELEVA A CRIAÇÃO DE HOBBITS E MIDDLE EARTH ACIMA DO QUE REALIZARAM YEATS, ELIOT, CONRAD, JOYCE, D.H. LAWRENCE OU AUDEN OU É ARTISTICAMENTE SURDO OU INOFENSIVAMENTE CADUCO. APÓS OS TRAUMAS DAS GUERRAS DO SÉCULO PASSADO, É SIMPLESMENTE PERVERSO ATRIBUIR GRANDEZA À ESSA ESTRANHAMENTE SIMPLIFICADA TERRA-DO-NUNCA PSEUDOTEUTÔNICA, ONDE RAÇAS SE MISTURAM À VONTADE E GRANDES BATALHAS SÃO TRAVADAS, MAS ONDE NÃO HÁ NUNCA, NENHUM TRATAMENTO CONVINCENTE, POR REMOTO QUE SEJA, DAQUELAS PREOCUPAÇÕES HUMANAS FUNDAMENTAIS POR MEIO DAS QUAIS TODAS AS SOCIEDADES, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, SE DEFINEM – RELIGIÃO, FILOSOFIA POLÍTICA E CONDUTA NAS RELAÇÕES SEXUAIS.”

(TRADUÇÃO DE TAMARA DIAMANT SCHULHOF)

Devo dizer que , no processo de fazer esse ensaio, eu cheguei a desejar que o crítico tivesse razão…

Paulo Eduardo Lages 19/11/2001


Nota do Autor para a versão revisada: Esse ensaio deve muito aos comentários feitos por Raphael Linhares, do Rio de Janeiro, na Mailing List da Valinor. Suas referências à identificação do Caos com o Inconsciente, explicada por Joseph Campbell em seus livros, foram de inestimável valor. O mesmo pode ser dito sobre as gentis correções feitas sobre a tradução das passagens em Inglês.

Agradecimentos também são devidos a Fábio Bettega pela menção feita à carta nº 144 e aos membros da Mailing List da Valinor por suas conversas que sempre induzem à reflexão e à pesquisa.

É importante mencionar, igualmente, os responsáveis por todos os textos transcritos e/ou para os quais foram criados links no corpo do ensaio, a “comunidade Tolkien” mundial, por fornecer precioso material de pesquisa, e os tradutores de O Senhor dos Anéis ( o autor da primeira tradução brasileira ( vols 1 e 2), Antônio Ferreira da Rocha) e do Silmarillion ( edição portuguesa, traduzida por Fernanda Pinto Rodriques).

Para todas essas pessoas, o meu muito obrigado.

Paulo Eduardo Lages

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