Parece estabelecido por toda a eternidade, em todas as latitudes, que o prazer não deva figurar nos programas das escolas e que o conhecimento não pode ser outra coisa senão fruto de um sofrimento bem comportado.
Daniel Pennac. Como um romance.
A burrice do sistema de educação brasileiro ao tratar do assunto “Literatura” conseguiu, em algumas décadas, transformar o que um dia foi o prazer da leitura em uma forma de tortura lenta e letal, digna dos mais cruéis inquisidores. Estranho. Lembro-me distintamente de, na década de 1960, uma professora minha indicar a leitura de A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, e desencadear a euforia entre os alunos. Li aquele livro umas cinco vezes, encantada com as características românticas presentes na história. Lembro-me ainda de encontrar, na estante de um sebo, um exemplar de As mágoas do jovem Werther, de Goethe, e comprar o livro correndo, para me deliciar com as paixões do personagem – antes, é claro, de ele terminar com a própria existência. Na época, nada acalmava mais as emoções adolescentes do que um bom exemplar do Romantismo na literatura. Victor Hugo, Goethe, Edgar Alan Poe e, em terras tupiniquins, o inefável José de Alencar, além de Machado de Assis em sua primeira fase (Ah! Como era triste ler Helena!), eram autores amados: impossível esquecer o prazer que tive, aos 13 ou 14 anos, quando li O Guarani. A cena final, com Peri e Cecília sumindo no turbilhão do rio, ficou indelevelmente marcada em minha mente. Eu li, ou devorei, vários livros do chamado período romântico por escolha, por vontade própria, pela curiosidade em mergulhar nas histórias.
Por que, então, os autores românticos são hoje execrados pelos leitores jovens? Simples. Porque sua leitura se tornou obrigatória… Porque o Romantismo virou matéria escolar, não mais uma fonte de livros que podem ecoar o turbilhão da puberdade e dar vazão a ele.
Hoje temos autores como André Vianco, Stephanie Meyer, Stephen King, J. K. Rowling como campeões de vendas para o segmento jovem. Uma literatura desprezada pelos críticos e, no entanto, geradora de best-sellers. Literatura – aham! – Fantástica. Terror, magia, fantasia… Mas, e se os leitores soubessem desse segredo tão cuidadosamente guardado pelos professores de Literatura – se todos soubessem que os autores do Romantismo foram pioneiros ao trabalhar o Fantástico? Pior, se soubessem que até autores do chamado Realismo – corrente ainda mais temida que o Romantismo! – cometeram contos fantásticos?
O Romantismo costuma ser definido como a corrente literária que busca solucionar o mistério da existência. Quem é o herói da poesia e do romance dessa época? É o “Eu”, o indivíduo que se sobressai entre as contingências massacrantes ou injustas da sociedade. O “Eu”, esse misterioso e incompreendido ser que habita cada homem, ascende ao plano da literatura como o Herói romântico: ora exaltado, dinâmico e generoso em seus ideais de amor e de solidariedade humana, ora melancólico, deprimido e desesperançado, face às forças contrárias que a vida desencadeia contra ele.[1]
Reação contra um classicismo racional, severo, tanto em forma quanto em conteúdo, os autores românticos chegaram para arrebentar, fazer barulho, negar modelos, gritar, chorar, angustiar-se, brigar pela liberdade – todas as formas de liberdade, até a de morrer de amor! – e pela emoção.
É de se admirar, então, que seus autores não tenham se limitado a falar do real, mas tenham mergulhado também no irreal, no sobrenatural, no fantástico?
São obras românticas por excelência o Werther e o Fausto, de Goethe; Os Miseráveis e Notre Dame de Paris, de Victor Hugo. Na Inglaterra teremos, inseridos nesse rótulo, autores tão diversos quanto Walter Scott, Jane Austen, Charles Dickens, Emily Brontë (Como eu chorei ao ler David Copperfield e O Morro dos Ventos Uivantes!)… No Brasil, os já citados José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, além de Bernardo Guimarães (A Escrava Isaura), Visconde de Taunay (Inocência), e os poetas Castro Alves, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo. É deste último (como todo bom poeta romântico, morto na juventude) o exemplar:
Cavaleiro das armas escuras,
onde vais pelas trevas impuras
com a espada sangrenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
e gemidos nos lábios frementes
vertem fogo do teu coração?
Está aí um poema que poderia ser facilmente transposto para uma cena de cinema, como tantas obras de literatura fantástica e pseudo-histórica que hoje ganham as telas! Sim, os autores românticos foram apaixonados pelo chamado ‘romance histórico’. E, por outro lado, buscaram também o imaginoso, o não-histórico:
Em pólo contrário,o da inverossimilhança ou do fantástico, surgem ainda certas manifestações da prosa romântica. O sentido oculto do mundo manifesta-se como “o maravilhoso”. Mais ou menos em fins do século XVIII o fantástico torna-se uma forma literária bem definida na Inglaterra, uma forma que se funda na impressão do terror, explicada ou não de modo racional. Castelos encantados, mal-assombrados, arrepios noturnos, aparições são a matéria com que trabalham essas narrativas fantásticas. Nathaniel Hawthorne, Edgar Allan Poe, Barbey d’Aurevilly são alguns dos que manipularam o elemento sobrenatural em suas obras. [2]
Mas não foram só eles. Honoré de Balzac, Nikolai Gogol, Théophile Gautier, Ivan Turguêniev, Ambrose Bierce, Robert Louis Stevenson, Henry James, todos deram suas passeadas pelo fantástico, em especial no gênero conto. Na verdade, difícil é encontrar um autor dos séculos XVIII ou XIX que não tenha se aventurado nesse mar. O que estou dizendo? É praticamente impossível encontrar qualquer autor que não tenha escrito ao menos um conto fantástico na vida! E já estou falando dos autores dos séculos XX e XXI…
Voltando ao Romantismo e ao asco que esse rótulo provoca em nossos jovens leitores, talvez isso mudasse se os professores se acostumassem à prática da leitura compartilhada, em voz alta, destacando o prazer da narrativa e se aproveitando da vertente fantástica de todos os autores clássicos. Afinal, como nos diz Ítalo Calvino:
À nossa sensibilidade de hoje, o elemento sobrenatural que ocupa o centro desses enredos aparece sempre carregado de sentido, como a irrupção do inconsciente, do reprimido, do esquecido, do que se distanciou de nossa atenção racional. Aí estão a modernidade do fantástico e a razão da volta de seu prestígio em nossa época. Sentimos que o fantástico diz coisas que se referem diretamente a nós, embora estejamos menos dispostos do que os leitores do século passado a nos deixarmos surpreender por aparições e fantasmagorias, ou melhor, estamos prontos a apreciá-las de outro modo, como elementos da cor da época.[3]
Para quem gosta de fantasia e terror, então, nada melhor do que buscar os clássicos. Bem vindos a essa nova velha faceta do Romantismo!
Leituras sugeridas:
Calvino, Ítalo (org.). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Coelho, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. São Paulo: Vozes, 1994.
Pennac, Daniel. Como um romance. Porto Alegre: L&PM/ Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
[1] Coelho, Nelly Novaes. A Era Romântica (século XIX) in: Literatura e Linguagem.
[2] Coelho, Nelly Novaes. Op. Cit.
[3] Calvino, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX.
Parabéns, belo texto!
adoruh