A minha idéia é um tanto amalucada, mas acho que faz bastante sentido. A gente às vezes não repara, mas "O Senhor dos Anéis", na verdade, é uma pseudotradução — um livro estruturado como se fosse a tradução de uma obra mais antiga, o legendário Livro Vermelho do Marco Ocidental.
O que menos gente ainda repara é que quase todas as outras obras de Tolkien — de "O Silmarillion" ao humilde "Mestre Gil" — encaixam-se na mesma categoria. Minha intenção é mostrar como essa característica é, na verdade, muito importante, e como ela ajuda a dar a forte sensação de "real" da obra tolkieniana. Sem mais delongas, confiram o projeto abaixo!
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In many voices and many tongues – Pseudotradução, auto-refração e profundidade cultural na ficção de J.R.R. Tolkien
Introdução
“Mas no campo onde agoram estavam uma grande hoste se apresentava, em fileiras e companhias que brilhavam ao sol. E quando os hobbits se aproximaram espadas foram desembainhadas, e lanças foram sacudidas, e chifres e trombetas soaram, e os homens gritaram com muitas vozes e muitas línguas:
Cuio i Pheriain anann! Aglar’ni Pheriannath!
Louvai-os com grande louvor, Frodo e Samwise!
Daur a Berhael, Conin en Annûn! Eglerio!
Louvai-os!
Eglerio!
A laita te, laita te! Andave laituvalmet!”
(J.R.R. Tolkien, O Retorno do Rei)
O fato mais negligenciado (e provavelmente um dos mais importantes) a respeito de O Senhor dos Anéis, principal obra de ficção do filólogo e escritor britânico J.R.R. Tolkien (1892-1873), é que se trata de uma pseudotradução. E não de qualquer pseudotradução: por mais que esse artifício seja, em si, de uso corrente ao longo dos séculos de tradição literária ocidental, poucos autores se deram também ao trabalho de criar para a sua “ficção da tradução” coisas como uma genealogia de manuscritos (da mesma ordem da que pode ser traçada para o texto dos Evangelhos, ou o das Canterbury Tales), anotando as divergências de conteúdo ou até de caligrafia que podem ser encontradas entre os diferentes copistas e, em alguns casos, usando glosas para corrigir informações atribuídas ao autor original.
O procedimento é tão intrincado que chega a abranger O Hobbit, “prólogo” de O Senhor dos Anéis publicado quase duas décadas antes: nesse caso, diferenças entre a primeira e a segunda edição do livro (esta publicada pouco antes da obra maior) são explicadas como variantes na tradição de manuscritos.
Se o procedimento pode passar despercebido no caso do livro mais lido de Tolkien, não é de se admirar que pouca gente tenha notado outro fato intrigante: quase todas as outras obras de ficção do autor também se fundamentam, em maior ou menor grau, na pseudotradução. Além do framework completo de uma tradição de manuscritos que chega às mãos do autor-pseudotradutor, como acontece em O Senhor dos Anéis, o universo ficcional tolkieniano, em suas várias facetas, é quase sempre multicultural e multilingüístico, de forma que a tradução – e os ruídos, imperfeições e possibilidades que a acompanham – nunca se afasta muito do pano de fundo da ação.
Tal característica deriva diretamente do treinamento de filólogo do autor, que tanto o impulsionou a criar um conjunto impressionante de línguas ficcionais, cada qual com sua própria história de evolução fonética e sintática, quanto a usar o que sabia sobre o desenvolvimento diacrônico da língua inglesa para embutir simulacros de cultura e história em sua trama. E, finalmente, há que se considerar o papel do que se pode chamar de um outro nível de tradução – as chamadas refrações – dentro da estrutura ficcional tolkieniana. Além da tradução propriamente dita, a refração tem papel-chave ao trazer o mesmo evento da mitologia de Tolkien recontado sob perspectivas diferentes, por personagens diferentes e com o auxílio de formas literárias diferentes – da prosa à poesia mais elaborada.
Esses elementos são recorrentes e bem amarrados demais para que tais características sejam coincidência, mero capricho ou “jogo de paciência” literário. Pelo contrário, parece-me justificado afirmar que elas estão entre as maiores responsáveis por conferir a O Senhor dos Anéis (e, por extensão, ao conjunto da obra tolkieniana) o que um dos principais estudiosos do autor chama de “profundidade cultural incomum” (SHIPPEY, 1992).
À primeira vista, o termo parece um tanto vago demais. Mas o treinamento de filólogo de Shippey, e o fato de ter ocupado a mesma cátedra de Tolkien na Universidade de Oxford, provavelmente lhe conferem a capacidade ideal para dar um sentido preciso à expressão. Em síntese, a mitologia (ou legendarium, termo preferido por Tolkien) do autor britânico consegue conjurar um “sentido de real” incomumente forte por estar dotada de um arcabouço detalhado de história lingüística.
Como todo aspecto do pensamento, da vivência e da sociedade humana no “mundo real” depende diretamente da linguagem simbólica e da história e do mito que se tornam possíveis graças a ela, o legendarium tolkieniano “soa” profundamente real. E ele tem essa propriedade porque o autor utilizou habilmente os mesmos elementos que forjaram a história lingüística dos povos do Ocidente, como conhecedor profundo das regularidades subjacentes a essa história.
O presente trabalho se propõe a examinar em detalhe a importância da pseudotradução e da refração para que um objetivo tão grandioso tenha, em grande medida, alcançado êxito.
Justificativa
A proposta se justifica, em primeiro lugar, por se tratar de um aspecto consideravelmente negligenciado do trabalho literário de Tolkien. O único trabalho acadêmico de porte a ter como foco o uso da pseudotradução pelo autor é, até onde pude apurar, a dissertação de mestrado recentemente defendida por minha colega Dircilene Fernandes Gonçalves (2006).
O trabalho é meritório por chamar a atenção para a questão, mas restringiu seu olhar ao conteúdo de O Senhor dos Anéis, além de discutir principalmente questões mais gerais sobre a pseudotradução dentro da teoria da tradução, sem abordar de forma direta ou abrangente a intersecção entre esse problema e a criação da profundidade cultural dentro do legendarium do autor. Creio ser necessária uma visão de conjunto sobre a ficção de Tolkien para que isso se torne possível.
Ademais, novas publicações do espólio tolkieniano, realizadas ao longo das décadas de 1990 e 1980 e ainda não concluídas, trazem dados importantes e, por enquanto, pouco explorados para a discussão. Tais textos, embora publicados postumamente, mostram que a escala da “ficção da tradução” tolkieniana pode ser subestimada mesmo por quem está suficientemente familiarizado com o procedimento em O Senhor dos Anéis.
Basta mencionar que existem versões extensas de episódios do legendarium, ou mesmo de anais com resumos desses acontecimentos listados por ano, escritos em inglês antigo ou anglo-saxão – língua que constituía um dos principais campos de interesse filológico e literário de Tolkien. Esses textos póstumos também mostram em que grau a refração interna – ou auto-refração, como decidi designá-la no título do presente trabalho – é um procedimento muito disseminado em toda a obra de ficção de Tolkien.
É claro que isso, em parte, é conseqüência das revisões obsessivas às quais o escritor submetia sua mitologia particular. No entanto, mesmo quando esse fator é levado em conta, pode-se ver a auto-refração mesmo dentro do material publicado durante a vida dele.
Finalmente, é preciso ressaltar o impacto de O Senhor dos Anéis e da obra tolkieniana como fenômenos literários de massa. Ousaria argumentar que a “profundidade cultural incomum” do legendarium de Tolkien é um dos esteios dessa capacidade de se infiltrar no imaginário coletivo e da força literária da obra. Por ambos os motivos – popularidade e consistência literária –, é importante entender como isso acontece.
O presente trabalho visa a trazer uma contribuição decisiva para esse campo, apesar do muito já realizado por autores como Shippey. A diferença é, obviamente, a perspectiva única para o debate que os estudos da tradução são capazes de proporcionar.
Objetivos
Conforme o que já foi esboçado acima, minha propoj.sta é analisar o uso da pseudotradução e da auto-tradução em toda a obra de ficção de J.R.R. Tolkien, incluindo os livros publicados durante a vida do autor e a grande quantidade de material inédito trazido à tona postumamente por seu filho Christopher Tolkien.
O momento parece ideal para isso, uma vez que não existem mais trabalhos substanciais de ficção de Tolkien que ainda estejam à espera de publicação.
A intenção de usar material póstumo talvez cause algum desconforto. No entanto, considero a proposta defensável por dois motivos. Em primeiro lugar, a análise desse material não-publicado, embora revele o perfeccionismo tolkieniano levado até o paroxismo e sua provável intenção de não levar tais textos ao prelo sem muito mais refinamento, também mostra que havia uma relação orgânica entre material publicado e não-publicado. O mais comum era que Tolkien alterasse um texto inédito para manter a consistência com O Senhor dos Anéis, por exemplo, mas as narrativas inéditas também funcionavam como pano de fundo e base dos pedaços do legendarium já conhecidos do leitor.
Em segundo lugar, as inevitáveis intervenções de Christopher Tolkien para que os manuscritos de seu pai alcançassem forma publicável devem permitir abordar questões como o significado da autoria, discussão que nunca está muito distante dos estudos da tradução e que, nesse contexto, poderá ser abordada de um novo ângulo.
Assim, utilizando esse ponto de vista necessariamente abrangente, o principal objetivo será mostrar as grandes tendências da pseudotradução e da auto-refração no legendarium tolkieniano, de forma a tornar claro como esses procedimentos não são acessórios, mas elementos fundadores de sua mitologia ficcional.
Metodologia de pesquisa
Este projeto envolverá três momentos distintos de pesquisa. O primeiro é o levantamento exaustivo da obra de ficção tolkieniana e de sua classificação estatística dentro das categorias da pseudotradução e/ou auto-refração: pretende-se quantificar da forma mais precisa possível quais textos usam esses procedimentos e classificá-los de acordo com tal critério, levando em conta também fatores como obras publicadas em vida e obras póstumas.
O segundo momento deverá ser a análise detalhada desses procedimentos em cada obra, mostrando como eles contribuem para a ilusão de profundidade cultural e para as características literárias gerais de cada narrativa.
Finalmente, o momento da síntese: lançar um olhar geral para o conjunto da obra de ficção tolkieniana e determinar quais são as grandes tendências e a unidade por trás desses procedimentos na maioria das obras.
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É isso! Até novembro deverei saber se meu projeto foi aprovado na USP. Desejem-me sorte!