Autor: John Ronald Reuel Tolkien

  • Círdan

    Círdan

    CírdanEsse texto é retirado do HoME 12 e os comentários feitos por Christopher Tolkien ao texto de seu pai, J.R.R. Tolkien, encontram-se em itálico 
    Este breve manuscrito também é associado com a discussão de Glorfindel: o rascunho• do mesmo é encontrado no verso de uma das páginas do texto Glorfindel II.

    Está é apalavra Sindarin para ´Armador´, [29] e descreve sua função posterior na história das Primeiras Três Eras, mas seu nome ´próprio´,isto é, seu nome original entre os Teleri, dos quais ele fazia parte, nunca é utilizado [30]. É dito nos Anais da Terceira Era (c. 1000) que ele poderia ver mais longe e profundamente o futuro do que qualquer um na terra-média [31]. Isto não inclui os Istari (que vieram de Valinor), mas inclui mesmo Elrond, Galadriel e celeborn.

    Círdan era um Elfo Telerin, um dos mais nobres daqueles que não foram transportados a Valinor, mas vieram a se tornar os Elfos-cinzentos[32]. Ele era parente de Olwë, um dos dois reis dos Telerin e senhor daqueles que partiram por sobre o Grande Mar. Ele é também parente de Elwë [33], o irmão mais velho de Olwë, aceito como Alto Rei de todos os Teleri em Beleriand, mesmo após ele ter se recolhido ao reino protegido de Doriath. Mas Círdan e seu povo permaneceram de muitas formas distintos do resto dos Sindar. Eles mantiveram o alntigo nome Teleri (em Sindarin tardio [34] Eorm Telir ou Telerrim) e permaneceram de muitas forma um povo à parte, falando, mesmo em tempos posteriores, uma língua mais arcaica [35]. Os Noldor os chamavam Falmari, “povo das ondas”, e outros Sindarin de Falathim, “povo da costa espumante” [36].

    Foi durante a longa espera dos Teleri pelo retorno da ilha flutuante, sobre a qual os Vanyar e Noldor foram transportados sobre o Grande Mar, que Círdan direcionou seus pensamentos e habilidade para a construção de barcos, pois ele e todos os demais Teleri se tornaram impacientes. Apesar de tudo é dito que por amor e lealdade aos seus Círdan era o líder daqueles que procuraram longamente por Elwë quando este estava perdido e não foi ao litoral para partir da Terra-média. Assim ele adiou sem maior desejo: ver o Reino Abençoado e encontrar novamente Olwë e seus parentes próximos. Dessa forma ele não atingiu o litoral até praticamente todos os Teleri seguidores de Olwë terem partido.

    Então, é dito, ele permaneceu abandonado olhando o mar, e era noite, mas muito distante ele podia ver o brilhar da luz sobre Eressëa antes desta desaparecer no Oeste. Então ele gritou alto: ´Seguirei aquela luz, sozinho se ninguém quiser ir comigo, pois o navio que eu estiveconstruindo está agora quase pronto´. Mas quando ele disse isso recebeu em seu coração uma mensagem, que ele reconheceu vir dos Valar, embora em sua mente ele tenha lembrado como uma voz falando em sua própria língua. E a voz o alertou para não tentar este feito: pois sua força e habilidade não seriam capazes de construir nenhum barco capaz de desafiar os ventos e ondas do Grande Mar ainda por longos anos. ´Permaneça até aquele tempo, pois quando ele chegar seu trabalho será da máxima importância, e será lembrado em canções por muitas eras´. ´Eu obedeço´, Círdan respondeu, e então pareceu a ele ter visto (em uma visão, talvez) uma forma como a de um navio branco, brilhando sobre ele, que navegou para o oeste através do ar, e enquanto diminuia ao longe parecia como uma estrela de brilho tão grande que lançava uma sombra de Círdan sobre a praia onde ele estava.

    Como sabemos agora, esta era a previsão do navio que após os ensinamentos de Círdan e com seus conselhos e ajuda, Earendil construiu, e no qual ele finalmente atingiu as prais de Valinor. Daquela noite em diante Círdan recebeu um poder de previsão em todos os assuntos importantes, além da medida de todos os outros Elfos na Terra-média.

    Este texto é extraordinário pois por um lado nada é dito sobre a história e importância de Círdan como aparece em outros lugares, enquanto por outro lado quase tudo que é dito aqui é único. Nos “Anais Cinzentos” é dito (XI.8, $14):

    Ossë persuadiu muitos a ficarem em Beleriand, e quando o Rei Olwë e seu grupo embarcaram na ilha e passaram sobre o Mar eles permaneceram no litoral, e Ossë retornou a eles e continuou sua amizade com eles. E ele ensinou-os a arte da contrução de navios e da navegação, e eles setornaram um povo de marinheiros, os primeiros da Terra-média.

    Mas de Ossë agora não existe menção, a construção de navios no litoral de Beleriand é dito ter começado nos longos anos de espera dos Teleri pelo retorno de Ulmo, e é mencionado como (ver nota 29) como uma evolução de uma arte já desenvolvida entre os teleri durante a Grande
    Jornada.

    Outras características deste texto que não aparecem em nenhum outrolugar (em adição, claro, da história do desejo de Círdan de cruzar o Mar até Valinor e sua visão do navio branco indo a oeste através da noite, acima dele) são o fato dos teleri terem se demorado nas costas do Mar de Rhun durante a Grande Jornada (nota 29) que Círdan era olíder destes que buscavam por Elwe Thingol, seu parente, e que Eärendil foi ´ensinado´ por Círdan, que o auxiliou na construção de Vingilot.

    Notas

    29. Mesmo antes de chegarem a Beleriand os Teleri desenvolveram a arteda construção de barcos: primeiro como balsas e logo como barcos com remos em imitação aos pássaros aquáticos dos lagos próximos às suas casas iniciais ou especialmente durante sua longa permanência nos litorias do ´Mar de Rhun´, onde seus navios se tornaram maiores e mais fortes. Mas em todos estes trabalhos Círdan sempre foi o principal e mais inventivo e hábil.

    30. Apenas Pengoloh menciona uma tradição entre os Síndar de Doriath de que este era em sua forma arcaica Nowë, cuja significado original é incerto, assim como o de Olwë.

    31. [Apêndice B (nota de topo da Terceira Era): ´Pois Círdan via mais longe e mais profundamente do que qualquer outro na Terra-média´ (dito no contexto da entrega de Narya, o Anel de Fogo, a Mithrandir). Esta afirmação aqui na qual é dita ´nos Anais da Terceira Era (c.1000)´ é confusa, mas presumivelmente relatada às palavras da mesma passagem do Apêndice B ´Quando talvez mil anos se passaram… os Istari ou Magos apareceram na Terra-média´.]

    32. Um nome Queny dado pelos exilados Noldor, e primariamente aplicado ao povo de Doriath, povo de Elwë Capa-cinzenta.

    33. [Que Círdan era um parente de Elwë é mencionado no “Quendi e Eldar”]

    34. Este é usado como um termo geral para o dialeto Teleriano do Eldarin, para o que veio a ser depois das mudanças de longos anos em beleriand, embora não seja inteiramente uniforme em seu desenvolvimento.

    35. [“Quendi e Eldar”: ´Os Eglain tornaram0se um povo de alguma formaseparado dos Elfos do interior, e ao tempo da chegada dos Exilados sua língua era de muitas formas diferente´. (os Eglain eram o povo de Círdan)].

    36. [Para Falatrhim ver “Quendi e Eldar”; e sonre Falmari: ´os Elfos do Mar se tornaram em Valinor os Falmari, pois faziam música junto às ondas quebrando na praia.´]

  • As Andanças de Húrin (The Wanderings of Hurin)

    As Andanças de Húrin (The Wanderings of Hurin)

    As andanças do infeliz Húrin, após ser liberto por Melkor.

    E assim terminou o conto de Túrin o infeliz, o pior dos trabalhos de Morgoth entre os Homens no mundo antigo. Mas Morgoth não dormiu nem descansou de sua maldade, e esse não foi o fim de seus negócios com a Casa de Hador, contra a qual sua malícia era insaciável, pois Húrin estava sob seu Olho, e Morwen vagava perturbada pelos ermos.Infeliz era a sina de Húrin. Pois tudo o que Morgoth sabia das maquinações de sua malícia, Húrin sabia também; mas suas mentiras eram misturadas com a verdade, e tudo aquilo que era bom era escondido ou distorcido. Aquele que enxerga através dos olhos de Morgoth, querendo ou não, enxerga todas as coisas corrompidas.

    Um dos esforços especiais de Morgoth era lançar uma luz maligna sobre tudo aquilo que Thingol e Melian construíram, pois ele os temia e odiava acima de tudo; e quando, então, considerou ter chegado a hora, no ano após a morte de Túrin, libertou Húrin, permitindo que partisse para onde desejasse.

    Ele mentiu que fora movido pela pena de um inimigo completamente derrotado, maravilhado por sua resistência. ‘Tal firmeza’, disse ele, ‘deveria ter se mostrado em uma causa melhor, e teria sido recompensada de outra forma. Mas eu não tenho mais uso para você, Húrin, na sua pálida vidinha.’E ele mentiu, pois seu propósito era que Húrin continuasse a estender a sua malícia contra Elfos e Homens, antes de morrer.

    Então, mesmo não acreditando em praticamente nada do que Morgoth dissera ou fizera, sabendo que ele não estava piedoso, ele pegou a sua liberdade e seguiu em pesar, amargado pelos artifícios do Senhor do Escuro. Por vinte e oito anos, Húrin estivera cativo em Angband…

    É dito que os caçadores de Lorgan seguiram seus rastros e não abandonaram sua trilha até que ele e seus companheiros subiram pelas montanhas. Quando Húrin chegou novamente aos lugares altos, ele olhou de relance pelas nuvens nos picos da Crisaegrim, e ele lembrou de Turgon; e seu coração desejou retornar para o Reino Escondido, se pudesse, ou ao menos lá ele seria lembrado com honra.

    Ele não ouviu nenhuma das coisas que aconteceram em Gondolin, e não sabia que Turgon endurecera seu coração contra a sabedoria e a piedade, e não permitia que ninguém entrasse ou saísse por qualquer motivo. Então, sem saber que todos os caminhos estavam trancados além da esperança, ele resolveu rumar em direção a Crisaegrim, mas ele nada falou aos seus companheiros sobre seus propósitos, pois ele ainda estava ligado ao seu juramento de não revelar a ninguém que conhecesse sequer a região em que Turgon habitava.

    Porém ele precisava de ajuda; pois ele nunca vivera nos ermos, onde foras-da-lei estavam há muito acostumados à vida dura de caçadores e ceifeiros, e carregavam consigo tanta comida quanto conseguiam, apesar de o Inverno Mortal ter diminuído seus mantimentos. Assim, Húrin falou a eles: ‘Nós devemos abandonar esta terra agora; pois Lorgan não me deixará mais em paz. Rumemos para os vales do Sirion, onde a primavera finalmente chegou!’

    Então Asgon os guiou por um dos antigos caminhos que levavam para o leste de Mithrim, e eles desceram pelas nascentes do Lithir, até que chegaram às cachoeiras que corriam até o Sirion ao final da Terra Estreita. E lá eles chegaram exaustos, pois Húrin confiava pouco na ‘liberdade’ que Morgoth lhe garantira. E ele estava correto: Morgoth tinha notícias de todos os seus movimentos, e o tempo em que esteve escondido nas montanhas, a sua descida foi rapidamente espionada. A partir de então, ele foi seguido e observado com tal astúcia que ele raramente tinha qualquer pista disso. Todas as criaturas de Morgoth evitavam o seu caminho, e ele não foi emboscado ou atacado.

    Eles rumaram para o sul, pelo lado oeste do Sirion, e Húrin pensava consigo mesmo como se separar de seus companheiros, ao menos por tempo suficiente para poder procurar por uma entrada para Gondolin sem trair a sua palavra. Finalmente eles alcançaram Brithiach, e lá Asgon disse a Húrin: ‘Para onde iremos agora, Senhor? Além deste vau os caminhos são muito perigosos para os homens mortais, se o que dizem é verdade.’

    ‘Então rumemos para Brethil, que é perto daqui,’ disse Húrin. ‘Eu tenho uma missão lá. Naquela terra meu filho morreu.’

    Então, naquela noite eles se abrigaram em um bosque de árvores, as primeiras da Floresta de Brethil em sua fronteira norte, próxima do sul do Brithiach.

    Húrin se deitou separado dos outros; e no dia seguinte antes do Sol nascer, enquanto eles dormiam exaustos, ele os abandonou e cruzou o vau e chegou a Dimbar.

    Quando os homens despertaram, ele já estava longe, e havia uma grossa neblina da manhã sobre o rio. O tempo passou e, não tendo retornado nem respondido aos chamados, eles começaram a temer que ele fora atacado por alguma fera ou por algum inimigo que espreitava. ‘Nós fomos negligentes’, disse Asgon. ‘A terra está quieta, quieta demais, mas existem olhos sob as folhas e ouvidos atrás das pedras.’

    Eles seguiram o seu rastro quando a neblina se ergueu; mas ele levou para o vau e lá desapareceu, e eles estavam perdidos. ‘Se ele nos deixou, deixe-nos voltar para nossa terra,’ disse Ragnir. Ele era o mais novo na companhia, e pouco recordava dos dias que antecederam a Nirnaeth. ‘O raciocínio do velho é selvagem. Ele fala com com a sombra com vozes estranhas enquanto dorme.’

    ‘Pouco me espanta se for verdade’, disse Asgon. ‘Mas quem mais poderia permanecer tão forte depois de tanta angústia? Não, ele é nosso senhor, faça o que fizer, e eu jurei segui-lo.’

    ‘Até mesmo para o leste além do vau?’ perguntaram os outros.

    ‘Não, existe pouca esperança naquele caminho’, disse Asgon, ‘e eu não creio que Húrin irá muito distante por lá. Tudo o que sabemos de seus propósitos é que ele queria ir o mais cedo possível para Brethil, e que ele tem uma missão lá. Nós estamos exatamente na fronteira. Vamos procurar por ele lá.’

    ‘Com a permissão de quem?’ disse Ragnir. ‘Os homens de lá não gostam de estranhos.’

    ‘Bons homens habitam lá,’ disse Asgon, ‘e o Senhor de Brethil é parente dos nossos Senhores.’ Mesmo assim, os outros estavam em dúvidas, pois nenhuma notícia tem saído de Brethil nos últimos anos. ‘Pode ser governado por Orcs, pelo que sabemos,’ disseram eles. ‘Nós logo iremos descobrir como andam as coisas’, disse Asgon. ‘Orcs são pouco piores que o povo do Leste, eu acho. Se foras-da-lei devemos permanecer, eu prefiro espreitar pelas belas florestas em vez das colinas geladas.

    Então Asgon foi em direção a Brethil; e os outros o seguiram, pois ele tinha um coração resoluto e os homens diziam que ele nascera com boa sorte. Antes do fim daquele dia eles já estavam nas profundezas da floresta, e a chegada deles estava marcada; pois os Haladin estavam mais atentos do que nunca, e observavam suas fronteiras de perto. Na hora cinza que antecede a manhã, praticamente todos os intrusos dormiam, seu acampamento foi cercado e seus vigias foram amordaçados logo que alertaram os outros.

    Então Asgon se levantou, e mandou que seus homens não desembainhassem suas armas. ‘Vejam agora,’disse ele, ‘nós viemos em paz! Nós somos Edain de Dorlomin.’

    ‘Mas o porquê da sua vinda eu não sei,’disseram os vigias. ‘Mas a manhã ainda está escura. Nosso líder irá fazer melhor julgamento de vocês quando estiver mais claro.’

    Então, com muitos homens a menos, Asgon e seus homens foram feitos prisioneiros, e suas armas foram tomadas e suas mãos atadas; e assim foram levados para a frente do novo Senhor dos Haladin.

    Ele era Harathor, irmão de Hunthor, que morreu na ravina de Taeglin. Pela a morte de Brandir, que não deixara filhos, ele herdara o comando por descendência de Halad. Ele não tinha amor por aqueles da casa de Hador, e não compartilhava do mesmo sangue; e disse para Asgon, quando os capturados estavam perante ele: ‘De Dorlomin você vem, me disseram, e sua fala comprova isso. Mas o porquê da sua vinda eu não sei.’

    ‘Então são Edain do norte,’disse ele. ‘Sua fala comprova isso, bem como seus equipamentos. Você busca amizade, talvez. Mas ai de mim! coisas más recaíram sobre nós aqui, e nós vivemos com medo. Manthor, meu senhor, Mestre da Marca do Norte, não está aqui, e eu devo, então, obedecer aos comandos de Halad, o líder de Brethil. Para ele vocês devem ser enviados sem mais perguntas. Lá vocês poderão ter alguma sorte!’

    Então Ebor falou cortesmente, mas ele não tinha muitas esperanças. Pois o novo líder era agora Hardang, filho de Hundad. Na morte de Brandir sem filhos, ele foi feito Halad, sendo um dos Haladin, da família de Haleth, de onde todos os capitães eram escolhidos. Ele não amava Túrin, e ele agora não possuía amor nenhum pela Casa de Hador, de cuja linhagem ele não fazia parte. Nem tinha muita amizade por Manthor, que também era dos Haladin.

    Para Hardang, Asgon e seus homens seguiam caminhos desonestos, e eles foram vendados. Assim, finalmente chegaram ao salão dos capitães em Obel Halad; e seus olhos foram descobertos, e os guardas os conduziram para dentro. Hardang estava sentado em sua grande cadeira, e ele os encarou com frieza.

    ‘Vocês vêm de Dor-lómin, segundo me disseram,’ disse ele. ‘Mas porque vocês vieram aqui eu não sei. Poucas coisas boas vêm para Brethil daquela terra, e eu não estou olhando para nenhuma coisa boa agora: é um feudo de Angband. Saudações frias encontrarão aqui, se esgueirando até aqui para nos espionar!’

    Asgon controlou sua fúria, mas respondeu, determinado: ‘Nós não nos esgueiramos até aqui, senhor. Nós somos tão hábeis nas florestas quanto seu povo, e nós não teríamos sido capturados tão facilmente se tivéssemos qualquer motivo para temer. Nós somos Edain, e não servimos Angband, mas defendemos a Casa de Hador. Nós pensávamos que os homens de Brethil fossem assim também, e amigáveis a todos os homens de boa-fé.’

    ‘Para aqueles que provaram a sua fé,’ disse Hardang. ‘Ser simplesmente Edain não é suficiente. E, no que concerne à casa de Hador, pouco amor é tido aqui. Por que o povo dessa casa vem aqui agora?’ Isto Asgon não respondeu; pois, devido à hostilidade do líder, ele achou melhor não mencionar Húrin ainda.

    ‘Percebo que não falarás tudo o que sabes,’ falou Hardang. ‘Que assim seja. Deverei fazer meu julgamento com o que vejo; mas serei justo. Este é meu julgamento. Aqui Túrin, filho de Húrin permaneceu por um tempo, e ele livrou a nossa terra da Serpente de Angband. Por isto, darei a vocês suas vidas. Mas ele desprezou Brandir, justo líder de Brethil, e ele o matou sem justiça ou piedade. Assim, não os darei abrigo. Vocês deverão sair por onde entraram. Vão agora, e se retornarem, retornarão para a morte!’

    ‘Não devolverão nossas armas?’ perguntou Asgon. ‘Nos lançarão de volta ao ermo sem arco e sem armadura para morrer entre os animais?’

    ‘Nenhum homem de Hithlum irá portar armas novamente em Brethil,’ disse Hardang. ‘Não com permissão minha. Tirem-nos daqui.’

    Mas enquanto eram arrastados para fora do salão, Asgon gritou: Esta é a justiça dos homens do Leste, não dos Edain! Nós não estivemos aqui com Túrin, para o bem ou para o mal. Nós servimos a Húrin. Ele ainda vive. Espreitando pelas suas florestas não o recorda a Nirnaeth? Vai desonrá-lo também, com seu rancor, se ele vier?’

    ‘Se Húrin vier, você diz?’ disse Hardang. ‘Quando Morgoth dormir, talvez!’

    ‘Não,’ disse Asgon. ‘Ele retornou. Com ele nós viemos até suas fronteiras. Ele tem uma missão a cumprir aqui, segundo nos disse. Ele virá!’

    ‘Então eu estarei aqui para encontrá-lo,’ falou Hardang. ‘Mas vocês não estarão. Agora vão!’ Disse ele em escárnio, mas sua face empalideceu em um medo súbito de que acontecera um presságio de que o pior ainda estaria por vir. Então um grande medo da sombra da Casa de Hador caiu sobre ele, e então seu coração ficou negro. Pois ele não era um homem de grande espírito, como eram Hunthor e Manthor, descendentes de Hiril.

    Asgon e sua companhia foram vendados novamente, para que não espionassem os caminhos de Brethil, e foram levados para a fronteira norte. Ebor estava insatisfeito quando ouviu do que aconteceu em Obel Halad, e ele falou a eles com cortesia.

    ‘Ai de mim!’, disse ele, ‘vocês devem seguir em frente novamente. Mas vejam! Eu devolvo a vocês suas armas e equipamentos. Pois é o que meu senhor Manthor faria, no mínimo. Quem dera ele estivesse aqui! Mas ele é o mais bravo entrenós; e pelo comando de Hardang, é o líder da guarda no vau de Taiglin. Lá nós temos mais medo de investidas, e é onde a maioria dos ataques acontece. Bem, isto é o que farei; mas lhes imploro, não entrem em Brethil novamente, pois se o fizerem, nós seremos obrigados a obedecer à palavra de Hardang que se espalhou por todas as fronteiras: matar vocês assim que os encontrar.’

    Então Asgon o agradeceu, e os conduziu até as margens de Brethil, e os desejou uma boa jornada.

    ‘Bem, sua sorte permanece,’ disse Ragnir, ‘pois ao menos não fomos mortos, apesar disso ter quase acontecido. O que faremos agora?’

    ‘Eu ainda desejo encontrar meu senhor Húrin,’ disse Asgon, ‘e meu coração me diz que ele ainda virá para Brethil.’

    ‘Para onde não podemos retornar,’ disse Ragnir, ‘ao menos que procuremos por uma morte mais rápida que a fome.’

    ‘Se ele vier, ele virá, eu acho, pela fronteira norte, entre o Sirion e Taiglin,’ disse Asgon. É por lá que talvez teremos notícias.’

    ‘Ou flechas,’ disse Ragnir. Mesmo assim eles seguiram o conselho de Asgon e seguiram para o oeste, cuidando sempre as bordas negras de Brethil.

    Mas Ebor estava preocupado, e reportou rapidamente a Manthor sobre a vinda de Asgon e suas palavras estranhas sobre Húrin. Mas rumores correram por Brethil sobre este assunto. E Hardang reuniu-se em Obel Halad e se aconselhou com seus amigos.

    Agora Húrin, chegando a Dimbar, reuniu todas suas forças e rumou sozinho em direção aos pés negros de Echoriad. Toda a terra estava fria e desolada; e quando ela finalmente apareceu, imensa, à sua frente, e ele não conseguia encontrar formas de seguir adiante, ele parou e olhou em sua volta com pouca esperança. Ele estava agora no pé de uma grande avalanche sob uma imensa parede de pedras, e ele não sabia que era tudo o que restava do antigo Caminho de Escape: o Rio Seco estava seco e o portão arqueado, enterrado.Então Húrin olhou para o céu, pensando que, por algum lance de sorte, ele poderia avistar novamente as Águias, como vira, há muito tempo, em sua juventude. Mas ele viu apenas as sombras sopradas do Leste, e nuvens formando redemoinhos em volta dos picos inacessíveis; e o vento assobiando por sobre as pedras. Mas a vigília das Grandes Águias, e elas marcaram Húrin, lá em baixo, desamparado sob a luz esvanecente. E rapidamente Sorontar, já que as notícias pareciam importantes, reportou a Turgon. Mas Turgon falou: ‘Não! Isso é uma mentira! A não ser que Morgoth esteja dormindo. Você está errado.’
    ‘Não, não estou,’ respondeu Sorontar. ‘Se as Águias de Manwë cometessem erros desta forma, Senhor, seu esconderijo teria sido em vão.’
    ‘Então tuas palavras trazem um mau presságio,’ disse Turgon; ‘pois elas só podem significar que mesmo Húrin Thalion sucumbiu à vontade de Morgoth. Meu coração está fechado.’ Mas quando ele dispensou Sorontar, Turgon sentou e pensou, e ele estava preocupado, relembrando os feitos de Húrin. E ele abriu seu coração, e ordenou que as Águias procurassem por Húrin, a que o trouxessem, se pudessem, para Gondolin. Mas era tarde de mais, e elas nunca mais o viram novamente, seja na luz, seja
    na sombra.
    Pois Húrin permaneceu em desespero perante o severo silêncio de Echoriad, e o sol poente, rasgando as nuvens, manchando seu cabelo branco com vermelho. Então ele gritou no ermo, negligente aos muitos ouvidos, e ele amaldiçoou a terra impiedosa: ‘dura como os corações de Elfos e Homens’. E ele parou, enfim, em frente a uma grande pedra, e abrindo seus braços, olhando em direção a Gondolin, ele chamou com uma grande voz: ‘Turgon, Turgon! Lembre-se do Pântano de Serech!’ E novamente: ‘Turgon! Húrin chama por você. O Turgon, não irás me ouvir dos teus salões escondidos?’Mas não houve resposta, e tudo o que ele ouviu foi o vento na grama seca. ‘E ainda assim eles sibilam em Serech ao por do Sol’, disse ele. E enquanto ele falava, o Sol passou para trás das Montanhas da Sombra, e a escuridão caiu sobre ele, e o vento cessou, e o ermo ficou em silêncio.Entretanto, ouvidos escutaram as palavras que Húrin falou, e olhos marcaram seus gestos; e o relatório de tudo chegou rápido ao Trono Escuro no Norte. Então Morgoth sorriu, e soube claramente que Turgon habitava naquela região, pois devido as Águias nenhum espião dele podia chegar ao alcance do olho da terra atrás das montanhas circulantes. Esse foi o primeiro mal que a liberdade de Húrin causou.

    Enquanto a escuridão caía, Húrin pisou em falso na pedra, e caiu desmaiado, em um profundo sono de pesar. Mas em seu sono ele ouviu a voz de Morwen lamentando, e freqüentemente falou seu nome; e pareceu para ele que aquela voz vinha de Brethil. Então, quando despertou com a chegada do dia, ele se ergueu e retornou; e ele chegou novamente ao vau, e, como se guiado por uma mão invisível, ele passou pelas bordas de Brethil, até que, depois de uma jornada de quatro dias, chegou até Taeglin, e toda sua escassa comida acabou, e ele estava faminto. Mas ele prosseguiu como a sombra de um homem levado por um vento negro, e ele chegou ao vau à noite, e lá ele o atravessou até Brethil. Os sentinelas noturnos o viram, mas eles estavam cheios de medo, então eles não ousaram se mover ou gritar; pois eles pensaram que era um fantasma vindo de uma montanha de mortos em combate que caminhava com a escuridão em sua volta. E por muitos dias após, os homens temeram se aproximar do vau à noite, a não ser com grande companhia e com fogo aceso.Mas Húrin passou, e na noite do sexto dia ele chegou finalmente ao lugar da queima de Glaurung, e viu a pedra alta na beirada de Cabed Naeramarth. Mas Húrin não olhou para a pedra, pois ele sabia o que estava escrito ali, e seus olhos perceberam que não estava sozinho. Sentado na sombra da pedra estava uma figura encurvada sobre seus joelhos. Parecia um andarilho sem lar derrotado pela idade, cansando demais para perceber sua chegada; mas seus farrapos eram retalhos de um traje feminino. Húrin parou por um tempo em silêncio, então ela ergueu seu capuz esfarrapado e levantou seu rosto lentamente, com aparência selvagem e faminta como um lobo que fora caçado por muito tempo. Ela era cinzenta, com o nariz fino e com dentes quebrados, e com uma das mãos em forma de garra ela segurava a sua capa na altura do peito. Mas de repente seus olhos encararam os dele e então Húrin a reconheceu; pois apesar de serem selvagens agora, e cheios de medo uma luz ainda brilhava neles que era difícil de suportar: a luz élfica que há muito lhe dera seu nome, Edelwen, a mais orgulhosa das mulheres mortais nos dias antigos.‘Edelwen! Edelwen!’, gritou Húrin; e ela se levantou e cambaleou em frente, e ele a pegou em seus braços.

    ‘Finalmente você veio,’ ela disse. ‘Eu esperei por tempo demais.’

    ‘Foi uma estrada negra. Eu vim da forma que pude,’ respondeu.

    ‘Mas você está atrasado,’ ela disse, ‘atrasado demais. Eles estão perdidos.’

    ‘Eu sei,’ disse ele. ‘Mas você não está.’

    ‘Mas quase,’ disse ela. ‘Eu estou acabada. Eu devo partir com o sol. Eles estão perdidos.’ Ela se segurou no casaco dele. ‘Sobrou pouco tempo,’ ela disse. ‘Se você sabe, me diga! Como ela o encontrou?’ Mas Húrin não respondeu, e ele sentou ao lado da pedra com Morwen em seus braços; e eles não falaram novamente. O sol se pôs, e Morwen suspirou e segurou sua mão e ficou inerte; e Húrin soube então que ela morrera.

    E assim morreu Morwen, a orgulhosa e bela; e Húrin olhou para ela no crepúsculo, e pareceu que as marcas de pesar e cruel privação suavizaram. Sua face ficou fria e pálida e triste. ‘Ela não foi conquistada,’ ele disse; e ele fechou os olhos dela, e sentou-se imóvel ao lado dela enquanto a noite caía. As águas de Cabed Naeramarth rugiam, mas ele não ouviu som algum, nem viu nada, nem sentiu nada, pois seu coração estava duro como pedra, e ele pensou em permanecer ali sentado até que também morresse.

    Então veio um vendo frio e lançou uma chuva fina em seu rosto; e de repente ele estava desperto, e com uma profunda raiva negra cresceu dentro dele como uma fumaça, superando a razão, então tudo o que desejava era buscar vingança pelos seus erros e pelos erros de sua família, acusando em sua angústia todos aqueles que já tiveram negócios
    com eles.

    Ele levantou e ergueu Morwen; e de repente percebeu que erguê-la estava além de suas forças. Ele estava faminto e idoso, e cansado como o inverno. ‘Fique aqui mais um pouco, Edelwen,’ ele disse, ‘até que eu retorne. Nem mesmo um lobo machucaria mais você. Mas o povo desta terra dura irá se arrepender do dia em que você morreu aqui!’

    Então Húrin se afastou, aos tropeços, e voltou para o vau de Taeglin e lá ele caiu ao lado de Haud-en-Elleth, e uma escuridão se abateu sobre ele, e ele permaneceu como se estivesse adormecido. Ao amanhecer, antes que a luz o despertasse totalmente, ele foi encontrado pelos guardas que Hardang mandara manter uma atenção especial naquele lugar.

    Foi um homem chamado Sagroth que o encontrou primeiro, e ele o encarou com espanto e sentiu medo, pois ele pensou que soubesse quem aquele homem velho era. ‘Venham!’ gritou ele para os que o seguiam. ‘Olhem aqui! Deve ser Húrin. Os intrusos falaram a verdade. Ele chegou!’

    ‘Você encontrou problemas, como sempre, Sagroth!’ disse Forhend.

    ‘O Halad não ficará satisfeito com o que encontraram. O que deverá ser feito? Talvez Hardang ficaria mais satisfeito em ouvir que nós acabamos com os problemas em suas fronteiras e os empurramos para fora.’

    ‘Empurramos para fora?’ disse Avranc. Ele era filho de Dorlas, um homem jovem, baixo e escuro, porém forte, parecido com Hardang, como fora também seu pai. ‘Empurramos para fora? Que bem isso causaria? Ele voltaria novamente! Ele pode caminhar – todo o caminho desde Angband, se é o que você está pensando. Veja! Ele é horrível e possui uma espada, mas dorme profundamente. Deve ele despertar para mais angústia? Se você quer satisfazer o líder, Forhend, acabe com ele aqui.’

    Tamanha era a sombra que agora caía sobre s corações dos homens, enquanto o poder de Morgoth crescia, e o medo se espalhava por toda a terra; mas nem todos os corações tinham escurecido. ‘Envergonhe-se pelo que disse!’ gritou Manthor, o capitão, que vinha por trás e ouviu o que diziam. ‘E principalmente você, Avranc, que jovem obstinado você é! Ao menos você ouviu sobre os feitos de Húrin de Hithlum, ou apenas as conhece de fábulas contadas ao pé do fogo? O que deve ser feito, então? Matá-lo em seu sono, esse é o seu conselho. Do inferno veio essa idéia!’

    ‘Assim como ele,’ respondeu Avranc. ‘Se realmente ele é Húrin. Quem pode saber?’

    ‘Pode ser descoberto em breve,’ disse Manthor; e se aproximou de Húrin deitado, ajoelhando-se próximo a ele, e ergueu a sua mão e a beijou. ‘Acorde!’, ele gritou. ‘A ajuda está próxima. E se você é Húrin, não há ajuda que eu creio ser suficiente.’

    ‘E nenhuma ajuda que ele não irá retribuir com mal,’ disse Avranc. ‘Ele vem de Angband, digo eu.’

    ‘O que ele pode vir a fazer nós não sabemos,’ disse Manthor. ‘O que ele fez nós sabemos, e nossa dívida ainda não foi paga.’ Então ele falou novamente, em voz alta: ‘Viva Húrin Thalion! Viva o capitão dos homens!’

    Então Húrin abriu os olhos, lembrando de palavras malignas que ouvira durante o sono, antes de acordar, e ele viu homens sobre ele com armas em punho. Ele levantou tenso, tateando a sua espada; e ele olhou para eles com raiva e descaso. ‘Malditos!’ ele gritou. ‘Matariam um velho em seu sono? Vocês se parecem com homens, mas são orcs sob a pele, eu acho. Então venham! Matem-me acordado, se é que ousam fazer isso. Mas eu não irei satisfazer seu senhor negro, eu acho. Eu sou Húrin, filho de Galdor, um nome que orcs ao menos lembrarão.’

    ‘Não, não,’ disse Manthor. ‘Não sonhe. Nós somos homens. Mas esses são dias malignos e de dúvidas, e nós estamos sobre muita pressão. Esta região é perigosa. Não quer vir conosco? Ao menos nós podemos lhe proporcionar comida e descanso.’

    ‘Descanso?’ disse Húrin. ‘Vocês não podem me proporcionar isso. Mas, em minha necessidade, eu aceitarei comida.’

    Então Manhor deu a ele um pouco de pão e carne e água; mas pareceram engasgá-lo, e ele cuspiu fora. ‘A que distância estamos da casa de seu senhor?’ ele perguntou. ‘Até que eu o veja, a comida que negaram à minha amada não descerá pela minha garganta.’

    ‘Ele se irrita e nos despreza,’ resmungou Avranc. ‘O que eu disse?’ Mas Manthor olhou para ele com piedade, apesar de não entender suas palavras. ‘É uma longa estrada para os cansados, senhor,’ disse ele; ‘e aqueles da casa de Hardang Halad estão escondidos dos estranhos.’

    ‘Então me leve para lá!’ disse Húrin. ‘Eu irei da forma que puder. Eu tenho uma missão naquela casa.’

    Logo eles seguiram em frente. Da sua forte companhia, Manthor deixou muitos cumprindo sua tarefa, mas ele caminhou com Húrin, e com ele levou Forhend. Húrin caminhava como podia, mas depois de um tempo, começou a tropeçar e a cair; e mesmo que sempre se reerguesse e lutasse para continuar, não permitiria que ninguém o ajudasse.

    Depois de muitas paradas pelo caminho, finalmente chegaram aos salões de Hardang em Obel Halad, nas profundezas da floresta; e ele sabia da sua chegada, pois Avrang, espontaneamente, correu na frente deles e levou as notícias antes deles; e ele não esqueceu de reportar as palavras selvagens de Húrin quando despertou e quando cuspiu fora sua comida.

    Então eles encontraram os salões bem guardados, com muitos homens na cerca do pátio, e homens nas portas. No portão do pátio, o capitão dos guardas os parou. ‘Entreguem o prisioneiro para mim!’ disse ele.

    ‘Prisioneiro!’ disse Manthor. ‘Eu não trago um prisioneiro, mas um homem a quem você deveria honrar.’

    ‘Essas são palavras de Halad, não minhas,’ disse o capitão. ‘Mas você pode vir também. Ele também tem palavras para você.’

    Então eles levaram húrin até a presença do líder; e Hardang não o cumprimentou, mas sentado em sua grande cadeira, olhou Húrin da cabeça aos pés. Mas Húrin retornou o seu olhar, e se manteve o mais firme que pode, apesar de estar apoiado em seu cajado. Então ele permaneceu um tempo em silêncio, até que ele tombou no chão. ‘Vejam!’ ele disse. ‘Eu vejo que existem tão poucas cadeiras em Brethil que um convidado deva sentar no chão.’

    ‘Convidado?’ disse Hardang. ‘Nenhum convidado por mim. Mas tragam um banco para o homem. Se ele não desdenhar dele, pois ele cospe em nossa comida.’

    Manthor se ofendeu com a descortesia e ouvindo uma risada nas sombras atrás da grande cadeira, ele olhou e percebeu que era Avranc, e seu rosto se escureceu em fúria.

    “Me desculpe, senhor,’ disse ele a Húrin. ‘Existe um mal entendido aqui.’ Então se virou para Hardang e se lançou sobre ele. ‘A minha companhia tem um novo capitão agora, meu Halad?’ disse ele. ‘Pois se não eu não entendo como alguém que abandonou o seu posto e desobedeceu minhas ordens possa ficar aqui sem reprova. Ele trouxe notícias antes de mim, eu vejo; mas parece ter esquecido o nome do convidado, ou Húrin Thalion não teria sido deixado em pé.’

    ‘O nome foi dito para mim,’ respondeu Hardang, ‘assim como suas palavras malignas. Assim é a casa de Hador. Mas é o papel de um estranho se apresentar pela primeira vez em minha casa, e eu esperei ouvi-lo. Assim como a sua missão, já que diz ter uma. Mas sobre seu dever, tais assuntos não devem ser tratados na presença de estranhos.’

    Então ele se virou para Húrin, que estava sentado no banco; seus olhos estavam fechados e ele não parecia dar atenção ao que acontecia. ‘Bem, Húrin de Hithlum,’ disse Hardang, qual é a sua missão? É motivo de pressa? Ou não prefere descansar um pouco e falar sobre isso mais tarde, quando estiver mais à vontade? Enquanto isso, podemos providenciar uma comida menos horrível.’ O tom de Hardang era mais gentil, e ele levantou enquanto falava; pois ele era um homem prudente, e ele percebeu o desagrado no rosto dos outros atrás de Manthor.

    Então, de repente, Húrin se levantou. ‘Bem, mestre junco do pântano,’ disse ele. ‘Então você se curva com cada respiração? Cuidado para que a minha não lhe derrube. Vá descansar para se fortalecer, então eu o chamarei de novo! Zombador de cabelos cinzentos, mesquinho em relação à comida, que deixa os errantes famintos. Esse banco servirá melhor para você.’ Com isso, ele lançou o banco em direção a Hardang, acertando-o na testa; e se virou para sair do salão.

    Alguns dos homens abriu caminho, seja por pena ou medo de sua ira; mas Avranc correu à sua frente. ‘Não tão rápido, Húrin!’ ele gritou. ‘Ao menos não tenho mais dúvidas em relação ao seu nome. Você traz suas maneiras de Angband. Mas nós não amamos os feitos dos orcs neste salão. Você atacou o líder em sua cadeira, e agora você é nosso prisioneiro, independente do seu nome.’

    ‘Eu o agradeço, capitão Avranc,’ disse Hardang, que estava sentado em sua cadeira, enquanto tentava estancar o sangue que corria de sua sombrancelha. ‘Agora deixe o velho louco ser algemado e mantido cativo, eu o julgarei mais tarde.’

    Então eles colocaram tiras de couro nos braços de Húrin, e um cabresto no seu pescoço, e o levaram embroa; e ele não mostrou resistência, pois a fúria havia acabado, e ele caminhou como alguém dormindo, de olhos fechados. Mas Manthor, apesar de Avranc ter olhado bravo para ele, colocou o braço sobre o ombro do velho e o guiou para que não tropeçasse.

    Mas quando Húrin foi trancado em uma caverna e Manthor não podia fazer mais nada para ajudá-lo, retornou para o salão. Lá ele encontrou Avranc falando com Hardang, e, apesar de terem se calado quando chegou, ele ouviu as últimas palavras que Avranc falou, e pareceu que Avranc queria que Húrin fosse executado imediatamente.

    ‘Então, capitão Avranc,’ ele disse, ‘as coisas foram bem para você hoje! Eu já vi você jogar desta forma: atiçar um velho texugo e matá-lo quando ele o morde. Não tão rápido, capitão Avranc! Nem você, Hardang Halad. Este não é assunto para lidar de maneira arrogante, sem controle. A vinda de Húrin, e a forma com que foi recebido, diz respeito a todo o povo, e eles devem ouvir tudo o que é dito, antes de qualquer julgamento.

    ‘Você deve ir,’ disse Hardang. ‘Retorne para sua missão na fronteira, até que o capitão Avranc apareça para assumir o comando.’

    ‘Não, senhor,’ disse Manthor, ‘eu não tenho missão. A partir de hoje não estou mais a seu serviço. Eu deixei Sagroth no comando, um homem da floresta que é mais velho e mais sábio que o que você nomeou. Quando chegar a hora, retornarei para minhas próprias fronteiras*. Mas agora eu reunirei o povo.

    Quando saiu pela porta, Avranc armou seu arco para matar Manthor, mas Hardang o impediu. ‘Ainda não,’ ele disse. Mas Manhor não viu isso (apesar de algumas pessoas no salão ter percebido), e saiu, e mandou todos aqueles que se dispuseram a agir como mensageiros para reunir os mestres de todas as terras e qualquer outro que se dispusesse a comparecer.

    Agora os rumores corriam pelas árvores, e as lendas cresciam quando eram contadas; e alguns disseram isso, e outros aquilo, e a maioria falou em louvor a Halad e se lançou em direção a Húrin como se fosse um maligno chefe orc; pois Avranc também estava ocupado com mensageiros. Logo tinha uma grande multidão de povos, e a vila próxima ao salão dos líderes estava apinhada com tendas e barracas. Mas todos os homens portavam armas, por medo que um alarme repentino viesse das fronteiras.

    Quando ele enviou seus mensageiros, Manthor foi até a prisão de Húrin, mas os guardas não o deixaram entrar. ‘Venham!’ disse Manthor. ‘Vocês sabem muito bem que é do nosso bom costume que qualquer prisioneiro deve ter um amigo que possa visitá-lo e ver como ele está sendo alimentado e aconselhá-lo.’

    *Pois Manthor era um descendente de Haldad, e ele possuía uma terra pequena na fronteira leste de Brethil, próximo ao Sirion onde ele atravessa Dimbar. Mas todo o povo de Brethil era formado por homens livres, mantendo suas casas e suas terras, sejam maiores ou menores, de direito. Seu senhor era escolhido entre os descendentes de Haldad, por reverência pelos feitos de Haleth e Haldar; e mesmo que a liderança era dada, como se fosse um domínio ou um reino, para os mais velhos da linhagem mais velha, o povo tinha o direito de colocar qualquer um de lado ou tirá-lo de lá, por uma causa grave. E alguns sabiam o suficiente que Harathor tentara que Brandir o Aleijado tivesse tido abdicado em seu favor.

    ‘O amigo é escolhido pelo prisioneiro,’ responderam os guardas; ‘mas este homem selvagem não tem amigos.’

    ‘Ele tem um,’ disse Manthor, ‘e eu peço permissão para me oferecer como sua escolha.’

    ‘O Halad nos proíbe de admitir qualquer um fora os guardas,’ disseram. Mas Manthor, que era sábio nas leis e costumes de seu povo, respondeu: ‘Sem dúvida. Mas neste caso ele não tem direito. Por que o intruso está preso? Nós não algemamos velhos e errantes por falarem rudemente quando irritados. Este está preso por seu ataque a Hardang, e Hardang não pode julgar seu próprio caso, mas deve levar sua queixa para o julgamento do povo. Enquanto isso, ele não pode negar ao prisioneiro todo conselho e ajuda. Se ele fosse sábio, ele veria que não age desta forma, beneficiaria sua própria causa. Mas talvez alguma outra boca falou pela dele?’

    ‘Verdade,’ disseram. ‘Avranc trouxe a ordem.’

    ‘Então esqueça,’ disse Manthor. ‘Pois Avranc estava obedecendo outras ordens, para permanecer em sua missão na fronteira. Escolha então entre um jovem desertor e as leis do povo.’

    Então os guardas permitiram sua entrada na caverna; pois Manthor era querido em Brethil, e os homens não gostavam dos líderes que tentaram dominar o povo. Manthor encontrou Húrin sentado em um banco. Tinha algemas em seus tornozelos, mas suas mãos estavam livres; e tinha um pouco de comida à sua frente, intocada. Ele não ergueu o olhar.

    ‘Salve, senhor!’ disse Manthor. ‘As coisas não aconteceram como deviam, nem como eu ordenei. Mas agora você precisa de um amigo.’

    ‘Eu não tenho amigos, nem desejo algum nesta terra,’ respondeu Húrin.

    ‘Um amigo está na sua frente,’ respondeu Manthor. ‘Não me rejeite. Por enquanto, pelo menos! O assunto entre você e Hardang Halad deve ser levado para ser julgado pelo povo, e seria bom, pelo que nossas leis permitem, ter um amigo para aconselhá-lo e defender o seu caso.’

    ‘Eu não irei me defender, e não preciso de conselhos,’ disse Húrin.

    ‘Você precisa deste conselho, pelo menos,’ disse Manthor. ‘Controle sua ira por enquanto, e coma um pouco, pra que tenha força perante seus inimigos. Eu não sei qual é sua missão aqui, mas ela seria mais rápida se você não estivesse faminto. Não se mate enquanto existe esperança!’

    ‘Me matar?’ gritou Húrin, e ele cambaleou e se escorou na parede, e seus olhos estavam vermelhos. ‘Devo ser arrastado algemado perante uma ralé de homens da selva para ouvir que tipo de morte irão me dar? Eu me matarei antes, se minhas mãos estiverem livres.’ Então, de repente, rápido como um velho urso em uma cilada, ele saltou para a frente, e antes que Manthor pudesse evitá-lo, ele puxou uma faca do seu cinto. Então ele afundou no banco.

    ‘Você poderia ter tido a faca como um presente,’ disse Manthor, ‘porém nós não acreditamos no suicídio como uma saída nobre para aqueles que não enlouqueceram. Esconda a faca e a guarde para um uso melhor! Mas tenha cuidado, pois é uma lâmina maldita, de uma forja dos anões. Agora, senhor, não me considerará como amigo? Não diga nada, mas se você comer comigo, considerarei como um sim.’

    Então Húrin olhou para ele e a ira deixou seus olhos; e juntos eles beberam e comeram juntos em silêncio. E quando tudo estava terminado, Húrin falou: ‘Pela sua voz você me derrotou. Nunca desde o Dia do Terror eu ouvi a voz de um homem tão bela. Ai de mim! Ela lembra das vozes na casa de meu pai, muito tempo atrás, quando a sombra parecia estar tão longe.’

    ‘Isto pode muito bem ser verdade,’ disse Manthor. ‘Hiril, minha primeira mãe era irmã de sua mãe, Hareth.’

    ‘Então você é amigo e parente,’ disse Húrin.

    ‘Mas não eu sozinho,’ disse Manthor. ‘Nós somos poucos e temos pouco dinheiro, mas nós também somos Edain, e ligados por muitas formas ao seu povo. Seu nome foi por muito tempo mantido honrado aqui; mas nenhuma notícia de seus feitos teria chegado até nós se Haldir e Hundar não tivessem marchado para a Nirnaeth. Lá eles caíram, mas sete dos seus companheiros retornaram, pois eles foram socorridos por Mablung de Doriath e curados de seus ferimentos.

    Os dias tem sido escuros desde então, e muitos corações foram escurecidos, mas não todos.’

    ‘Mas a voz do seu líder vem das sombras,’ disse Húrin, ‘e seu povo o obedece, mesmo em atos de desonra e crueldade.’

    ‘A tristeza escurece seus olhos, senhor, se é que ouso dizer tal coisa. Mas que isto fique provado, vamos nos aconselhar juntos. Pois eu vejo perigo de mal à nossa frente, tanto para você quanto para meu povo, apesar de talvez a sabedoria possa evitar isso. De uma coisa eu posso alertá-lo, apesar de não lhe agradar. Hardang é um homem menor que seus pais, mas eu não vi maldade nele desde que ele ouviu da sua chegada. Você carrega uma sombra, Húrin Thalion, na qual sombras menores ficam mais escuras.’

    ‘Palavras negras de um amigo!’ disse Húrin. ‘Por muito tempo vivi na Sombra, mas eu suportei e não me entreguei. Se existe alguma escuridão em mim, é apenas a dor além da dor que me roubou a luz. Mas não faço parte da Sombra.’

    ‘Mesmo assim, eu lhe digo,’ disse Manthor. ‘que ela segue seus passos. Eu não sei como ganhaste a liberdade; mas o pensamento de Morgoth não o esqueceu. Tenha cuidado.’

    ‘Não caduque, velho senil, você diria,’ respondeu Húrin. ‘Eu irei suportar isso de você, pela sua bela voz e nosso parentesco, mas não mais! Vamos falar de outras coisas, ou acabamos por aqui.’

    Então Manthor foi paciente, e ficou por longo tempo com Húrin, até que a noite trouxe a escuridão para a caverna; e eles comeram juntos mais uma vez. Então Manthor ordenou que uma luz fosse trazida para Húrin; e ele partiu no dia seguinte, e foi para sua tenda com o coração pesado.

    No dia seguinte foi proclamado que o debate para o julgamento aconteceria na manhã seguinte, pois quinhentos homens chefes já se apresentaram e este era por costume, o quorum mínimo que se aceitava para um encontro do povo. Manthor foi cedo encontrar Húrin; mas os guardas mudaram. Três homens da guarda privada de Hardang guardavam a porta, e eles não foram amistosos.

    ‘O prisioneiro está dormindo,’ o líder deles falou. ‘E isso é bom; pode acalmar seu ânimo.’

    ‘Mas eu sou o amigo que ele escolheu, como foi declarado ontem,’ disse Manthor.

    ‘Um amigo o deixaria em paz, enquanto ele pode tê-la. Que bem faria acordá-lo?’

    ‘Por que a minha vinda o acordaria? Os pés de um carcereiro são mais pesados que os meus.’ falou Manthor. ‘Eu desejo ver como ele dorme.’

    ‘Você pensa que todos os homens mentem, menos você?’

    ‘Não, não; mas eu acho que alguém esqueceria as nossas leis de bom grado quando elas não servem o seu propósito,’ respondeu Manthor. Mesmo assim pareceu a ele que pouco ajudaria o caso de Húrin se continuasse a discutir, e ele foi embora. Muitas coisas permaneceram sem serem ditas entre eles até que fosse tarde demais. Pois quando ele retornou o dia estava terminando. Nada impediu a sua entrada, desta vez, e ele encontrou Húrin deitado em uma armação de madeira; e ele notou com fúria que ele tinha agora algemas em seus punhos e uma curta corrente entre eles.

    ‘Um amigo que se atrasa é a esperança que é negada,’ disse Húrin. ‘Esperei por muito tempo por você, mas agora estou com muito sono e meus olhos estão turvos.’

    ‘Eu vim no meio da manhã,’ disse Manthor, ‘mas eles disseram que você estava dormindo.’

    ‘Eu estava cochilando, cochilando em uma esperança pálida,’ disse Húrin; ‘mas a sua voz me acordou. Eu estou assim desde que tive meu desjejum. Aquele seu conselho finalmente o tomei, meu amigo; mas comida me faz mais mal do que bem. Agora eu devo dormir. Mas volte pela manhã!’

    Manthor teve pensamentos escuros sobre isto. Ele não pode ver o rosto de Húrin, pois havia pouca luz, mas se curvando para baixo ele pode ouvir a sua respiração. Então com uma expressão severa, ele se levantou e pegou os restos da comida, colocando sob seu casaco, e foi embora.

    ‘Bem, o que você achou do homem selvagem?’ disse o chefe da guarda.

    ‘Perturbado com sono,’ respondeu Manthor. ‘Ele deve estar bem desperto amanhã. O desperte cedo. Traga comida para dois, pois eu virei quebrar meu jejum com ele.’

    No dia seguinte, muito antes do meio da manhã, o debate teve início. Quase mil pessoas chegaram, a maioria homens velhos, já que a vigília nas fronteiras deve ser mantida. Logo o anel do debate estava cheio. Ele tinha a forma de uma grande crescente, com sete fileiras de bancos saindo de um piso plano escavado na encosta da colina. Uma grade alta ficava em volta dela, e a única entrada era por um portão pesado na cerca que se fechava na parte aberta da crescente. No meio da camada mais baixa estava Angbor, ou a Pedra do Destino, uma grande pedra chata na qual o Halad sentaria. Aqueles que eram trazidos para julgamento ficavam na frente da pedra e voltados para a assembléia.

    Havia uma grande babel de vozes; mas com o grito de uma trompa, o silêncio caiu, e o Halad entrou, acompanhado por muitos guarda costas. O portão se fechou atrás dele, e ele caminhou lentamente até a Pedra. Então ele parou, olhando para a assembléia e consagrou o debate como de costume. Primeiro ele citou os nomes de Manwë e Mandos, segundo o costume que os Edain aprenderam com os Eldar, e então, falando na língua antiga do povo, que agora estava fora de uso, e declarou aberto o debate, sendo o tricentésimo primeiro debate de Brethil, convocado para julgar um grave assunto.

    Quando, como de costume, toda a assembléia gritou em uníssono e na mesma língua ‘Nós estamos prontos’, ele sentou em Angbor, e chamou na língua de Beleriand para os homens que estavam próximos: ‘Soem as cornetas! Que o prisioneiro seja trazido até nós!’

    A corneta soou duas vezes, mas por um tempo ninguém entrou, e o som de vozes irritadas podia ser ouvida fora da cerca. Depois de um tempo, o portão foi empurrado e seis homens saíram com Húrin entre eles.

    ‘Eu sou trazido sob violência e maus tratos,’ ele gritou. ‘Eu não irei caminhar algemado para nenhum debate na terra, nem se reis élficos estivessem presentes. E enquanto eu estiver preso, eu irei negar toda a autoridade e justiça a que me condenem.’ Mas os homens o colocaram no chão à frente da Pedra e o seguraram ali com força.

    Agora era costume do debate que, quando qualquer homem era trazido para ele, o Halad deveria ser o acusador, e deveria primeiramente recitar o delito que acusava. A respeito do que era direito do acusado, por ele mesmo ou pela boca de seu amigo, negar a acusação, ou oferecer uma defesa pelo que fez. E depois dessas coisas serem ditas, se algum ponto restava duvidoso ou era negado por um dos lados, testemunhas eram convocadas.

    Hardang, então, estava em pé e virado para a assembléia e começou a recitar a acusação. ‘Este prisioneiro,’ disse ele, ‘que está perante vocês, se auto proclama Húrin, filho de Galdor, que um dia foi de Dor-lómin, mas ele veio de uma longa estada em Angband. Seja isto como for.’

    Mas sobre isto Manthor se levantou e se colocou perante a Pedra. ‘Com sua licença, meu senhor Halad e povo!’ ele gritou. ‘Como amigo do prisioneiro eu convoco o direito de perguntar: a acusação contra ele envolve de alguma forma a pessoa do Halad? Ou teria o Halad alguma mágoa em relação a ele?’

    ‘Mágoa?’ gritou Hardang, e a raiva obscureceu seu raciocínio, pois ele não percebeu as intenções de Manthor. ‘Muitas mágoas! Esta não é a última moda em adereços para cabeça para o debate. Eu venho aqui com ferimentos com curativos.’

    ‘Oras!’ disse Manthor. ‘Mas se é assim, eu peço que a questão não possa ser tratada desta forma. Na sua lei nenhum homem pode recitar a ofensa feita contra si mesmo; nem ele pode sentar na cadeira do julgamento enquanto a acusação é ouvida. Não é esta a lei?’

    ‘Esta é a lei,’ respondeu a assembléia.

    ‘Então,’ disse Manthor, ‘antes que a acusação seja ouvida, outro Hardang, filho de Hundad deve ser apontado para a pedra.’

    Assim várias vozes se ergueram, mas a maioria das vozes e as vozes mais altas chamavam por Manthor. ‘Não,’ disse ele, ‘eu estou envolvido com uma das partes e não posso ser o julgador. Além disso, é o direito do Halad neste caso nomear aquele que irá tomar o seu lugar, o que ele com certeza sabe muito bem.’

    ‘Eu o agradeço,’ disse Hardang, ‘mas eu não preciso de um jurista autodidata para me ensinar.’ Então ele olhou para Manthor, como se considerando quem ele deveria nomear. Mas a sua raiva era negra e toda a sabedoria o abandonou. Se ele tivesse escolhido qualquer dos chefes de casa ali presentes, as coisas poderiam ter tomado um rumo diferente. Mas em um momento maligno ele escolheu, para o espanto de todos, gritou: ‘Avranc, filho de Dorlas! Parece que o Halad também precisa de um amigo hoje, quando os juristas estão tão ousados. Eu o convoco para a Pedra.’

    O silêncio caiu. Mas quando Hardang se afastou e Avranc foi até a pedra, um grande murmúrio foi ouvido, como o prenúncio de uma tempestade. Avranc era um jovem casado há pouco, e sua juventude fora tomada como ruim por todos os velhos chefes de casa que estavam lá. Pois ele não era querido pelo que era; pois apesar de ser valente, ele era um zombador, como seu pai Dorlas foi antes dele. E lendas negras sussurravam sobre Dorlas, pois, apesar de nada ser dado como verdadeiro, ele foi encontrado morto na batalha com Glaurung, e a espada ensanguentada que jazia ao seu lado era a espada de Brandir.

    Mas Avranc não deu atenção aos murmúrios, e se alegrou, como se fosse um assunto simples, que se tratasse rapidamente.

    ‘Bem,’ disse ele, ‘se isto está definido, não vamos mais perder tempo! O assunto está claro o suficiente.’ Então, se levantando, ele continuou a acusação. ‘Este prisioneiro, este homem selvagem,’ disse ele, ‘vem de Angband, como vocês bem ouviram. Ele foi encontrado dentro de nossas fronteiras. Não por acaso, pois, como ele mesmo disse, tem uma missão a cumprir aqui. O que seria, ele não revelou, mas não pode ser nada de bom. Ele odeia este povo. Logo que nos viu, nos insultou. Nós lhe demos comida e ele a cuspiu. Eu já vi orcs agirem assim, se fossemos tolos o suficiente para demonstrar-lhes piedade. Está claro que ele vem de Angband, seja lá qual for o seu nome. Mas o pior ainda está por vir. Por requerimento próprio, ele foi levado perante o Halad de Brethil – por este homem que se diz agora seu amigo; mas quando ele chegou ao salão, ele se recusou a dizer seu nome. E quando o Halad o perguntou qual era a sua missão e o pediu que descansasse primeiro e falasse depois, se assim o aprouvesse, ele enlouqueceu, começou a insultar o Halad, e de repente arremessou um banco na sua face e o feriu gravemente. Foi bom que ele não tinha nada mais mortal à mão, ou o Halad teria sido morto. É clara a intenção do prisioneiro, e diminui muito pouco a sua culpa o fato de que o pior não tenha acontecido, para o qual a pena é a da morte. Mas mesmo assim, o Halad senta na grande cadeira no seu salão: insultá-lo lá é um ato de maldade, e atacá-lo é um ultraje.

    ‘Esta, então, é a acusação contra o prisioneiro: que ele veio para cá com más intenções para conosco, e para com o Halad de Brethil em especial (a pedido de Angband, pode se dizer); que, na presença do Halad, ele o desrespeitou, e então tentou matá-lo em sua cadeira. A penalidade está sob o julgamento do debate, mas poderia ser justamente a da morte.’

    Então, para muitos pareceu que Avranc falou justamente, e para todos ele falou com habilidade. Por um tempo, ninguém ergueu a voz de lado algum. Então Avranc, sem esconder seu sorriso, levantou-se novamente e disse: ‘O prisioneiro pode agora responder à acusação, se quiser, mas que seja breve e não enlouqueça!’

    Mas Húrin não falou, apesar de fazer força contra aqueles que o seguravam. ‘Prisioneiro, não vai falar?’ disse Avranc, e Húrin não lhe respondeu. ‘Que assim seja,’ disse Avranc. ‘Se ele não vai falar, nem para negar a acusação, então não há mais nada a fazer. A acusação é justa, e aquele que está de frente para a Pedra pode propor uma pena que lhe pareça justa para o Debate.’

    Mas agora Manthor se levantou e disse: ‘Primeiro devem perguntar a ele por que não falará. E a resposta deverá ser dada por seu amigo.’

    ‘A questão está feita,’ disse Avranc, dando de ombros. ‘Se você sabe a resposta, fale.’

    ‘Porque seus pés e mãos estão presos,’ disse Manthor. ‘Nunca antes nós arrastamos algemado para o Debate alguém que ainda não tenha sido condenado. Mas mesmo que seja um Edain, cujo nome merece honra, isso nunca deveria ter acontecido. Sim, não condenado digo eu; pois o acusado deixou muito sem ser dito que este Debate deve ouvir antes de dar o julgamento.’

    ‘Mas isto é uma tolice,’ disse Avranc. ‘Adan ou não, e qualquer que seja seu nome, o prisioneiro é incontrolável e malicioso. As algemas são uma precaução necessária. Aqueles que se aproximam dele devem estar protegidos da sua violência.’

    ‘Se deseja criar a violência,’ respondeu Manthor, ‘o que seria mais óbvio do que abertamente desonrar um homem orgulhoso, carregando o peso da tristeza de muitos anos nas costas. A aqui está um, enfraquecido pela fome e por uma longa jornada desarmado em meio a uma hoste. Eu pergunto ao povo aqui reunido: vocês consideram esta precaução digna dos homens livres de Brethil, ou prefeririam que tivéssemos usado a cortesia dos antigos?’

    ‘As algemas foram colocadas no prisioneiro por ordem do Halad,’ disse Avranc. ‘Para isto nós usamos seu direito de evitar a violência em seu salão. Assim, esta ordem não pode ser impugnada, salvo por toda a assembléia.’

    Assim, um grande grito se ergueu na multidão ‘Soltem-no, soltem-no! Húrin Thalion! Soltem H‎úrin Thalion!’ Nem todos tomaram parte neste grito, pois nenhuma voz foi ouvida do outro lado.

    ‘Não, não!’ disse Avranc. ‘Gritar não irá adiantar nada. Neste caso, devemos votar na forma correta.’

    Agora, por hábito, em assuntos graves ou duvidosos, os votos do debate eram dados mostrando cristais, e todos os que entraram portavam consigo dois cristais, um preto e um branco, para sim e para não. Mas juntar e contar os cristais tomava tempo, e enquanto isso, Manthor percebeu que o humor de Húrin piorava cada vez mais.

    ‘Existe uma forma mais fácil,’ disse ele. ‘Não há perigo aqui para justificar as algemas, pois assim pensam todos aqueles que usaram a voz. O Halad está no anel do debate, e ele pode cancelar sua própria ordem, se assim desejar.’

    ‘Ele ira,’ disse Hardang, pois pareceu para ele que a assembléia estava impaciente, e ele pensou que agir assim os levaria para seu lado. ‘Que o prisioneiro seja solto, e fique perante você.’

    Então as algemas foram retiradas das mãos e dos pés de Húrin. Imediatamente ele se pôs de pé e, dando as costas para Avranc, ele encarou a assembléia. ‘Eu estou aqui,’ disse ele. ‘E vou responder o meu nome. Eu sou Húrin Thalion, filho de Galdor Orchal, senhor de Dor-lómin e uma vez alto capitão do exército do rei Fingon do reino do norte. Que nenhum homem negue isto! E isto deverá ser o suficiente. Eu não vou implorar perante vocês. Façam como quiserem! Também não irei rebater as palavras daquele que abriu o debate e que vocês permitem que sente na cadeira mais alta. Deixe-o mentir da forma que quiser!

    ‘Em nome dos Senhores do Oeste, que maneiras são estas deste povo, ou o que vocês se tornaram? Enquanto a ruína da Escuridão está sobre vocês, vocês sentam aqui pacientemente e escutam este guarda desertor perguntar sobre o destino da morte sobre mim – porque eu quebrei a cabeça de um jovem insolente, seja em sua cadeira ou fora dela? Ele deveria ter aprendido como tratar os mais velhos antes que vocês o tornassem seu líder.

    ‘Morte? ‘Perante Manwë, se eu não tivesse suportado tormentos por vinte e oito anos, se eu estivesse como na Nirnaeth, vocês não ousariam sentar aqui e me encarar. Mas eu não sou mais perigoso, pelo que ouvi. Então vocês são bravos. Eu posso ficar aqui, sem algemas para ser usado como isca. Eu fui derrotado na guerra e domado. Domado! Mas não tenham tanta certeza disso!’ Ele ergueu os braços e cerrou os punhos.

    Mas nesta hora, Manthor o acalmou, colocando a mão no seu ombro e falou suavemente em seu ouvido. ‘Meu senhor, está se enganando em relação a eles. Muitos são seus amigos, ou o seriam. Mas aqui há homens livres orgulhosos também. Deixe-me falar com eles agora.’

    Hardang e Avranc nada disseram, mas sorriram um para o outro, pelo discurso de Húrin, pois pensaram que ele não tinha feito a sua parte de maneira correta. Mas Manthor gritou: ‘Dêem ao Senhor Húrin uma cadeira enquanto eu falo. Vocês compreenderão melhor sua ira, e talvez até perdoar, quando tiverem me ouvido.

    ‘Ouçam me agora, povo de Brethil. Meu amigo não nega a acusação principal, mas diz que foi abusado e provocado além da conta. Meus senhores, eu era capitão dos vigias da fronteira que encontrou este homem dormindo perto de Haud-en-Elleth. Ou parecia estar dormindo, mas ele estava muito cansado e perto de despertar, e, enquanto estava deitado ele ouviu, temo eu, as palavras que foram ditas.

    ‘Havia um homem chamado Avranc, filho de Dorlas, eu me lembro, como membro da minha companhia, e ele deveria estar lá agora, pois esta foi a minha ordem. Quando cheguei a Brethil, descobri que Avranc havia dado conselhos ao homem que encontrou Húrin primeiro e adivinhou seu nome. Povo de Brethil, eu o ouvi dizer o seguinte: “Seria melhor matar o velho enquanto dormia e evitar problemas futuros. E isso agradaria ao Halad,” disse ele.

    ‘Talvez agora vocês irão pensar melhor sobre o fato de que quando o despertei, e ele encontrou homens armados sobre ele, ele disparou palavras amargas para nós. Ao menos um de nós as mereceu. E sobre desprezar nossa comida: ele a pegou de minhas mãos e não cuspiu nela. Ele a cuspiu fora, pois se engasgou com ela. Nunca viram, meus senhores, homens famintos que não conseguiam engolir comida devido à pressa que tinham em fazê-lo? E este homem também estava muito deprimido e cheio de raiva.

    ‘Não, ele não desdenhou de nossa comida. Se bem que ele o teria feito, se ele soubesse dos esquemas que alguns dos que habitam aqui armaram! Ouçam-me agora e acreditem, se quiserem, pois testemunhas podem ser trazidas. Em sua prisão, o Senhor Húrin comeu comigo, pois eu o tratei com cortesia. Isso foi dois dias atrás. Mas ontem, ele estava sonolento, e não conseguia falar claramente, nem se aconselhar comigo sobre o julgamento de hoje.’‘Isto pouco quer dizer!’ gritou Hardang.Manthor parou e olhou para Hardang. ‘Pouco quer dizer realmente, meu senhor Halad,’ ele disse; ‘pois essa comida foi envenenada.’Então Hardang, irado, gritou: ‘Os sonhos deste preguiçoso tem que ser recitados para nos entediar?’

    ‘Não falo de sonhos,’ respondeu Manthor. ‘As testemunhas irão falar agora. Eu levei um pouco da comida que Húrin comeu. Perante testemunhas, eu dei para um cão, e ele está dormindo como se estivesse morto. Talvez o Halad de Brethil não planejou isso, mas alguém que está ávido para agradá-lo. Mas com que propósito? Para evitar que ele use da violência, certamente, já que ele estava algemado na prisão? Existe malícia entre nós, povo de Brethil, e eu espero que a assembléia corrija isto!’

    Neste momento, uma grande agitação e murmúrios se ergueram no anel do debate e quando Avranc se levantou pedindo silêncio, o clamor aumentou. Finalmente, quando a assembléia se acalmou um pouco, Manthor disse: ‘Posso continuar agora, pois há mais coisas a serem ditas?’

    ‘Proceda!’ disse Avranc. ‘Mas seja breve. E eu aviso a todos, meus senhores, para que escutem este homem com cautela. Sua boa fé não pode ser confiada. O prisioneiro e ele são parentes.’

    Estas palavras não foram sábias, pois Manthor as respondeu imediatamente: ‘Realmente. A mãe de Húrin era Hereth, filha de Halmir, outrora Halad de Brethil, e Hiril, sua irmã era a mãe da minha mãe. Mas sua linhagem não faz de mim um mentiroso. E digo mais, se Húrin de Dor-lómin é meu parente, ele é parente de todos da casa de Haleth. Sim, e de todo este povo. E mesmo assim ele é tratado como um fora da lei, um ladrão, um homem selvagem e sem honra!

    ‘Vamos continuar com a acusação principal, que o acusador diz que pode ter uma pena próxima daquela da morte. Vocês vêm perante vocês a cabeça quebrada, apresar que parece que está firme sobre seus ombros e que pode usar a língua muito bem. Pois foi ferida com o arremesso de um pequeno banco. Um ato de maldade, vocês diriam. E muito pior quando feito contra o Halad de Brethil enquanto senta em sua grande cadeira.

    ‘Mas meus senhores, atos malignos podem ser provocados. Que vocês se imaginem no lugar de Hardang, filho de Hundad. Bem, aí vem Húrin, senhor de Dor-lómin, seu parente, perante você: o chefe de uma grande casa, um homem cujos atos são cantados por Elfos e Homens. Mas ele agora está envelhecido, indisposto, cheio de pesar, cansado de viajar. Ele pede para ver você. Lá está você, confortável em sua cadeira. Você não se levanta. Você não fala com ele. Mas você o olha de cima a baixo, enquanto ele está de pé, até que ele cai no chão. Então, cheio de piedade e cortesia, você grita: “Tragam um banco para o homem!”

    ‘Oh, vergonha e espanto! Ele arremessa o banco na sua cabeça. Oh, vergonha e espanto eu digo, pois você também desonra sua cadeira, que você também desonra o seu salão, que você também desonra o povo de Brethil!‘Meus senhores, eu admito livremente que teria sido melhor se o Senhor Húrin tivesse sido paciente, inacreditavelmente paciente. Por que ele não esperou para ver que futuros desprezos ele deveria suportar? E mesmo assim, enquanto eu estava no salão e vi isso, tudo o que eu conseguia pensar, e é tudo que eu consigo pensar ainda agora e peço que me respondam: O que vocês acham dessas maneiras que possui o homem que tornamos Halad de Brethil?’Muitas vozes se ergueram nesta questão, mas até que Manthor erguesse sua mão, e de repente tudo estava em silêncio novamente. Mas sob a proteção do barulho, Hardang se aproximou de Avranc para falar com ele, e surpreendido pelo silêncio, eles foram pegos falando alto demais, então Manthor e outros também ouviram Hardang falar: ‘Eu me arrependo de ter atrapalhado sua tentativa de matá-lo!’ E Avranc respondeu: ‘Eu vou encontrar tempo para isto.’Mas Manthor continuou. ‘Minhas dúvidas foram sanadas. Estas maneiras não os agrada, eu vejo. Então o que teriam feito com o arremessador do banco? Teriam amarrado-o, colocariam uma coleira em seu pescoço, prenderiam-no em uma caverna, teriam algemado-o, envenenado sua comida, e por fim, arrastado ele até aqui e pedido pela sua morte? Ou teriam libertado-o? Ou teriam, talvez, pedido desculpas, ou ordenado a este Halad que o fizesse?

    Assim, mais vozes ainda se ergueram, e homens se levantaram nas bancadas, batendo palmas e gritando: ‘Libertem! Libertem! Libertem ele!’ E muitas vozes foram ouvidas gritando: ‘Fora com este Halad! Coloquem-no nas cavernas!’

    Muitos dos homens mais velhos que sentavam nas fileiras de baixo correram e se ajoelharam perante Húrin e pediram o seu perdão; e um ofereceu a ele uma bengala, outro deu a ele um belo manto e um grande cinto de prata. E quando Húrin estava todo vestido, e com uma bengala em sua mão, ele foi até a Pedra e subiu nela, não como um suplicante, mas como um rei; e encarando a assembléia, ele gritou em uma grande voz: ‘Eu agradeço a vocês, mestres de Brethil aqui presentes, que me libertaram da desonra. Ainda existe justiça em sua terra, mas ela estava adormecida e demorou a despertar. Mas agora eu tenho uma acusação a fazer.

    ‘Qual é minha missão aqui, é o que foi perguntado? O que acham? Túrin, meu filho, e Nienor, minha filha, não morreram nesta terra? Ai de mim! De longe eu fiquei sabendo das dores que aconteceram aqui. É então um espanto que um pai vá procurar as tumbas dos seus filhos? Maior espanto é, pelo que me parece, que ninguém aqui, em momento algum, falou seus nomes para mim.

    ‘Estão envergonhados que deixaram meu filho Túrin morrer por vocês? Que apenas dois tiveram coragem de ir com ele encarar o terror do verme? Que ninguém ousou ir até lá para socorrê-lo quando a batalha havia terminado, apesar de que o maior dos males havia sido impedido?

    ‘Envergonhados vocês devem estar. Mas esta não é a minha acusação. Eu não peço que nenhum nesta terra se equipare ao filho de Húrin em valor. Mas se eu perdoar esta dor, devo perdoar isto? Escutem-me, homens de Brethil! Lá está, junto à Pedra Parada que vocês ergueram, uma mendiga. Por muito tempo ela ficou em sua terra, sem fogo, sem comida, sem piedade. Agora ela está morta. Morta. Ela era Morwen, minha esposa. Morwen Edelwen, a dama bela como os elfos que deu vida a Túrin, o matador de Glaurung. Ela está morta.

    ‘Se vocês, que têm um pouco de piedade, gritarem para mim que não possuem culpa, então eu pergunto quem é o culpado? Por quem no comando ela foi deixada fora para morrer de fome em suas portas como um cão expulso?

    ‘O seu líder contribuiu para isto? Acredito que sim. Ou ele não teria agido assim comigo, se tivesse a chance? Estas são os seus presentes: desonra, fome, veneno. Vocês não tem parte nisto? Vocês não trabalhariam conforme sua vontade? Então, por quanto tempo, senhores de Brethil, vocês o suportarão? Por quanto tempo vocês irão permitir que este homem chamado Hardang sente em sua cadeira?’

    Agora Hardang estava aterrorizado, quando chegou a sua vez, e seu rosto ficou branco com medo e espanto. Mas antes que pudesse falar, Húrin apontou uma longa mão a ele. ‘Vejam!’ ele gritou. ‘Ali ele está com um sorriso de escárnio em seus lábios! Será que se considera a salvo? Pois roubaram minha espada; e eu sou velho e estou cansado, ele pensa. Não, por muitas vezes me chamou de homem selvagem. Ele verá um então! Apenas mãos, mãos, são necessárias para esmagar sua garganta cheia de mentiras.’

    Com isto, Húrin deixou a pedra e caminhou a passadas largas em direção a Hardang; mas este se afastou perante Húrin, chamando seus guarda-costas para protegê-lo; e eles foram em direção ao portão. Para muitos isto pareceu que Hardang admitira sua culpa, e eles puxaram suas armas, e desceram da bancada, gritando em direção a ele.

    Agora o perigo da batalha estava no interior do anel sagrado. Pois outros se aliaram a Hardang, alguns por amor por ele ou pelos seus atos, que, acima de tudo, eram leais a ele e ao menos o defenderiam da violência, até que pudesse se defender perante o debate.

    Manthor estava entre os dois grupos, e gritou para que segurassem suas mãos e que não derramassem sangue no anel do debate; mas a fagulha que ele mesmo criou agora explodiu em chamas além do seu controle, e uma onda de homens o colocou para o lado. ‘Fora com este Halad!’ eles gritavam. ‘Fora com Hardang, levem-no para as cavernas! Abaixo Hardang! Viva Manthor! Nós queremos Manthor!’ E eles se lançaram sobre os homens que barravam o caminho para o portão, para que Hardang tivesse tempo para escapar.

    Mas Manthor voltou até Húrin, que agora estava sozinho, perto da Pedra. ‘Ai de mim, Senhor!’ disse ele, ‘eu temia que esse dia guardasse grande perigo para nós. Há pouco que posso fazer, mas ainda eu devo tentar evitar o mal maior. Eles logo sairão, e eu devo segui-los. Você virá comigo?’

    Muitos caíram no portão, de ambos os lados, mas ele foi tomado. Lá Avranc lutou bravamente, e ele foi o último a fugir. Mas quando ele se virou para correr, ele de repente puxou seu arco e atirou em Manthor, que estava próximo da Pedra. Mas, devido à sua pressa, ele errou o tiro, e a flecha acertou a pedra, lançando fagulhas atrás de Manthor enquanto quebrava. ‘Da próxima vez será mais perto!’ gritou Avranc, enquanto fugia com Hardang.

    Então os rebeldes saíram do anel e perseguiram os homens de Hardang até Obel Halad, quase há meia milha de distância. Mas antes de chegarem lá, o Hardang havia tomado conta do salão e o trancou; e ele agora estava cercado. O salão dos líderes ficava num jardim com uma parede de terra redonda em volta, se erguendo de um dique externo seco. Na parede havia apenas um portão, do qual uma trilha de pedras levava até grandes portas. Os perseguidores passaram pelo portão e rapidamente cercaram todo o salão, e tudo ficou quieto por um tempo.

    Mas Manthor e Húrin chegaram até o portão; e Manthor queria negociar, mas os homens disseram: ‘De que servem palavras? Ratos não sairão enquanto cães estão perto.’ E alguns gritaram: ‘Nossos parentes foram assassinados, e nós os vingaremos!’

    ‘Muito bem’, disse Manthor, ‘permitam ao menos que eu faça o que eu posso!’

    ‘Então faça!’ disseram eles. ‘Mas não se aproxime demais, ou poderá receber uma resposta afiada.’

    Assim, Manthor ficou próximo ao portão e ergueu sua grande voz, gritando para ambos os lados que eles deveriam parar com este fraticídio. E para aqueles que ele estavam dentro, prometeu que aqueles que se apresentassem desarmados poderiam sair livremente, até mesmo Hardang, se ele desse sua palavra de comparecer perante o Debate no dia seguinte. ‘E nenhum homem irá levar armas também,’ disse ele.

    Mas enquanto falava, uma flecha saiu de uma janela, que passou perto da orelha de Manthor, e cravou fundo em um dos marcos do portão. Então a voz de Avranc foi ouvida, gritando: ‘A terceira vez será certeira!’

    Agora a raiva daqueles que estavam fora se inflamou novamente, e muitos correram até as grandes portas e tentaram quebrá-las; mas lá havia uma surtida, e muitos foram feridos ou mortos, e muitos outros no pátio foram feridos por flechas das janelas. Então os assaltantes, agora cheios de ira, trouxeram galhos e gravetos e muita madeira, e colocaram no portão; e gritaram para aqueles que estavam dentro:

    ‘Vejam! O Sol está se pondo. Nós lhe daremos até o cair da noite. Se vocês não saírem então, nós iremos queimar o salão com vocês dentro!’

    Então todos se afastaram do pátio, para evitar flechadas, mas formaram um anel de homens em volta do dique externo.

    O Sol se pôs e ninguém saiu do salão. E quando estava escuro, os assaltantes voltaram ao pátio carregando a madeira, e as empilharam em volta das paredes do salão. Então, alguns carregando tochas acesas, correram pelo pátio para colocar fogo nas madeiras. Um foi morto por uma flechada, mas os outros chegaram às pilhas e logo começaram a queimar.

    Manthor ficou horrorizado na ruína do salão e o ato maligno dos homens de queimá-lo. ‘Dos dias escuros do nosso passado isso vem,’ disse ele, ‘antes de virarmos nossos rostos para o oeste. Uma sombra está sobre nós.’ E ele sentiu uma mão no seu ombro, e ele se virou e viu Húrin, que estava atrás dele, com uma expressão austera; e Húrin riu.

    ‘Vocês são um povo estranho,’ disse ele. ‘Uma hora frios, outra quente. Primeiro ira, então piedade. Sob os pés de seu líder e agora na sua garganta. Abaixo Hardang! Viva Manthor! Você irá aceitar isso?’

    ‘O povo deve escolher,’ disse Manthor. ‘E Hardang ainda vive.’

    ‘Não por muito tempo, espero,’ disse Húrin.

    Agora as chamas cresceram e logo o salão do Haladin estava queimando em muitos lugares. Os homens de dentro jogaram terra e água sobre a lenha, tudo o que tinham, e uma grande fumaça se ergueu. Então alguns tentaram fugir sob sua proteção, mas poucos passaram pelo anel de homens; a maioria foi preso, ou morto, se tentaram lutar.

    Havia uma pequena porta nos fundos do salão com uma varanda arqueada que se aproximava mais da parede do pátio do que as grandes portas na frente; e a parede atrás era mais baixa, porque o salão fora construído nas encostas de uma colina. Quando o telhado pegou fogo, Hardang e Avranc fugiram pela porta dos fundos, alcançaram o topo da parede e rolaram para o dique, e não foram avistados até que tentaram escalar para fora. Mas então, com gritos, homens correram até eles, mas não sabiam quem eram. Avranc se lançou aos pés de um deles, e o derrubou, e Avranc se levantou e fugiu pela escuridão. Mas outro arremessou uma lança nas costas de Hardang enquanto fugia, e ele caiu com um grande ferimento.

    Quando descobriram quem ele era, os homens o levantaram e o colocaram aos pés de Manthor. ‘Não o coloque aos meus pés,’ disse Manthor, mas aos pés daquele que ele maltratou. Não tenho nada contra ele.’

    ‘Não tem?’ disse Hardang. ‘Então deve ter certeza da minha morte. Eu acho que você sempre terá algo contra aquele que foi escolhido pelo povo para ocupar a cadeira em vez de você.’

    ‘Pense o que quiser!’ disse Manthor, e se afastou. Então Hardang percebeu que Húrin estava ali. E Húrin ficou olhando para Hardang, uma forma escura na penumbra, mas a luz do fogo estava em seu rosto, e ali Hardang não viu piedade.

    ‘Você é um homem mais forte que eu, Húrin de Hithlum,’ ele disse. ‘Eu tinha tanto medo da sua sombra que toda a sabedoria e generosidade me abandonou. Mas agora eu não acho que nenhuma sabedoria ou piedade me salvaria de você, pois você não tem nem uma coisa nem outra. Você veio me destruir, ao menos nunca negou isto. Mas sua última mentira contra mim, eu a rebato antes de morrer. Nunca’ – mas com um engasgo de sangue em sua garganta, ele caiu para traz e não falou mais nada.

    Então Manthor falou: ‘Ai de mim! Ele não devia ter morrido desta forma. A maldade que ele criou não lhe dava o direito de morrer assim.’

    ‘Por que não?’ disse Húrin. ‘Ele falou palavras odiosas de uma boca podre no final. Que mentiras falei contra ele?’

    Manthor suspirou. ‘Nenhuma mentira intencional, talvez,’ ele disse. ‘Mas a última acusação que você apresentou era falsa, eu acho; e ele não teve chance de negá-la. Eu preferiria que tivesse falado para mim antes do Debate!’

    Húrin cerrou os punhos. ‘Não é falsa!’ ele gritou. ‘Ela está onde eu falei. Morwen! Ela está morta!’

    ‘Ai de mim! Senhor, onde ela morreu eu não duvido. Mas disso eu acho que o Hardang não sabia mais do que eu, antes de você falar. Diga-me, senhor: ela alguma vez caminhou mais profundamente nesta terra?’

    ‘Eu não sei. Eu a encontrei como falei. Ela está morta.’

    ‘Mas senhor, se ela não caminhou mais, mas, ao encontrar a pedra, lá se sentou, triste e desesperada, no túmulo de seu filho, pelo que posso crer, então…’

    ‘Então o que?’ disse Húrin.

    ‘Então, Húrin Hadorion, pela escuridão de sua angústia, saiba disso! Meu senhor, cujo sofrimento é imenso, tão imenso quanto as coisas que vieram a acontecer conosco que nenhum homem e nenhuma mulher se aproximou daquela pedra desde que ela está lá. Não! O senhor Oromë em pessoa pode sentar naquela pedra, com toda a sua caça em sua volta, e não saberíamos. E mesmo que soprasse sua grande corneta, nós não atenderíamos àquele chamado!’

    ‘Mas e se Mandos, o Justo, falasse, não o ouviria?’ disse Húrin. ‘Agora alguns devem ir para lá, se você possui alguma piedade! Ou irá deixá-la lá, até que seus ossos fiquem brancos? Isto purificaria a sua terra?’

    ‘Não, não!’ disse Manthor. ‘Eu irei encontrar alguns homens de coração forte e mulheres piedosas, e você nos levará até lá, e faremos o que pede. Mas é uma longa estrada, e este dia está acabando em toda a sua malícia. Um novo dia é necessário.’

    No dia seguinte, quando as notícias da morte de Hardang se espalharam, uma grande multidão de pessoas procurou Manthor, implorando para que se tornasse líder. Mas ele disse: ‘Não, isto deve ser apresentado perante o Debate. E não pode ser agora, pois o anel foi maculado, e existem outras coisas que são mais urgentes. Primeiro eu tenho uma missão. Eu devo ir ao campo do verme e até a Pedra dos Infelizes, onde Morwen, sua mãe está abandonada. Alguém irá comigo?’

    Então a piedade afetou alguns corações dos que o ouviram; e apesar de alguns terem se afastado com medo, muitos estavam dispostos a ir, mas entre estes, havia mais mulheres do que homens.

    Assim, mais tarde, partiram em silêncio, trilhando o caminho que levava pela cachoeira de Celebros. Após oito milhas, a escuridão caiu sobre Nen Girith, e eles passaram a noite da forma que puderam. E na manhã seguinte, eles chegaram ao Campo da Queimada, e eles encontraram o corpo de Morwen ao lado da Pedra Parada. Então olharam para ela com piedade e espanto; pois parecia que olhavam para uma grande rainha cuja dignidade nem a idade nem toda a miséria nem toda a angústia do mundo conseguiria tirar dela.

    Então eles desejaram honrá-la em morte; e alguns disseram: ‘Este é um lugar negro. Vamos erguê-la, e levar a Senhora Morwen até o pátio dos túmulos e colocá-la entre os da Casa de Haleth com quem possui parentesco.’

    Mas Húrin disse: ‘Não, Nienor não está aqui, mas é melhor que ela fique aqui, próxima de seu filho, em vez de com estranhos. É o que ela teria escolhido.’ Então eles fizeram uma tumba para Morwen sobre Cabed Naeramarth, no lado oeste da Pedra; e quando a terra foi jogada sobre ela, eles escreveram na Pedra: Aqui jaz também Morwen Edelwen, enquanto alguns cantavam na língua antiga os lamentos que há muito foram feitos para aqueles do seu povo que caíram na Marcha além das Montanhas.

    E enquanto cantavam, começou uma chuva cinzenta, e todo aquele lugar desolado se encheu de pesar, e o rugir do rio era como o lamento de muitas vozes. E quando tudo terminou, eles se afastaram, e Húrin foi apoiado em sua bengala. Mas dizem que depois deste dia o medo abandonou aquele lugar, mas a tristeza permaneceu, e ficou para sempre sem folhas e descoberto. Mas até o fim de Beleriand, as mulheres de Brethil iriam com flores na primavera, e bacíferos no outono, e cantariam ali por um tempo, para a Senhora Cinzenta que procurou em vão por seu filho. E um vidente e um harpista de Brethil, Glirhuin, fez uma canção falando que a Pedra dos Infelizes não poderia ser maculada por Morgoth, nem nunca derrubada, nem que o Mar engolisse toda a terra. O que de fato aconteceu depois, e ainda a Tol Morwen está sozinha na água, além das novas costas que foram criadas nos dias da ira dos Valar. Mas Húrin não está enterrado lá, pois seu destino o levou adiante, e a Sombra continuou seguindo-o.

    Agora, quando a companhia retornou para Nen Girith, eles pararam, e Húrin olhou para trás, além de Taeglin, em direção ao Sol poente que aparecia através das nuvens; e ele estava relutante em retornar para a Floresta. Mas Manthor olhou para o leste e estava preocupado, pois havia um brilho vermelho no céu daquele lado também.

    ‘Senhor,’ disse ele, ‘fique aqui se quiser, assim como todos os outros que estiverem cansados. Mas eu sou o último dos Haladin, e eu temo que o fogo que foi aceso ainda não tenha se apagado. Devo retornar rapidamente, para que a loucura dos homens não leve Brethil inteira à ruína.’

    Mas enquanto ele falava isto, uma flecha saiu do meio das árvores, e ele tropeçou e caiu no chão. Então os homens correram para procurar pelo arqueiro; e eles viram um homem correndo como um cervo pelo caminho até Obel, e ele não foi alcançado; mas eles viram que era Avranc.

    Manthor sentou-se, ofegante, encostado em uma árvore. ‘Só um arqueiro ruim erraria o alvo no terceiro tiro,’ ele disse.

    Húrin se curvou em sua bengala e olhou para Manthor. ‘Mas você também errou seu alvo, parente,’ ele disse. ‘Você foi um amigo valoroso, e eu acho que você foi com muita vontade na causa que também era sua. Manthor teria sentado de forma mais merecedora na cadeira dos líderes.’

    ‘Você possui um olho forte, Húrin, para perfurar todos os corações, menos o seu,’ disse Manthor. ‘Sim, sua escuridão também me tocou. Agora ai de mim! Os Haladin se acabaram; pois este ferimento é mortal. Esta não era sua verdadeira missão, homem do norte: levar a ruína a nós para contrapesar com a sua? A Casa de Hador nos conquistou, e quatro de nós caíram sob sua sombra: Brandir, e Hunthor, e Hardang e Mantho. Não é o suficiente? Não partirás e deixar esta terra que morre?’

    ‘Eu irei,’ disse Húrin. ‘Mas se o poço das minhas lágrimas não estivesse totalmente seco, eu choraria por você, Manthor, pois você me salvou da desonra, e eu o amo como a um filho.’

    ‘Então, senhor, use em paz o pouco mais de vida que eu ganhei para você,’ disse Manthor. ‘Não leve sua sombra para outros!’

    ‘Por quê? Não posso mais caminhar pelo mundo?’ disse Húrin. ‘Eu irei continuar até que a sombra de derrube. Adeus!’

    E assim Húrin se separou de Manthor. Quando os homens foram medicar seus ferimentos, descobriram que era grave, pois a flecha entrara fundo em seu flanco; e eles quiseram carregar Manthor rapidamente de volta para o Obel, para que fosse cuidado por curandeiros habilidosos. ‘Tarde demais,’ disse Manthor, e ele arrancou fora a flecha, e deu um grande grito, e ficou imóvel. Assim terminou a Casa de Haleth, e homens menores governaram Brethil no tempo que restou.

    Mas Húrin ficou em silêncio, e quando a companhia partiu, carregando o corpo de Manthor, ele não se virou. Ele olhou sempre para o oeste até que o Sol caísse na escuridão e a luz falhasse; e então partiu sozinho em direção à Haud-em-Elleth.

    * Pois Manthor era um descendente de Haldad, e ele possuía uma terra pequena na fronteira leste de Brethil, próximo ao Sirion onde ele atravessa Dimbar. Mas todo o povo de Brethil era formado por homens livres, mantendo suas casas e suas terras, sejam maiores ou menores, de direito. Seu senhor era escolhido entre os descendentes de Haldad, por reverência pelos feitos de Haleth e Haldar; e mesmo que a liderança era dada, como se fosse um domínio ou um reino, para os mais velhos da linhagem mais velha, o povo tinha o direito de colocar qualquer um de lado ou tirá-lo de lá, por uma causa grave. E alguns sabiam o suficiente que Harathor tentara que Brandir o Aleijado tivesse tido abdicado em seu favor.

  • O Conto de Adanel

    O Conto de Adanel

    [O “Conto de Adanel” era é uma versão da história da “Queda dos Homens” como contada na Terra-média entre os Edain da Primeira Era. Está contido no volume 10 da série The History of Middle-earth X, Morgoth’s Ring]

    Então Andreth, encorajada por Finrod, disse por fim: “- Este é o conto que Adanel, da Casa de Hador, contou-me”.

    Alguns dizem que o Desastre aconteceu no início da história de nosso povo, antes que qualquer um houvesse morrido. A Voz falara a nós, e nós ouvíramos. A Voz disse: “- Vós sois meus filhos. Enviei-vos para aqui habitardes. No devido tempo herdareis toda esta Terra, mas primeiro deveis ser crianças e aprender. Pedi a mim e ouvirei, pois velo por vós”.

    Compreendemos a Voz em nossos corações, embora ainda não possuíssemos palavras. Então o desejo pelas palavras despertou em nós, e começamos a criá-las. Mas éramos poucos, e o mundo era vasto e estranho. Embora muito desejássemos compreender, aprender era difícil, e a criação das palavras era lenta.

    Naquele tempo com freqüência chamávamos e a Voz respondia. Mas ela raramente respondia nossas perguntas, dizendo apenas: “- Primeiro procurai encontrar a resposta por vós mesmos. Pois tereis alegria na descoberta, e assim saireis da infância e tornar-vos-eis sábios. Não procureis deixar a infância antes de vosso tempo”.

    Mas tínhamos pressa, e desejávamos ordenar as coisas à nossa vontade; e as formas de muitas coisas que desejávamos criar despertaram em nossas mentes. Portanto, falávamos cada vez menos à Voz.

    Então alguém apareceu entre nós em nossa própria forma visível, mas maior e mais belo, e ele disse que viera por piedade. “Vós não deveríeis ser deixados sozinhos e sem instrução” disse ele. “O mundo está repleto de riquezas maravilhosas que o conhecimento pode revelar. Vós poderíeis ter alimentos mais abundantes e mais deliciosos do que comeis agora. Vós poderíeis ter tranqüilas habitações, nas quais poderíeis manter a luz e afastar a noite. Poderíeis inclusive vestir-vos igual a mim.”

    Então olhamos e vede, ele usava vestes que brilhavam como prata e ouro, e tinha uma coroa em sua cabeça e jóias em seu cabelo. “Se desejais ser como eu” disse ele “, ensinar-vos-ei”. Então aceitamo-lo como mestre.

    Ele era menos rápido do que esperávamos a ensinar-nos como encontrar, ou criar por nós mesmos, as coisas que desejávamos, embora ele houvesse despertado muitos desejos em nossos corações. Mas se qualquer um duvidasse ou ficasse impaciente, ele trazia e colocava diante de nós tudo o que havíamos desejado. “Sou o Provedor de Presentes” disse ele “, e os presentes nunca faltarão enquanto vós confiardes em mim”.

    Por conseguinte, reverenciamo-lo, e por ele fomos cativados, e dependíamos de seus presentes, temendo retornar a uma vida sem eles que agora parecia-nos pobre e dura. E acreditamos em tudo que ele ensinou. Pois estávamos ávidos para saber sobre o mundo e sua existência: sobre as feras e pássaros, e as plantas que cresciam na Terra; sobre nossa própria criação; e sobre as luzes do céu, sobre as estrelas incontáveis, e a Escuridão na qual elas estão.

    Tudo o que ele ensinava parecia bom, pois ele possuía um grande conhecimento. Mas cada vez mais ele falava da Escuridão. “Maior de todas é a Escuridão” disse ele “, pois Ela não tem limites. Vim da Escuridão, mas sou Seu mestre. Pois eu criei a Luz. Criei o Sol e a Lua e as incontáveis estrelas. Proteger-vos-ei da Escuridão, que de outro modo devorar-vos-ia”.

    Então falamos-lhe da Voz. Mas sua face tornou-se terrível, pois ele enfurecera-se. “Tolos!” disse ele. “Aquela era a Voz da Escuridão. Ela deseja afastar-vos de mim, pois Ela está faminta por vós”.

    Ele então foi embora, e não o vimos por um longo tempo, e sem seus presentes éramos pobres. E então chegou um dia no qual a luz do Sol repentinamente começou a falhar, até que foi apagada, e uma grande sombra caiu sobre o mundo, e todas as feras e pássaros temeram. Então ele veio novamente, caminhando através da sombra como um fogo brilhante.

    Prostramo-nos. “Há alguns entre vós que ainda estão dando ouvidos à Voz da Escuridão” disse ele “e, portanto, Ela aproxima-se. Escolhei agora! Podeis ter a Escuridão como Senhor, ou podeis ter a Mim. Mas a menos que tomeis a Mim por Senhor e jureis servir-Me, partirei e deixar-vos-ei, pois possuo outros reinos e moradias, e não preciso da Terra, nem vós”.

    Então em medo falamos conforme ele ordenara, dizendo: “- Vós sois o Senhor. Apenas a Ti serviremos. À Voz renunciamos e não mais escuta-la-emos”.

    “- Que assim seja!” disse ele. “Agora construí a Mim uma casa sobre um local elevado e chamai-na Casa do Senhor. Para lá irei quando desejar. Lá visitar-Me-eis e fazer-Me-eis vossas súplicas”.

    E quando tínhamos construído uma grande casa, ele veio e colocou-se diante do alto assento, e a casa foi iluminada como que por fogo. “Agora” disse ele “apareça qualquer um que ainda dê ouvidos à Voz!”

    Havia alguns, mas por medo eles permaneceram imóveis e nada disseram. “Então curvai-vos diante de Mim e reconhecei-Me!” disse ele. E todos curvavam-se ao solo diante dele, dizendo: “- Vós sois o Único Grande, e somos Vossos”.

    Com isso, ele ergueu-se como em uma grande chama e fumaça, e fomos queimados pelo calor. Mas repentinamente ele partira, e estava mais escuro que a noite, e fugimos da Casa.

    Posteriormente sempre íamos com um grande pavor da Escuridão, mas ele raramente aparecia novamente entre nós em uma forma bela, e trazia poucos presentes. Se em grande necessidade ousávamos ir à Casa e orar-lhe para que ajudasse-nos, escutávamos sua voz, e recebíamos suas ordens. Mas agora ele sempre ordenava-nos a executar alguma tarefa ou dar-lhe algum presente antes de ouvir a nossa prece; e as tarefas tornavam-se sempre piores, e mais difícil abrir mão dos presentes.

    A primeira Voz nunca mais ouvimos, exceto uma vez. No silêncio da noite Ela falou, dizendo: “- Renunciastes a Mim, mas vós permaneceis Meus. Dei-vos a vida. Agora ela encurtar-se-á, e cada um de vós em pouco tempo virá a Mim, para aprender quem é vosso Senhor: aquele que idolatrais ou Eu que criei-o”.

    Então nosso terror pela Escuridão aumento, pois acreditávamos que a Voz era da Escuridão por trés das estrelas. E alguns de nós começaram a morrer em horror e angústia, temendo sair para a Escuridão. Chamamos então por nosso Mestre para que salvasse-nos da morte, mas ele não respondeu. Mas quando fomos à Casa e todos lá curvaram-se, ele por fim veio, grande e majestoso, mas seu rosto era cruel e orgulhoso.

    “- Agora sois Meus e deveis fazer Minha vontade” disse ele. “Não preocupo-me que alguns de vós morrais e vades para aplacar a fome da Escuridão, pois de outro modo logo haveria muitos de vós, rastejando como parasitas sobre a Terra. Mas se não fizerdes Minha vontade, sentireis Minha ira, e morrereis mais cedo, pois matar-vos-ei”.

    Com isso fomos dolorosamente afligidos, pelo cansaço, fome e enfermidades; e a Terra e todas as coisas nela viraram-se contra nós. Fogo e água rebelaram-se contra nós. Os pássaros e feras evitavam-nos ou, se eram fortes, atacavam-nos. Plantas deram-nos veneno, e temíamos as sombras sob as árvores.

    Então ansiamos pela nossa vida como fora antes que nosso Mestre chegasse; e nós o odiamos, mas o temíamos não menos que a Escuridão. E cumprimos sua ordem, e mais do que sua ordem; pois tudo que pensávamos que agradar-lhe-ia, embora maligno, fazíamo-lo, na esperança de que ele aliviaria nossas aflições e que ao menos não mataria-nos.

    Para a maioria de nós isso foi em vão. Mas a alguns ele começara a favorecer: os mais fortes e mais cruéis, e aqueles que iam com maior freqüência à Casa. Deu-lhes presentes e conhecimentos que mantiveram em segredo; e eles tornaram-se poderosos e orgulhosos, e escravizaram-nos, de modo que não tínhamos descanso do nosso trabalho no meio de nossas aflições.

    Então ergueram-se alguns dentre nós que diziam abertamente em seu desespero: “- Agora finalmente sabemos quem mentiu e quem desejava devorar-nos. não a primeira Voz. É o Mestre que tomamos a Escuridão; e ele não veio dela, como disse, mas nela habita. não mais servi-lo-emos! Ele é nosso Inimigo”.

    Então com medo, para que ele não ouvisse-os e punisse a todos nós, matávamo-los se pudéssemos; e aqueles que fugiam nós caçávamos; e, se quaisquer eram pegos, nossos mestres, amigos dele, ordenavam que eles fossem levados à Casa e lá mandados para a morte pelo fogo. Isso agradava-lhe enormemente, seus amigos diziam; e, de fato, por um tempo parecia que nossas aflições foram aliviadas.

    Mas conta-se que houve alguns que escaparam-nos, e partiram para países longínquos, fugindo da sombra. Ainda assim eles não escaparam da ira da Voz, pois eles haviam construído a Casa e curvaram-se nela. E por fim chegaram ao final da terra e às praias da água intransponível; e vede, o Inimigo estava lá diante deles.

  • Ambarkanta

    Ambarkanta

    Ao redor de todo o Mundo estão as Ilurambar [1], ou as Muralhas do Mundo. Elas são como gelo, vidro e aço, estando acima de toda a imaginação dos Filhos da Terra, frias, transparentes e duras. Elas não podem ser vistas, nem podem ser transpostas, exceto pela Porta da Noite.

    Dentro destas muralhas a Terra está situada: acima, abaixo e em todos os lados está Vaiya, o Oceano Envolvente. Mas ele é mais como o mar abaixo da Terra e mais como o ar acima dela. Em Vaiya abaixo da Terra mora Ulmo. Acima da Terra situa-se o Ar, que é chamado Vista, e sustenta pássaros e nuvens. Por esse motivo ele é chamado acima Fanyamar, ou Casa de Nuvens; e abaixo Aiwenórë ou Terra dos Pássaros. Mas este ar situa-se apenas sobre a Terra-média e os Mares Interiores, e seus limites são as Montanhas de Valinor no Oeste e as Muralhas do Sol no Leste. Por este motivo as nuvens raramente chegam a Valinor, e os pássaros mortais não passam para além dos picos de suas montanhas. Mas no Sul, onde há principalmente frio e escuridão, e a Terra-média extende-se próxima às Muralhas do Mundo, Vaiya, Vista e Ilmen sopram juntos e confundem-se mutuamente.

    Ilmen é aquele ar que, sendo límpido e puro, é impregnado de luz, embora não a emane. Ilmen fica acima de Vista, e não é grande em profundidade, porém é mais profundo no Oeste e no Leste, e menor no Norte e no Sul. Em Valinor o ar é Ilmen, mas Vista sopra ocasionalmente, especialmente em Casadelfos, parte da qual está na base oriental das Montanhas; e se Valinor é obscurecida e seu ar não é purificado pela luz do Reino Abençoado, ele toma a forma de sombras e névoas cinzentas. Mas Ilmen e Vista misturar-se-ão como sendo um só, porém Ilmen é respirado pelos Deuses, e purificado pela passagem astros; pois em Ilmen Varda decretou o curso das estrelas, e mais tarde do Sol e da Lua.

    De Vista não há como sair nem como fugir, exceto para os servos de Manwë, ou para aqueles aos quais ele concede poderes como os de seu povo, que podem sustentar-se em Ilmen ou mesmo em Vaiya superior, que é muito tênue e frio. De Vista pode-se descer para a Terra-média. De Ilmen, pode-se descer para Valinor. Ora, a terra de Valinor estende-se quase até Vaiya, que é mais estreito no Oeste e Leste do Mundo, mas mais profundo no Norte e no Sul. As costas ocidentais de Valinor não estão, portanto, muito longe das Muralhas do Mundo. Contudo, há um abismo que separa Valinor de Vaiya, e ele é preenchido por Ilmen, e por este caminho pode-se descer de Ilmen acima da terra para as regiões inferiores, às raizes da Terra, e para as cavernas e grutas que estão nas fundações das terras e mares. Lá é o lugar de permanência de Ulmo. De lá originam-se as águas da Terra-média. Pois estas águas são compostas por Ilmen, Vaiya e Ambar [que significa Terra], uma vez que Ulmo funde Ilmen e Vaiya e envia-os através dos veios do Mundo para purificar e renovar os mares e rios, os lagos e as fontes da Terra-média. E as águas correntes possuem assim a memória das profundezas e das alturas, e guardam um pouco da sabedoria e música de Ulmo, e da luz dos astros do céu.

    Nas regiões de Ulmo as estrelas algumas vezes estão escondidas, e lá a Lua frequentemente vaga e não é vista da Terra-média. Mas o Sol não se demora lá. Ela [2] passa sob a terra às pressas, a fim de que a noite não se prolongue e o mal se fortaleça; ela é puxada através do Vaiya inferior pelos servos de Ulmo, sendo aquecida e preenchida com vida. Assim os dias são medidos pelas rotas do Sol, que navega de Leste a Oeste através do Ilmen inferior, ocultando as estrelas; ela passa sobre o centro da Terra-média sem se deter, e muda seu curso em direção ao norte ou para o sul, não caprichosamente, mas devido à rota e à estação. E quando ela ergue-se acima das Muralhas do Sol é a Aurora, e quando mergulha atrás das Montanhas de Valinor, é o Anoitecer.

    Mas os dias em Valinor são diferentes dos da Terra-média. Pois lá a hora de maior luz é o Anoitecer. Então o Sol desce e repousa por algum tempo na Terra Abençoada, deitando-se no seio de Vaiya. E quando ela penetra em Vaiya, o mesmo torna-se ardente e fulgura com um fogo róseo, e por um longo tempo ilumina aquela terra. Mas a medida em que ela passa em direção ao Leste o fulgor desvanece, e Valinor é privada de luz, e é iluminada apenas pelas estrelas; e então os Deuses muito se lamentam pela morte de Laurelin. Ao amanhecer, a escuridão é profunda em Valinor, e as sombras de suas montanhas estendem-se pesadamente sobre as mansões dos Deuses. Mas a Lua não se demora em Valinor, e passa rapidamente sobre ela para mergulhar no abismo de Ilmen, pois ele sempre persegue o Sol, e raramente a alcança, quando então é consumido e obscurecido em sua chama. Mas às vezes acontece de ele chegar sobre Valinor antes de o Sol ter partido, e então desce e encontra sua amada, e Valinor é preenchida com uma luz mesclada tal qual prata e ouro; e os Deuses sorriem lembrando-se da fusão da Laurelin e Silpion há muito tempo atrás.

    A Terra de Valinor inclina-se para baixo a partir do sopé das Montanhas, e sua costa ocidental está no nível do fundo dos mares interiores. E não longe dali, como foi dito, estão as Muralhas do Mundo; e no sentido oposto à costa mais ocidental no centro de Valinor está Ando Lómen, a Porta da Noite Eterna que penetra as Muralhas e abre-se para o Vazio. Pois o Mundo encontra-se em meio a Kúma, o Vazio, a Noite sem forma ou tempo. Mas ninguém pode ultrapassar o abismo e a região de Vaiya e chegar àquela Porta, exceto unicamente os grandes Valar. E eles fizeram aquela porta quando Melko foi sobrepujado e colocado na Escuridão Exterior; e ela é guardada por Eärendel [3].

    A Terra-média situa-se no meio do Mundo, e é composta de terra e água; sua superfície é o centro do mundo, das fronteiras do Vaiya superior aos confins do inferior. Antigamente assim era a sua forma. Era mais elevada no centro, decaindo de cada lado em vastos vales, mas ergue-se novamente no Leste e Oeste, mais uma vez decaindo para o abismo em suas bordas. Os dois vales eram preenchidos com a água primordial, e as costas destes antigos mares eram no Oeste as regiões montanhosas mais ocidentais e a borda da grande terra, e no Leste as regiões montanhosas e a borda da grande terra sobre o outro lado. Mas ao Norte e ao Sul ela não decaía, e podia-se ir por terra do extremo Sul do abismo de Ilmen ao extremo Norte do mesmo. Os mares antigos, portanto, situam-se em canais, e suas águas não vertiam para o Leste ou Oeste; mas eles não possuíam costas tanto ao Norte como ao Sul, vertiam para o abismo, e suas cachoeiras tornavam-se gelo e pontes de gelo por causa do frio; de forma que o abismo de Ilmen era aqui fechado e pontificado, e o gelo estendia-se ao Vaiya, e até as Muralhas do Mundo.

    Ora, é dito que os Valar, entrando no Mundo, desceram primeiro sobre a Terra-média no seu centro, exceto Melko, que desceu no Norte distante. Mas os Valar pegaram uma porção de terra e criaram uma ilha, consagrando-a, e a colocaram no Mar Ocidental e permaneceram nela, enquanto estavam ocupados na exploração e na primeira disposição do Mundo. Como é contado, eles desejaram criar lamparinas, e Melko ofereceu-se para desenvolver uma nova substância de grande força e beleza para seus pilares. Ele levantou estes grandes pilares ao norte e ao sul do centro da Terra, mesmo assim mais perto dele do que o abismo; os Deuses colocaram lamparinas sobre eles, e a Terra teve luz durante algum tempo.

    Mas os pilares foram criados com falsidade, sendo talhados em gelo; eles derreteram e as lamparinas caíram em ruína, e sua luz foi derramada. Mas o derretimento do gelo criou dois pequenos mares interiores, ao norte e sul do centro da Terra, e havia uma terra setentrional, uma terra central e uma terra meridional. Então os Valar retiraram-se para o Oeste e abandonaram a ilha; sobre a região montanhosa na margem ocidental do Mar do Oeste, eles elevaram grandes montanhas, e atrás delas criaram a terra de Valinor. Mas as montanhas de Valinor curvam-se para trás, e Valinor é mais ampla no centro da Terra, onde as montanhas andam ao lado do mar; e ao norte e ao sul, as montanhas nivelam-se em direção ao abismo. Há duas regiões da Terra Ocidental que não pertencem à Terra-média e, apesar disso, são exteriores às montanhas: elas são sombrias e vazias. A situada ao Norte é Eruman, e aquela ao Sul é Arvalin [4]; há apenas um desfiladeiro estreito entre elas e as extremidades da Terra-média, mas este desfiladeiro é preenchido com gelo.

    Para sua proteção posterior, os Valar empurraram a Terra-média no seu centro e comprimiram-na em direção ao leste, de forma que ela foi encurvada, e o grande mar do Oeste é muito amplo no centro, a mais vasta de todas as águas da Terra. A forma da Terra no Leste era muito semelhante àquela no Oeste, exceto pelo estreitamento do Mar Oriental, e o deslocamento da terra naquela direção. E além do Mar Oriental situa-se a Terra Oriental, da qual pouco sabemos, e é chamada a Terra do Sol; ela possui
    montanhas, menores do que as de Valinor, mas ainda assim muito grandes, que são as Muralhas do Sol. Em razão da queda da terra, estas montanhas não podem ser vistas, exceto pelos pássaros que voam às maiores altitudes, através dos mares que as divide das costas da Terra-média.

    E o afastamento da terra também ocasionou o aparecimento de montanhas em quatro direções, duas na Terra do Norte e duas na Terra do Sul; aquelas no Norte eram as Montanhas Azuis no lado ocidental, e as Montanhas Vermelhas no lado oriental; e no Sul eram as Montanhas Cinzentas e as Amarelas. Porém Melko fortificou o Norte e lá ergueu as Torres Setentrionais, que também são chamadas de Montanhas de Ferro, e elas voltavam-se para o sul. E na terra central havia as Montanhas de Vento, pois lá um vento fortemente soprava vindo do Leste antes do Sol; e Hildórien, a terra onde os Homens primeiro despertaram, situa-se entre estas montanhas e o Mar Oriental. Mas Kuiviénen [5], onde Oromë encontrou os Elfos, está ao Norte junto às águas de Helkar.

    Mas a simetria da antiga Terra foi mudada e partida na primeira Batalha dos Deuses, quando Valinor marchou contra Utumno, que era a fortaleza de Melko, e Melko foi acorrentado. Então o mar de Helkar [que era a lâmpada setentrional] tornou-se um mar interior ou grande lago, mas o mar de Ringil [6] [que era a lâmpada meridional] tornou-se um grande mar fluindo de norte a leste e unindo por canais tanto o Mar Ocidental como o Oriental.

    E a Terra foi novamente partida na segunda batalha, quando Melko foi mais uma vez deposto, e ela modificou-se ainda mais pela a deterioração e o passar de muitas eras. Mas a maior mudança ocorreu quando a Forma Primordial foi destruída, e a Terra foi arredondada e separada de Valinor. Isto aconteceu nos dias do ataque dos Númenoreanos sobre a terra dos Deuses, como é contado nas Histórias. E desde aquele tempo o mundo tem esquecido as coisas que haviam anteriormente, e os nomes e as lembranças das terras e águas de antigamente pereceram.

    Notas:

    [1] O presente texto pertence aos primórdios da mitologia tolkieniana, sendo escrito por volta de 1930. Muito foi modificado pelo próprio Tolkien [alguns pontos mais de uma vez] antes da publicação do Silmarillion, em 1977, editado por seu filho Christopher. Muitos nomes foram deixados de lado, outros sofreram alterações, como é o caso de Ilurambar, forma primitiva de Eärambar. [N. do T.]

    [2] No decorrer do texto, Tolkien refere-se ocasionalmente ao sol como “ela” e à lua como “ele”, por ambos serem conduzidos por seus respectivos maiar: Arien [a maia do sol], e Tilion [o maia da lua]. [N. do T.]

    [3] Formas primitivas de Melkor e Eärendil respectivamente. [N. do T.]

    [4] Formas primitivas de Araman e Avathar respectivamente. [N. do T.]

    [5] Forma primitiva de Cuiviénen. [N. do T.]

    [6] Formas primitivas de Illuin e Ormal respectivamente. [N. do T.]

  • A Segunda Profecia de Mandos

    A Segunda Profecia de Mandos

    Luthiens_Lament_Before_MandosExiste uma referência no Contos Inacabados, na seção Os Istari, que diz o seguinte: “Manwë não descerá da Montanha até a Dagor Dagorath, e a Chegada do Fim, quando Melkor retornará“. Christopher Tolkien fez um comentário no pé da página, ao leitor: “Esta é uma referência à Segunda Profecia de Mandos, que não aparece no Silmarillion; sua elucidação não pode ser tentada aqui, uma vez que necessita de algum explicação da história da mitologia em relação à versão publicada”.

    Unfinished Tales foi publicado em 1980, e, afortunadamente, com a publicação, em 1986 do quarto volume da The History of Middle-earth, entitulado The Shaping of Middle-earth, pode-se ententer mais sobre a Segunda  Profecia de Mandos. Elas aparecem neste volume de duas formas, no primeiro Silmarillion, o Sketch of the Mythology como escrito para o primeiro professor de Tolkien, R. W. Reynolds por volta de 1926, e também no Quenta Silmarillion propriamente escrito por volta de 1930. Para a versão do primeiro Silmarillion, veja section 19, pp. 40-1 de The Shaping of Middle-earth. A segunda versão, da qual alguns trechos abaixo foram retirados, encontra-se em section 19 , pp. 163-5 do mesmo volume:”Após o triunfo dos Deuses, Earendel continuou a navegar nos mares do céu, mas o Sol o queimava e a Lua o caçava no céu… Então os Valar desceram de seu navio branco, Wingelot, para a terra de Valinor, e o enxeram com brilho e o consagraram, e o lançaram através da Porta da Noite. E por muito tempo Earendel navegou na vastidão sem estrelas, Elwing a seu lado, a Silmaril à sua fronte, navegando o Escuro atrás do mundo, uma brilhante e fugitiva estrela. E algumas vezes ele retornava e brilhava atrás dos cursos do Sol e da Lua sob a proteção dos Deuses, mais brilhante que todas as outras estrelas, o marinheiro do céu, mantendo guarda a Morgoth até os confins do mundo. Dessa forma deverá navegar até que veja a Última Batalha sendo lutada nas planícies de Valinor.

    Dessa forma falou a profecia de Mandos, que ele declarou em Valmar durante o julgamento dos Deuses, e rumores dele são sussurrados por todos os Elfos do Oeste: quando o mundo estiver velho e os Poderes cansarem-se, então Morgoth deverá retornar através da Porta para fora da Noite Eterna; e ele deverá destruir o Sol e a Lua, mas Earendel virá até ele como uma chama branca e o derrubará dos ares. Então deverá ser travada a última batalha sobre os campos de Valinor. Naquele dia Tulkas lutará com Melkor, e à sua direita estará Fionwe e à sua esquerda estará Turin Turambar, filho de Hurin, Conquistador do Destino; e será a espada negra de Turin que trará a Melkor sua morte e fim definitivo; e então as Crianças de Hurin e todos os homens estarão vingados.

     

    Então as Silmarilli serão recuperadas do mar, da terra e do céu; pois Eärendil descerá e dará aquela chama a qual mantinha posse. Então Feanor utilizará as Três e com seu fogo reacenderá as Duas Árvores, e uma grande luz surgirá; a as Montanhas de Valinor serão rebaixadas, para que a luz possa atingir todo o mundo. Naquela luz os Deuses novamente sentir-se jovens, e os Elfos despertão e todos os mortos levantarão, e o propósito de Ilúvatar estará completo em relação a eles. Mas dos Homens naquele dia a profecia não fala, com excessão de  Turin apenas, e a ele o nomeia entre os Deuses.

  • Melkor Morgoth

    Melkor Morgoth

    Melkor deve ser feito muito mais poderoso em sua natureza original (cf. “Finrod e Andreth”). O maior poder abaixo de Eru (isto é, o maior poder criado).[1] (Ele devia criar/inventar/começar; Manwë (menos grandioso) devia aperfeiçoar, realizar, completar.

    [Nota do tradutor: o uso constante e alternado do futuro e do presente dos tempos verbais no texto dá-se pelo caráter de “esboço ensaístico” do mesmo, pretendido como tal para elucidar a personalidade de Melkor em uma possível versão reescrita do Quenta Silmarillion.]

    Posteriormente, ele não deve ser capaz de ser controlado ou “acorrentado” por todos os Valar unidos. Observe-se que, nos primórdios de Arda, ele foi capaz de, sozinho, expulsar os Valar da Terra-média, em retirada.A guerra contra Utumno só foi empreendida pelos Valar com relutância, e sem esperança de vitória real, mas deu-se como uma ação de proteção ou distração, para permitir-lhes retirarem os Quendi de sua esfera de influência. Mas Melkor já havia progredido de algum modo na direção do caminho que o tornaria “o Morgoth, um tirano (ou uma tirania e vontade centrais), mais seus agentes”.[2] Apenas o total continha o antigo poder do Melkor completo; de modo que, se “o Morgoth” pudesse ser alcançado ou separado temporariamente de seus agentes, ele estaria muito mais próximo de ser controlável e em um nível de poder tal como o dos Valar. Os Valar percebem que podem lidar com seus agentes (isto é,
    exércitos, Balrogs, etc.) gradualmente. De forma que eles chegam, por fim, à própria Utumno e descobrem que “o Morgoth” não possui no momento “força” suficiente (em qualquer sentido) para defender-se do contato pessoal direto. Manwë finalmente encara Melkor mais uma vez, como ele não havia feito desde que entrou em Arda. Ambos assombram-se: Manwë por perceber o declínio em Melkor como uma pessoa, Melkor por também perceber isto a partir de seu próprio ponto de vista: ele agora possui menos força pessoal do que Manwë, e não pode mais intimidá-lo com seu olhar.Ou Manwë deve contar-lhe isso ou ele mesmo deve perceber repentinamente (ou ambas opções) que isso aconteceu: ele está “disperso”. Mas o desejo de possuir criaturas sujeitas a ele, dominadas, tornou-se habitual e necessário a Melkor de modo que, mesmo se o processo fosse reversível (possivelmente o era apenas pela auto-humilhação e arrependimento absolutos e verdadeiros), ele não pode realizá-lo por si próprio.* Assim como com todos os outros personagens, deve haver um momento de estremecimento no qual isso está em jogo: ele quase se arrepende – e não o faz, e torna-se muito mais cruel e mais tolo.* Uma das razões para esse seu auto-enfraquecimento é a de que ele deu às suas “criaturas”, Orcs, Balrogs, etc., poder de recuperação e multiplicação. De modo que eles irão se reuinir novamente sem ordens específicas adicionais. Parte desse poder criativo nativo perdeu-se ao criar um crescimento maligno independente, fora de seu controle.Possivelmente (e ele acha isso possível) ele poderia, neste momento, ser humilhado contra sua própria vontade e “acorrentado” – se e antes que suas forças dispersas reagrupem-se. Portanto – tão logo tivesse rejeitado mentalmente o arrependimento – ele (assim como Sauron posteriormente do mesmo modo) faz um arremedo de auto-humilhação e arrependimento pelo qual, na verdade, sente um tipo de prazer pervertido como ao profanar algo sagrado – [pois a mera contemplação da possibilidade de arrependimento genuíno, se essa não viesse então especialmente como uma graça direta de Eru, ao menos foi uma última centelha de sua verdadeira natureza primordial.] Ele dissimula remorso e arrependimento. Ele realmente ajoelha-se diante de Manwë e rende-se – em primeiro lugar, para evitar ser acorrentado com a corrente Angainor da qual, uma vez sobre ele, teme jamais libertar-se. Mas ele também subitamente tem a idéia de penetrar na exaltada estabilidade de Valinor e arruiná-la. Assim, ele se oferece para tornar-se “o menor dos Valar” e servo de todos eles, para ajudar (por conselhos e habilidade) a reparar todas as perversidades e ferimentos que causara. É essa oferta que seduz ou ilude Manwë – Manwë deve ser mostrado como tendo sua própria falha inata (embora não seja um pecado)**: ele fica absorto (em parte por medo absoluto de Melkor, em parte pelo desejo de controlá-lo) na correção, cura, reordenamento – até na “manutenção do status quo” – levando à perda de todo o poder criativo e mesmo à fraqueza ao lidar com situações difíceis e perigosas. Contra o conselho de alguns dos Valar (tais como Tulkas), ele atende à súplica de Melkor.

    ** Cada criatura finita deve possuir alguma fraqueza: que é alguma incapacidade de lidar com algumas situações. Não é pecaminoso quando não ocorre voluntariamente e quando a criatura dá o melhor de si (mesmo se não for o que deveria ser feito) do modo como esta vê a situação – com a intenção consciente de servir a Eru.

    Melkor é levado de volta à Valinor, indo por último (exceto por Tulkas***, que o segue carregando Angainor e fazendo-a ressoar para que Melkor lembre-se dela).

    *** Tulkas representa o lado bom da “violência” na guerra contra o mal. Essa é uma ausência de todo compromisso que irá confrontar mesmo males aparentes (tais como a guerra) em vez de parlamentar; e não acredita (em qualquer tipo de orgulho) que qualquer um inferior a Eru possa reparar isso, ou reescrever o conto de Arda.

    Mas no conselho, não é dada a Melkor liberdade imediata. Os Valar reunidos não tolerarão isso. Melkor é remetido a Mandos (para lá
    permanecer em “reclusão” e meditar, e completar seu arrependimento – e também seus planos para a reparação).[3]

    Ele começa então a duvidar da sensatez de sua própria política, e teria rejeitado tudo e irromperia em uma rebelião flamejante – mas ele agora está absolutamente isolado de seus agentes e em território inimigo. Ele não pode. Portanto, ele engole o amargo remédio (mas isso aumenta enormemente seu ódio, e posteriormente ele sempre acusou Manwë de ser desleal).

    O resto da história, com a libertação de Melkor, e a permissão para estar presente no Conselho, sentando aos pés de Manwë (conforme o
    modelo de conselheiros malignos em contos posteriores que, pode-se dizer, deriva desse modelo primordial?), pode então proceder mais ou menos como já contado.

    Notas:

    [1] Cf. as palavras de Finrod no Athrabeth: “não há poder algum concebivelmente maior que Melkor, salvo apenas Eru”.

    [2] A referência mais antiga à essa idéia da “dispersão” do poder original de Melkor é encontrada nos Anais de Aman §179: “Pois ele cresceu em malícia e, transmitindo de si mesmo o mal que concebera em mentiras e criaturas ou perversidade, seu poder passou para elas e foi dispersado, e ele próprio tornou-se ainda mais ligado à terra, negando-se a sair de suas fortalezas sombrias.”

    Cf. também Anais §128 – A expressão “o Morgoth” é usada várias vezes por Finrod no Athrabeth.[3] “seus planos para a reparação”: isto é, a reparação dos males que ele produziu.
  • Adivinhas no Escuro

    Adivinhas no Escuro

    Nota do Tradutor: Quando da publicação de O Senhor dos Anéis, Tolkien reescreveu determinadas partes de O Hobbit, para que fechasse com a narrativa da saga maior. Segue, também, em notas de rodapé, as modificações feitas pelo professor, conforme a edição brasileira, além de outros comentários acerca do capítulo. Agradeço ao Pandatur Parmandil por ter encontrado este texto, que há muito procuro.
     

    Adivinhas no Escuro

    conforme escrito na primeira edição de O Hobbit

     
     
    Quando Bilbo abriu seus olhos, ele pensou se realmente o fizera, pois continuava tão escuro quanto quando estava com eles fechados. Não havia ninguém perto dele. Imagine seu medo! Ele não podia ver nada, ouvir nada ou sentir nada, exceto a pedra do chão.
     
    Lentamente, se levantou e foi engatinhando, até que tocasse a parede do túnel; mas nem para cima, nem para baixo, ele pôde encontrar alguma coisa: nada mesmo, nem sinal dos goblins, nem sinal dos anões. Sua cabeça rodava, e ele estava longe de ter certeza sequer sobre a direção que corria quando caiu. Ele supôs da melhor maneira que pôde, e engatinhou por um longo caminho, até que, de repente, sua mão encontrou o que parecia ser um pequeno anel de metal frio caído no chão do túnel.
    Era um ponto decisivo em sua carreira, mas ele não sabia disto. Ele colocou o anel em seu bolso, praticamente sem pensar; ele certamente não parecia ser útil naquele momento. Ele não foi muito além, mas sentou no chão frio e entregou-se à mais completa infelicidade, por um bom tempo. Ele pensou nele mesmo, fritando bacon e ovos em sua cozinha em sua casa – pois ele sentia por dentro que era hora de alguma refeição; mas isso apenas o deixou mais infeliz.
     
    Ele não podia pensar no que fazer; nem podia ele pensar no que aconteceu; ou por que ele havia sido deixado para trás; ou por que, se ele tivesse sido deixado para trás, os goblins não o haviam capturado, nem por que sua cabeça estava tão dolorida. A verdade é que ele estava deitado e imóvel, fora do alcance da visão e esquecido, em um canto muito escuro por um longo tempo.  Depois de um tempo, ele tateou atrás de seu cachimbo. Não estava quebrado, o que já era alguma coisa. Então ele tateou atrás de sua bolsa, e havia algum tabaco ali, e isso era mais alguma coisa. Então ele tateou atrás de fósforos, mas não pode encontrar nenhum, e isso destruiu completamente suas esperanças. Era melhor assim, acabou concordando, quando pensou melhor. Sabe-se lá o que seria atraído pelo riscar de fósforos e pelo cheiro de tabaco em buracos escuros daquele lugar horrível. Mesmo assim, naquele momento ele se sentiu aniquilado. Mas, ao tatear seus bolsos e em si mesmo atrás de fósforos, sua mão acabou tocando o punho de sua pequena espada – a adaga que pegara dos trolls, da qual ele havia esquecido; tampouco, felizmente, havia sido encontrada pelos goblins, já que a usava dentro das calças.
     
    Então ele a desembainhou. Ela brilhou pálida e fraca diante de seus olhos. “Então esta é uma lâmina élfica também,” pensou, “e os goblins não estão muito perto, mas também não estão longe o suficiente.”
     
    Mas de alguma forma, ele estava confortado. Era um tanto esplêndido usar uma lâmina forjada em Gondolin para a guerra dos goblins que muitas canções celebravam; e também ele percebeu que essas armas causavam uma grande impressão nos goblins que atacavam de repente.
     
    “Voltar?” pensou. “Não adiantará nada! Ir para os lados? Impossível! Seguir adiante? A única coisa a fazer! Adiante, então!”
     
    Então ele se levantou e avançou a passadas largas, segurando sua pequena espada em sua frente e com uma das mãos tateando a parede, e seu coração batendo como um tambor. Agora, certamente pode-se dizer que Bilbo estava em um aperto. Mas você deve lembrar que o aperto não era tão grande para ele como seria para mim ou para você. Hobbits não são como pessoas comuns; e, afinal, se as tocas deles são lugares alegres e devidamente arejados, bem diferente dos túneis dos goblins, ainda assim eles estão mais acostumados a túneis do que nós, além de não perdem facilmente o senso de direção debaixo da terra – não quando suas cabeças já haviam se recuperado de uma pancada. Além disso, eles podem se movimentar silenciosamente, e se esconder com facilidade, e se recuperam maravilhosamente de quedas e ferimentos, e têm um cabedal de sabedoria e ditados sábios que os homens nunca ouviram, ou há muito esqueceram.

     

    Eu não gostaria de estar no lugar do Sr. Bolseiro, de qualquer forma.   túnel não parecia ter fim. Tudo o que ele sabia é que seguia para baixo e mantinha a mesma direção, a não ser por uma curva ou duas. De quando em quando, haviam passagens que conduziam para os lados, pelo que podia notar pelo brilho da espada, ou podia sentir com a sua mão na parede. E adiante ele foi, descendo cada vez mais; e ainda assim não ouvia som algum, a não ser uma ocasional batida de asas de morcego, o que o assustava no início, mas que depois se tornou freqüente demais para se preocupar. Não sei por quanto tempo ele seguiu dessa forma, odiando seguir em frente, não ousando parar, em frente e em frente, até ficar mais que cansado. Era como correr todo o caminho até o dia seguinte, e seguir para os dias além.

    De repente, sem aviso, estava caminhando pela água! Ugh! estava congelante. Aquilo o fez estacar. Ele não sabia se era apenas uma poça no caminho, ou a beira de uma corrente subterrânea que cruzava a passagem, ou a margem de um lago subterrâneo negro e profundo. A espada mal estava brilhando. Ele parou, e, quando prestou atenção, pôde ouvir gotas pinga-pinga-pingando de um teto invisível e caindo na água: mas não parecia haver nenhum outro tipo de som.

    “Então é uma poça ou um lago, e não um rio subterrâneo”, pensou. Mesmo assim, não ou sou atravessar na escuridão. Ele não sabia nadar; e também imaginava seres nojentos e viscosos, com grandes olhos cegos e esbugalhados, serpenteando na água. Existem coisas estranhas vivendo nas poças e lagos nos corações das montanhas: peixes cujos antepassados entraram, sabe-se lá quantos anos atrás, e nunca mais saíram novamente, e seus olhos cresceram mais e mais e mais, de tanto tentar enxergar na escuridão; também há coisas mais pegajosas que peixes. Mesmo nos túneis e nas cavernas que os goblins fizeram para si, existem coisas que vivem em segredo, que entraram furtivamente e se entocaram no escuro. Além disso, algumas dessas cavernas existem desde eras antes dos goblins, que apenas as ampliaram e as interligaram com passagens, e os proprietários originais ainda permanecem lá em cantos escusos, movimentando-se furtivamente e farejando tudo.

    Lá no fundo, na beira da água escura, vivia o velho Gollum, uma pequena criatura viscosa. Eu não sei da onde veio, nem o que ele era. Ele era Gollum – escuro como a escuridão, exceto por dois grandes olhos redondos e pálidos em seu rosto magro. Ele tinha um pequeno barco, e remava pelo lago quase sem nenhum ruído; pois era realmente um lago, largo e profundo e mortalmente frio. Ele impelia o barco com seus grandes pés pendendo nas bordas, mas nunca erguia uma onda na água. Não ele. Com seus olhos pálidos como lamparinas, ele procurava por peixes cegos, que ele pegava com seus dedos longos tão rápido como um pensamento. Ele gostava de carne também. Gostava de goblins, quando podia apanhá-los; mas ele cuidava para nunca ser descoberto. Ele apenas os estrangulava por trás, quando algum descia sozinho até perto da água, enquanto ele rondava por ali. Era raro acontecer, pois eles tinham o pressentimento de que havia algo desagradável estava espreitando por lá, bem nas raízes da montanha. Haviam chegado até o lago, quando estavam abrindo os túneis, muito tempo atrás, e descobriram que não podiam mais avançar; então o caminho terminava naquela direção, e não havia motivo para irem até lá – a não ser que o Grande Goblin os mandasse. Algumas vezes ele tinha vontade de comer um peixe do lago, e algumas vezes nem o goblin e nem o peixe retornavam.

    Na verdade, Gollum vivia em uma ilha de pedra viscosa no meio do lago. Ele estava observando Bilbo à distância, com seus olhos pálidos como telescópios. Bilbo não podia vê-lo, mas ele imaginava um monte de coisas sobre Bilbo, pois ele podia ver que ele não era nenhum goblin.


    Gollum entrou em seu barco e afastou-se da ilha enquanto Bilbo estava sentado na borda, completamente atarantado, no fim do seu caminho e no fim de seu juízo. De repente surgiu Gollum, sussurrando e chiando:  “Que beleza e que moleza, meu preciossso! Acho que temos um lauto banquete, pelo menos um bom bocado para nós, gollum!” E quando ele dizia gollum, fazia um ruído horrível na garganta, como se estivesse engolindo alguma coisa. Foi assim que ele conseguiu esse nome, apesar de sempre chamasse a si mesmo de “meu precioso”. 1


    O hobbit pulou quase que para fora de sua própria pele quando o chiado chegou-lhe aos ouvidos e, de repente, viu os olhos pálidos e salientes voltados para ele. “Quem é você?”, perguntou ele, erguendo a adaga à sua frente.  “O que é ele, preciossssso?”, sussurrou Gollum (que sempre falava consigo mesmo porque nunca tinha ninguém para conversar). Era o que vinha descobrir, pois, na verdade, não estava com muita fome no momento, apenas curioso; do contrário ele teria agarrado primeiro e sussurrado depois.


    “Eu sou o Senhor Bilbo Bolseiro. Eu perdi os anões e perdi o mago, e não sei onde estou; e não quero saber, se puder sair daqui.”

    “O que ele tem nas mãoses?”, sussurrou Gollum, olhando para a espada, da qual ele não gostou muito.

    “Uma espada, uma lâmina que vem de Gondolin!”

    “Ssssss!”, disse Gollum, ficando muito educado. “Você pode sentar aqui e conversar com nós só um pouquinho, meu preciosssso. Você gosta de adivinhas, vai ver que gosta, não gosta?” Ele estava ansioso para parecer amigável, pelo menos no momento, e até descobrir mais sobre a espada e sobre o hobbit, se ele realmente estava sozinho, se ele realmente era bom de se comer, e se Gollum estava realmente faminto.


    Adivinhas era tudo o que ele conseguiu pensar. Propô-las e algumas vezes adivinhá-las era o único jogo que já tinha jogado com outras criaturas divertidas, sentadas em suas tocas, muito tempo atrás, antes de perder todos os seus amigos e fosse expulso, e rastejasse mais e mais para as profundezas escuras das montanhas.

    “Muito bem”, disse Bilbo, que estava ansioso por concordar, até que descobrisse mais sobre a criatura, se realmente estava sozinho, se era feroz, se estava faminto ou se era amigo dos goblins.


    “Você pergunta primeiro”, disse ele, pois não teve tempo de pensar  uma adivinha. Então Gollum chiou:

    Tem raízes misteriosas,
    É mais alta que as frondosa
    Sobe, sobe e também desce,
    Mas não cresce nem decresce.

    “Fácil!”, disse Bilbo. “Montanhas, eu suponho.”


    “Ele adivinha fácil? Precisa fazer uma competição com nós, preciosso. Se ele perguntar para nós, e nós não responder, nós dá um presente pra ele, gollum!” 2


    “Certo!”, disse Bilbo, não ousando discordar, e quase estourando os miolos tentando lembrar de adivinhas que pudessem salvá-lo de ser devorado.

    Trinta cavalos brancos na colina avermelhada
    Primeiro cerceiam,
    Depois pisoteiam,
    Depois não fazem nada.

    Foi tudo o que conseguiu lembrar para perguntar – a idéia de comida ainda povoava seus pensamentos. A adivinha era bem velha também, e Gollum sabia da resposta tão bem quanto vocês.


    “Barbada, barbada,” ele chiou, “Dentess! dentess!, meu preciosso; mas nós só tem seis!” Então ele perguntou a sua segunda:

    Sem asas volita,
    Sem vozes ele ulula,
    Sem dentes mordica
    Sem boca murmura.

    “Um minutinho!’, gritou Bilbo, ainda incomodado pensando em comida. Por sorte já ouvira algo parecido antes e, colocando a cabeça no lugar, pensou na resposta. “Vento, vento, é claro.”, disse ele, e ficou tão satisfeito que inventou uma na hora. “Esta vai confundir essa criaturinha subterrânea nojenta”, pensou ele.

    Um olho no azul dum rosto
    Viu outro no verde de outro.
    “Aquele olho é como este olho”
    Disse o primeiro olho,
    “Mas lá em baixo é o seu lugar,
    Aqui em cima é o meu lugar.”

    “Ss, ss, ss”, disse Gollum. Estivera debaixo da terra por um longo tempo, e já começava a esquecer esse tipo de coisa. Mas exatamente quando Bilbo começava a alimentar esperanças de que o patife não conseguiria responder, Gollum trouxe memórias de muitas eras passadas, de quando vivia com a avó numa toca na margem de um rio. “Sss, sss, meu preciosso”, disse ele. “Sol sobre as margaridas, é essa a resposta, é sim”.


    Mas aquele tipo de adivinhas comuns, de cima da terra, estavam começando a cansá-lo. Além disso, faziam-no lembrar de tempos em que era menos solitário, furtivo e nojento, e isso o deixava nervoso. Mas ainda, o deixavam faminto; então, dessa vez, tentou algo mais difícil e desagradável:

    Não se pode ver, não se pode sentir,
    Não se pode cheirar, não se pode ouvir.
    Está sob as colinas e além das estrelas,
    Cavidades vazias – ele vai enchê-las.
    De tudo vem antes e vem em seguida,
    Do riso é a morte, é o fim da vida.

    Infelizmente para Gollum, Bilbo já ouvira esse tipo de coisa antes, e, de qualquer modo, a resposta o envolvia. “O escuro!”, disse ele, sem coçar nem quebrar a cabeça.

    Caixinha sem gonzos,tampa ou cadeado,
    Lá dentro escondido um tesouro dourado,

    Perguntou ele para ganhar tempo, até que pudesse pensar numa verdadeiramente difícil. Aquela ele considerava uma barbada, terrivelmente fácil, mas acabou se tornando um grande desafio para Gollum. Ele chiava para si mesmo, suspirava e balbuciava.


    Depois de algum tempo, Bilbo ficou impaciente. “Então, o que é?” disse. A resposta não é uma chaleira fervendo, como dá a entender com esse barulho que está fazendo.”


    “Dá uma chance pra nós, deixa ele dar uma chance pra nós, preciosso…ss…ss.”

    “Bem,” disse Bilbo, depois de um longo tempo “qual é a sua resposta?”
    Então, de repente, Gollum lembrou-se de quando roubava ninhos, há muito tempo atrás, e sentava-se às margens do rio e ensinava a sua avó, ensinava a sua avó a chupar – “Ovosos!”, ele sibilou. “Ovosos é o que é!” Então ele perguntou:

    Como a morte, não tenho calor,
    Vivo, mas sem respirar;
    Sem sede, sempre a beber,
    Encouraçado, sem tilintar.

    Ele, em seu pensamento, achou que era uma adivinha terrivelmente fácil, pois ele pensava o tempo todo na sua resposta. Mas não conseguiu pensar em nada melhor no momento, de tão atrapalhado que ficou com a questão do ovo. Mas mesmo assim era um grande desafio para o pobre Bilbo, que não tinha nada a ver com a água, a não ser por obrigação. Imagino que você saiba a resposta, e, caso não saiba, consiga adivinhá-la num piscar de olhos, já que está sentado em casa, e não existe o perigo de ser devorado para atrapalhar seus pensamentos. Bilbo sentou-se e limpou a garganta duas vezes, mas não saiu resposta alguma.


    Depois de um tempo, Gollum começou a sibilar para si mesmo com prazer. “É bom, não é, preciosso? É suculento? Deliciosamente triturável?” E começou a espiar Bilbo, da escuridão.


    “Um momento,” disse o hobbit, tremendo. “Eu acabei de lhe dar uma bela chance, um minuto atrás.”


    “Ele deve se apressar, apressar!” disse Gollum, começando a descer do seu barco na margem para chegar até Bilbo. Mas quando colocou seu comprido pé de pato na água, um peixe se assustou e pulou para fora, caindo nos pés de Bilbo.


    “Ugh!”, disse ele, “é gelado e viscoso!” – então ele adivinhou. “Peixe! Peixe!”, gritou. “É um peixe!”


    Gollum ficou terrivelmente desapontado; mas Bilbo perguntou outra charada, tão rápido quanto pode, para que Gollum tivesse que voltar para o seu barco para pensar.

    Sem pernas ficou sobre uma perna, duas pernas sentou próximo em três pernas, quatro pernas ganhou alguma coisa.

    Não era o momento ideal para esse tipo de adivinha, mas Bilbo estava com pressa. Gollum poderia ter problemas para adivinhá-la, se tivesse perguntado em outra ocasião. Naquela circunstância, falando de peixes, sem pernas não era difícil, e, depois disso, ficava fácil de adivinhar.


    “Peixe em uma mesa pequena, um homem à mesa, sentado em um banco e o gato fica com as espinhas.” era a resposta, e Gollum a deu rapidamente. Então ele pensou que havia chegado a hora de se perguntar algo horrível e difícil. Isso foi o que ele perguntou:

    Essa é a coisa que a tudo devora
    Feras, aves, plantas, flora.
    Aço e ferro são sua comida,
    E a dura pedra por ele moída;
    Aos reis abate, à cidade arruína,
    E a alta montanha faz pequenina.

    O pobre Bilbo ficou sentado no escuro pensando em todos os nomes de gigantes e ogros que ouvira em contos, mas nenhum deles tinha feito todas essas coisas. Ele sentia que a resposta era totalmente diferente, e que ele deveria conhecê-la, mas não conseguia pensar nela. Ele começou a ficar com medo, e isso é ruim quando se está tentando pensar.

    Gollum começou a sair do seu barco. Pulou na água e avançou até a margem; Bilbo podia ver seus olhos vindo em sua direção. Sua língua parecia presa em sua boca; ele queria gritar “Me dê mais tempo! Me dê tempo!”, mas tudo o que saiu num guincho repentino foi:

    “Tempo! Tempo!”

    Bilbo fora salvo por pura sorte. É claro que aquela era a resposta correta.  Gollum ficou novamente desapontado; e agora ele estava ficando com raiva, e também cansado do jogo. Aquilo o deixara realmente muito faminto. Desta vez ele não voltou para o barco. Ele sentou ao lado de Bilbo na escuridão. Isso deixou Bilbo terrivelmente desconfortável e atrapalhou o seu raciocínio.

    “Tem que fazer outra pergunta pra nós, preciosso, sim, ssim, sssim.Ssó mais uma pergunta pra nóss adivinhar, sim, ssim.” Disse Gollum.

    Mas Bilbo não conseguia pensar em nenhuma pergunta com aquela coisa nojenta, úmida e fria sentada ao lado dele, apalpando e cutucando. Ele se coçava, se beliscava e mesmo assim não conseguia pensar em nada.


    “Pergunta pra nós! Pergunta pra nós!” Disse Gollum.


    Bilbo se beliscava e se esbofeteava; ele segurou sua pequena espada; ele até apalpou o seu bolso com a outra mão. Ali ele encontrou o anel que pegara no corredor e do qual se esquecera.

    “O que tenho em meu bolso?”, disse ele em voz alta. Ele estava falando consigo mesmo, mas Gollum pensou que era uma adivinha, e isso o deixou terrivelmente perturbado.


    “Não é justo! Não é justo!”, ele sibilou. “Não é justo, meu precioso, é justo perguntar pra nós o que tem no bolsso nojento dele?”


    Bilbo viu o que estava acontecendo e, sem nada melhor para perguntar, insistiu na sua pergunta: “O que tenho em meu bolso?”, falou ainda mais alto.

    “Ssssssss”, sibilou Gollum, “Tem que nos dar três chances, meu preciosso, três chancesss.”


    “Muito bem! Tente adivinhar!” disse Bilbo.


    “Mãoses!”, disse Gollum.


    “Errado”, disse Bilbo que, por sorte, acabara de tirar as mãos dos bolsos. “Tente de novo!”


    “Sssssss”, disse Gollum, mais decepcionado do que nunca. Ele pensou em todas as coisas que levava em seus bolsos: espinhas de peixe, dentes de goblins, conchas molhadas, um pedaço de asa de morcego, uma pedra afiada para afiar as suas presas e outras coisas nojentas. Ele tentou pensar em coisas que outras pessoas carregam em seus bolsos.


    “Faca!”, disse finalmente.


    “Errado!”, disse Bilbo, que havia perdido a sua há algum tempo.

    “Última chance!”


    Agora Gollum estava em uma situação muito melhor do que quando Bilbo lhe perguntou a questão do ovo. Ele sibilou, resmungou e balançou para frente e para trás, batia os pés no chão, se contorcia e se entortava todo; mas mesmo assim não ousava desperdiçar sua última tentativa.


    “Vamos!” disse Bilbo, “Eu estou esperando!” Ele tentou soar corajoso e confiante, mas não tinha muita certeza de como o jogo iria terminar, quer Gollum acertasse, quer não.


    “O tempo acabou!”, disse ele.


    “Barbante, ou nada!”, guinchou Gollum, o que não foi muito honesto – tentar duas respostas de uma só vez.

    “Errou as duas,” gritou Bilbo, muito aliviado; e levantou-se imediatamente, apoiando as costas na parede mais próxima e desembainhou sua pequena espada. 3 Mas curiosamente ele não precisava ter se assustado. Pois se havia uma coisa que Gollum tinha aprendido há muito tempo atrás era que nunca, nunca se deve trapacear num jogo de adivinhas, que é um jogo sagrado e de imensa antiguidade. E também havia a espada. Ele simplesmente se sentou e sibilou.


    “E o presente?” perguntou Bilbo. Não que se importasse muito, mas ainda pensava que havia vencido de forma justa e com muita dificuldade.


    “Devemos dar a ele a coisa, preciosso? Ssim, nóss tem. Nós tem que buscar, preciosso, e dar o presente como prometemoss.”, disse Gollum, remando de volta para o seu barco, e Bilbo pensou que seria a última vez que ouviria falar dele. Mas não. O hobbit já estava pensando em voltar pelo corredor – ele já tinha aturado o suficiente de Gollum e da margem da água escura – quando o ouviu lamentando e guinchando na escuridão. Ele estava em sua ilha (do que, obviamente, Bilbo nada sabia), fuxicando aqui e ali, procurando e buscando em vão e revirando seus bolsos.


    “Onde está? Onde esstá?” Bilbo o ouviu guinchar.


    “Perdido, perdido, meu preciosso, perdido, perdido! Droga e praga! Nós não temos o presente que prometemos, e nós não temos nem pra nós mesmos!”


    Bilbo se virou e esperou, imaginando qual seria o motivo de tamanha algazarra. Isso se provou um lance de sorte, no fim das contas. Pois Gollum retornou e sapateou e sussurrou e resmungou, e no fim, Bilbo concluiu que Gollum tinha um anel – um anel maravilhoso, muito bonito, um anel que havia sido dado como presente de aniversário, eras e eras atrás, quando tais anéis não eram tão incomuns. Algumas vezes ele guardava no seu bolso; geralmente ele deixava em um buraco na pedra em sua ilha; algumas vezes ele o usava – quando estava realmente faminto e cansado de peixe, e se esgueirava pelos corredores escuros atrás de goblins errantes. Então ele se aventurava até por lugares iluminados por tochas que incomodavam seus olhos e os deixava doloridos; mas ele estaria seguro. O sim! Seguro o bastante, pois se você colocasse o anel em seu dedo, você ficaria invisível e só poderia ser visto na luz do sol, e mesmo assim apenas sua sombra seria vista, e seria uma sombra fraca e trêmula.


    Eu não sei quantas vezes Gollum pediu desculpas a Bilbo. Ele ficava dizendo “Nós sente muito; nós não queria trapacear, nós queria dar nosso único, único presente, se ganhasse a competição.” Ele até se ofereceu para pegar uns peixes suculentos para Bilbo como compensação.


    Bilbo estremeceu só de pensar nisso. “Não, obrigado!”, disse ele, o mais educadamente possível.


    Ele estava pensativo, e lhe ocorreu a idéia de que Gollum devia ter perdido o anel em algum momento e que ele devia tê-lo encontrado, e que ele tinha aquele anel em seu bolso. Mas ele resolveu não contar para Gollum.


    “Achado não é roubado!”, disse para si mesmo; e ,estando em uma situação delicada ouso dizer, ele estava certo. De qualquer forma o anel pertencia a ele agora.


    “Não se preocupe.”, disse. “O anel seria meu agora se você o encontrasse, então você teria perdido ele de qualquer forma. E eu vou deixar para lá com uma condição.”


    “Ssim, qual é? O que quer fazer, precioso?”


    “Me ajude a sair deste lugar.”, disse Bilbo.


    Agora Gollum teve de concordar com isso, já que não costumava trapacear. Ele ainda queria muito descobrir se o estranho era saboroso ou não; mas agora ele tinha que desistir dessa idéia toda. Pois ainda tinha a pequena espada; e o estranho estava bem desperto e atento, não desprevenido como Gollum gostava das coisas que atacava. Então, talvez era melhor deixar assim.

    E foi assim que Bilbo descobriu que o túnel acabava na água e não seguia adiante para o outro lado, onde a parede da montanha era escura e sólida. Ele também descobriu que devia ter passado por uma das passagens para a direita antes de chegar ao fundo; mas ele não podia seguir as indicações de Gollum para encontrar o caminho para fora novamente, e então ele obrigou a criatura infeliz a lhe acompanhar e mostrar o caminho.

    Enquanto caminhavam juntos pelo túnel, com Gollum saltitando ao seu lado, Bilbo ia caminhando delicadamente, pensando se devia experimentar o anel. Então o anel escorregou para o seu dedo.


    “Onde está? Para onde foi?”, disse Gollum imediatamente, olhando ao redor com seus grandes olhos.


    “Aqui estou, atrás de você.”, disse Bilbo, tirando o anel de seu dedo e se sentindo muito feliz por tê-lo e por descobrir que realmente faz o que Gollum disse.


    Agora retomaram a caminhada, enquanto Gollum contava os túneis para a esquerda e para a direita. “Um à esquerda, um à direita, dois à direita, três à direita, dois à esquerda”, e assim seguiram adiante. Ele começou a ficar mais e mais agitado e assustado enquanto se afastavam mais e mais da água, mas finalmente ele parou próximo a uma pequena abertura à esquerda (que levava para cima) – “seis à direita, quatro à esquerda.”

    “Aqui está a passagem”, ele sussurrou, “tem que se espremer para entrar e andar abaixado. Nós não vai junto, preciosso, nós não vai. Gollum!”


    Então Bilbo se esgueirou pelo arco e disse adeus à criatura nojenta, e ficou muito feliz em fazê-lo. Ele não se sentiu à vontade até que tivesse certeza de que ela tinha ido embora, e manteve a cabeça para fora no túnel principal ouvindo até que não mais escutasse os passos de Gollum retornando para o seu barco. Então ele entrou no novo túnel. Era um túnel estreito e mal feito. Mas era perfeito para um hobbit, a não ser quando, no escuro, batia o pé em pedras escuras e nojentas no chão; mas devia ser um tanto baixo para goblins. Mas ele não sabia que mesmo os goblins eram acostumados a esse tipo de coisa, e que se moviam rapidamente, caminhando abaixados com suas mãos quase tocando ao chão.


    Isso fez Bilbo esquecer do perigo de encontrá-los, então seguiu rápida e temerariamente.


    Logo a passagem começou a subir novamente, e depois de um tempo tornou-se íngreme, o que acabou atrasando Bilbo. Mas por fim a subida acabou e o túnel fez uma curva e foi pra baixo novamente, e lá, no fundo de um pequeno declive, ele viu, infiltrando-se por outra curva – um vislumbre de luz. Não uma luz avermelhada como da chama de uma tocha ou lamparina, mas uma luz pálida de ar livre. Então ele começou a correr. Correndo tanto quanto suas perninhas permitiam, ele fez a curva e chegou subitamente a um lugar aberto onde a luz, depois de tanto tempo na escuridão, parecia estonteantemente clara. Na verdade era apenas uma réstia de sol que entrava por uma soleira, onde uma grande porta, uma porta de pedra, fora deixada levemente aberta.


    Bilbo piscou, e então subitamente viu os goblins, goblins em armaduras completas com espadas desembainhadas sentados logo na entrada, e observando com os olhos bem abertos, vigiando a passagem que levava até ali! Viram-no antes que ele os visse, e com um grito de deleite, partiram para cima dele.


    Se foi um acidente ou presença de espírito eu não sei. Acidente penso eu, pois o hobbit não estava acostumado com seu novo tesouro. De qualquer forma, ele colocou o anel em sua mão esquerda – e os goblins pararam de súbito. Não conseguiam ver nem sinal dele. Então gritaram duas vezes mais alto que antes, mas não de deleite. 4

    “Onde está ele?”, gritaram.


    “Voltem para a passagem!”, gritavam alguns.


    “Por aqui!”, berravam alguns. “Por ali!”, berravam outros.


    “Vigiem a porta!”, gritou o capitão.


    Soavam assobios, armaduras se chocavam, espadas tilintavam, goblins praguejavam, xingavam e corriam de um lado para o outro, caindo uns sobre os outros, cada vez mais furiosos. Azáfama terrível, tumulto e desordem.


    Bilbo estava terrivelmente amedrontado, mas teve o bom senso de compreender o que acontecera e de se esconder atrás de um grande barril que continha bebida para os guardas-goblins, saindo assim do caminho e evitando que tropeçassem nele, que o pisoteassem até a morte ou que o capturassem pelo tato.


    “Preciso chegar até a porta, preciso chegar até a porta!”, dizia a si mesmo, mas demorou muito até que se arriscasse a tentar. E então foi como um terrível jogo de cabra-cega. O lugar estava cheio de goblins correndo de lá para cá, e o pobrezinho do hobbit, esquivando-se para um lado e para o outro, foi derrubado por um goblin, que não conseguiu descobrir no que tropeçara, afastou-se de quatro, passou entre as pernas do capitão no último momento, levantou-se e correu para a porta.

    Ainda estava aberta, mas um goblin a havia empurrado e ela quase se fechara. Bilbo fez força, mas não conseguiu movê-la. Tentou esgueirar-se pela fresta. Espremeu-se, espremeu-se e entalou. Foi horrível. Os botões de sua roupa se engancharam entre a borda da porta e o batente. Ele podia ver lá fora, o ar livre: havia alguns degraus que desciam por um vale estreito entre altas montanhas; o sol surgia por trás de uma nuvem e brilhava por trás da porta – mas ele não conseguia passar.


    De repente, um dos goblins gritou lá dentro: “Há uma sombra ao lado da porta. Tem alguma coisa lá fora!”


    Bilbo ficou com o coração na boca. Fez uma tremenda contorção. Os botões voaram em todas as direções. Passou, com um casaco e um colete rasgados, descendo os degraus aos saltos como um cabrito, enquanto os goblins perplexos ainda catavam seus belos botões de latão na soleira da porta.


    É claro que logo vieram atrás dele, gritando, chamando e caçando em meio às árvores. Mas eles não gostam de sol: ele deixa suas pernas bambas e sua cabeça tonta. Não conseguiram encontrar Bilbo, que estava usando o anel, e entrava e saía furtivamente das sombras das árvores, depressa e em silêncio, e mantendo-se fora do alcance do sol; assim, logo voltaram, resmungando e praguejando, para guardar a porta.


    Bilbo tinha escapado.

    NOTAS:

    1. Na primeira edição de O Hobbit (1937), Gollum usa a frase “meu precioso” apenas para referir a si mesmo. Na segunda edição (1951), na qual o papel de Gollum foi significativamente alterado, a frase pode ser tomada como referência ao Anel, como acontece em O Senhor dos Anéis. A palavra gull em norueguês arcaico significa “ouro”. Nos manuscritos mais antigos, aparece como goll. Uma forma flexionada seria gollum, “ouro, tesouro, algo precioso”. Também pode significar “anel”, como pode se perceber na palavra composta “fingr-gull”, “anel de dedo” – questões que podem ter ocorrido a Tolkien.

    2. 1951: “e nós não responder, nós faz o que ele quer, que tal? Nós mostra o caminho da saída, sim!”

    3. A partir deste ponto, o livro original se diferencia em muito da versão de 1951, publicada no Brasil. Não irei comparar as duas versões, portanto segue só a versão de 1937.

    4. Aqui termina o trecho que difere da edição de 1951.

  • Carta #214

    Carta #214

    [Uma resposta para um leitor que mostrou uma aparente contradição em O Senhor dos Anéis: que no capítulo ´ Uma Festa Muito Esperada´ é declarado que ´Hobbits dão presentes a outras pessoas em seus próprios aniversários; contudo Gollum se refere ao Anel como seu ´presente de aniversário´, e conforme ele adquiriu-o, no capítulo ´ A Sombra do Passado´, indica que seu povo recebia presentes em seus aniversários. A carta do Sr. Nunn continuava: ´Então, uma das seguintes alternativas deve ser verdadeira: (1) o povo de Sméagol não era “do tipo hobbit ” como sugerido por Gandalf (I pág. 62); (2) o costume Hobbit de dar presentes só fora desenvolvido à pouco tempo; (3) os costumes dos Stoors [o povo de Sméagol-Gollum] eram diferentes daqueles dos outros Hobbits; ou (5) [sic] há um erro no texto. Eu ficarei muito grato se você puder dispensar um tempo para empreender alguma pesquisa sobre esse assunto importante.]

    [Não datado; provavelmente entre 1958 e 1959.]

    Caro Sr. Nunn,

    Eu não sou um modelo de erudição; mas no assunto da Terceira Era eu me considero um ´arquivo´ vivo. As falhas que possam aparecer em meu registro são, eu acredito, em nenhum caso devido a erros, que são declarações do que não é verdade, mas omissões e falta de informação, principalmente devido à necessidade de compressão, e na tentativa de introduzir informação ´en passant´ no curso de narrativa que naturalmente tendeu a omitir muitas coisas que não afetam diretamente o conto.

    No assunto de costumes de aniversário e as discrepâncias aparentes que você nota, podemos então, eu penso, descartar suas alternativas (1) e (5). Você omite (4).

    Com respeito a (1) Gandalf certamente diz no princípio ´ eu suponho´ (pág. 62); mas isso está de acordo com seu caráter e sabedoria. Em idioma mais moderno teria dito ele ´eu deduzo´, se referindo a assuntos que não estavam sujeitos a sua observação direta, mas em qual ele tinha formado uma conclusão baseada em estudo. (Você observará no Apêndice B que os Magos não vieram logo antes do primeiro aparecimento de Hobbits em qualquer registro, sendo que nesse tempo eles já eram divididos em três classes marcantes). Mas ele de fato não duvidou de sua conclusão ´ é na verdade tudo igual, etc. ´ (pág. 63).

    Sua alternativa (2) seria possível; mas desde que o registro diz na pág. 35 Hobbits (o qual ele usa qualquer que seja sua origem, como o nome para a raça inteira), e não os Hobbits do Condado, ou povo do Condado, deve-se supor que ele queira dizer que o costume de dar presentes era de alguma forma comum a todas as variedades, inclusive Stoors. Mas desde que sua alternativa (3) seja naturalmente verdade, nós poderíamos esperar enraizado mesmo assim um costume a ser exibido de modo bastante diferente em classes diferentes. Com a reemigração do Stoors de volta para Wilderland em 1356 da T.E., todo o contato entre este grupo retrógrado e os antepassados do povo do Condado estava rompido. Mais de 1100 anos passaram-se antes do Incidente de Déagol-Sméagol (c. 2463). À época da Festa em 3001 da T.E., quando os costumes do povo do Condado são superficialmente reportados à medida que eles afetam a história, o intervalo de tempo era quase 1650 anos.

    Todos os Hobbits eram lentos no que diz respeito a mudanças, mas os reemigrantes Stoors estavam regressando para uma vida mais selvagem e mais primitiva de pequenas e decrescentes[1] comunidades; enquanto o povo do Condado nos 1400 anos de sua ocupação tinham desenvolvido uma vida social mais organizada e elaborada, na qual a importância da relação familiar para seus sentimentos e costumes foram fortalecidas através de tradições detalhadas, escritas e orais.

    Embora eu tenha omitido qualquer dissertação sobre esse curioso mas característico fato de seu comportamento, os fatos relativos ao Condado poderiam ser mostrados em alguns detalhes. Os Stoors do beira-rio devem, naturalmente, permanecer mais conjeturais.

    ´Aniversários´ tinham uma importância social considerável. Uma pessoa que celebra seu aniversário era chamada um ribadyan (que pode ser traduzido de acordo com o sistema descrito como um aniversariante). Os costumes ligados aos aniversários tinham, embora profundamente arraigados, tornado-se regulamentados por uma etiqueta bastante rígida; e em conseqüência estavam em muitos casos reduzidos a formalidades: como realmente sugerido por ´ não muito caros como regra´ (pág. 35); e especialmente através da pág. 46 11. 20-26. Com respeito a presentes: em seu aniversário o ´ aniversariante´ tanto dava como recebia presentes; mas os processos eram diferentes em origem, função, e etiqueta. A recepção foi omitida pelo narrador (uma vez que não dizia respeito a Festa) mas era de fato o costume mais velho, e conseqüentemente o mais formal. (Isso diz respeito ao incidente de Sméagol-Déagol, mas o narrador, sendo obrigado reduzir isto para seus elementos mais significantes, e a colocá-lo na boca de Gandalf que fala a um hobbit, naturalmente não fez nenhum comentário sobre um costume que o hobbit (e nós) deveria considerar natural em relação a aniversários.)

    Recebimento de presentes: este era um ritual antigo ligado com parentesco. Era originalmente um reconhecimento da ligação do aniversariante de uma família ou clã, e uma comemoração de sua ´incorporação´ formal. [2] Nenhum presente era dado por pai ou mãe para suas crianças em seus (das crianças) aniversários (exclua nos casos raros de adoção); mas era de se supor que o chefe renomado da família desse algo, ao menos como ´lembrança´.

    Dando presentes: era uma questão pessoal, não limitada a parentesco.

    Era uma forma de ´agradecimento´, e tomada como um reconhecimento de serviços, benefícios, e amizade demostrada, especialmente no último ano decorrido.

    Pode ser observado que Hobbits, assim que eles se tornassem ´faunts´ (isso é falantes e andantes: normalmente acontecia no terceiro aniversário deles) davam presentes aos seus pais. Supõe-se que estes eram ´confeccionados´ pelo doador (ou seja: achado, cultivado, ou feito pelo ´aniversariante´), começando em crianças pequenas com buquês de flores selvagens. Esta pode ter sido a origem dos presentes de ´agradecimento´ de distribuição mais ampla, e a razão por que permaneceu ´correto´ no Condado tanto para presentes sendo coisas pertencentes ou produzidas pelo doador. Exemplares de produtos de seus jardins ou artesanato tornaram-se os ´presentes dados´ habituais, especialmente entre os Hobbits mais pobres.

    Na etiqueta de Condado, à data da Festa, a ´expectativa de recebimento´ era limitada a primos em segundo grau ou parentes mais próximos, e para os residentes dentro de 12 milhas[3]. Até mesmo aos amigos íntimos (se não aparentados) não era ´esperado´ dar, embora pudesse ocorrer. Os limites das residência do Condado era obviamente uma conseqüencia bastante recente da separação gradual das comunidades e famílias aparentadas, e dispersão de parentes, sob condições a muito tempo organizadas. O presente de aniversário recebido(nenhuma dúvida quanto ser uma relíquia dos costumes de pequenas famílias antigas) deve ser entregue pessoalmente, exatamente na véspera do Dia, ou mais tardar antes do ‘nuncheon’ no Dia do Aniversário. Eles eram recebidos reservadamente pelo ´aniversariante´; e era muito impróprio exibi-los separadamente ou em conjunto – justamente para evitar algum embaraço, como pode acontecer em nossas exibições de presentes de casamento (que teria horrorizado o povo do Condado)[4]. O doador poderia dar o presente em uma bolsa e demonstrar sua afeição sem incorrer em comentário público ou ofender (qualquer um) qualquer outro além do recebedor. Mas o costume não exigia presentes caros, e um Hobbit ficaria mais prontamente lisonjeado e encantado por um presente inesperadamente ´bom´ ou desejável que ofendido por uma habitual lembrança de boa-fé da família.

    Um sinal disto pode ser visto no relato de Sméagol e Déagol – modificado pelos caráteres individuais destes seres bastante infelizes. Déagol, evidentemente um parente (como sem dúvida eram todos os membros da pequena comunidade), já tinha dado seu presente habitual à Sméagol, embora eles provavelmente tenham partido em sua expedição de manhã bem cedo. Sendo uma alma pequena e má, ele invejou-o. Sméagol, sendo pior e mais avarento, tentou usar o ´aniversário´ como uma desculpa para um ato de tirania. ´Porque eu o quero´ era a declaração franca de sua principal intenção. Mas ele também sugeriu que o presente de Déagol era uma lembrança pobre e insuficiente: em conseqüência Déagol replicou que pelo contrário, aquilo era mais que ele poderia dispor.

    A distribuição de presentes pelo ´aniversariante´ – deixando de lado o caso de presentes para pais[5], mencionado acima – sendo pessoal e uma forma de agradecimento, variava muito mais em forma em tempos e lugares diferentes, e de acordo com a idade e importância do ´aniversariante´. O mestre e mestra de uma casa ou toca, no Condado, daria presentes a todos sob seu teto, ou a seu serviço, e normalmente também a vizinhos próximos. E eles poderiam estender a lista como bem entendessem, lembrando-se de quaisquer favores especiais durante o último ano. Era entendido que a oferta de presentes não era firmada por regra; embora a recusa em dar um presente habitual (como por exemplo para uma criança, um criado, ou um vizinho próximo de porta) era tomada como uma repreensão e marca de desgosto severo. Adolescentes e hóspedes (que não têm casa própria) não tinham tais obrigações como os donos da casa; mas eles normalmente davam presentes de acordo com sua posses e afetos. ´Não muito caro como regra´ – aplicados à todos os presentes. Bilbo era tanto nisto como em outros assuntos uma pessoa excepcional, e a Festa dele era até mesmo uma absurdo de generosidade para um Hobbit rico. Mas uma das cerimônias mais comuns de aniversário era dar uma ´festa´ – na noite do Dia do Aniversário. Para todos aqueles convidados eram dados presentes pelo anfitrião, que eram esperados, como parte do entretenimento (sendo secundária a comida oferecida). Mas eles não trouxeram presentes com eles. O povo do Condado teria pensado que seria muito impróprio. Se os convidados já não tivessem dado um presente (sendo um daqueles exigido pelo parentesco), era tarde demais. Para outros convidados seria uma coisa ´não feita´ – pareceria como se estivessem pagando a festa ou comparando festa e presente, e isso era muito embaraçoso. Às vezes, no caso de um amigo muito querido estar impossibilitado vir a uma festa (por causa de distância ou outras causas) um convite simbólico seria enviado com um presente. Neste caso o presente era sempre algo que comer ou beber, com propósito de ser uma amostra do bufê da festa.

    Eu acho que será notado que todos os detalhes registrados como ´fatos´ ajustam-se a um quadro definido de sentimento e costume, entretanto este quadro não é esboçado até mesmo na forma incompleta desta nota. Poderia, claro, ter aparecido no Prólogo: por exemplo no meio da pág. 12. Mas embora eu tenha cortado uma grande parte, aquele Prólogo ainda é muito longo e sobrecarregou até mesmo a esses críticos que permitam que tenha algum uso, e não faz (como alguns) avisos aos leitores para esquecê-lo ou saltá-lo.

    Incompleto como é, esta nota pode parecer a você muito muito longa; e embora você tenha pedido, é mais do que você perguntou. Mas eu não vejo como eu poderia ter respondido suas questões mais brevemente e de um modo que pudesse satisfazer os elogios que você me faz em ter um interesse em Hobbits suficiente para preencher a lacuna na informação fornecida.

    Porém, o fornecimento de informação sempre abre vistas adicionais; e você verá indubitavelmente que o breve relato de ´presentes´ ainda abre mais assuntos antropológicos implícitos para tais termos como parentesco, família, clã, e assim por diante. Eu aventuro-me a somar uma nota adicional neste ponto, para que não, considerando o texto a luz de minha resposta, você deva senti-se inclinado a investigar mais adiante sobre a ´avó de Sméagol´, a qual Gandalf descreve como uma regente (de uma família de reputação alta, grande e mais rica que a maioria, pág. 62) e até mesmo a chama de uma ´ matriarca´ (pág. 66).

    Até onde eu sei Hobbits eram universalmente monógamo (realmente eles muito raramente casavam uma segunda vez, até mesmo se esposa ou marido morressem muito jovens); e eu deveria dizer que seus arranjos familiares eram ´patrilinear´ em lugar de patriarcal. Quer dizer, seus nomes de família descenderam em uma linha-masculina (as mulheres adotavam os nomes dos maridos); também o chefe titular da família normalmente era o macho mais velho. No caso de grandes famílias poderosas (como o Tûks), ainda coerente até mesmo quando eles tinham ficado muito numerosos, e mais o que nós poderíamos chamar clãs, o chefe era corretamente o macho mais velho que era considerado a linha mais direta da descendência. Mas o governo de uma ´ família´, como uma unidade real : o ´lar´, não era uma monarquia (exceto por acidente). Era um ´ duarquia´ no qual o mestre e mestra tinham posições sociais iguais, talvez com funções diferentes. A qualquer um era assegurado o direito de ser o representante formal do outro no caso de ausência (inclusive morte). Não havia ´ viúvas dotadas´. Se o mestre morresse primeiro, o lugar dele era tomado pela esposa, e isto incluiu (se ele tivesse assegurada aquela posição) a chefia titular de uma grande família ou clã. Este título não descenderia ao filho, ou a outro herdeiro, enquanto ela vivesse, a menos que ela abdicasse voluntariamente[6]. Poderia, então, acontecer em várias circunstâncias que uma mulher de idade avançada de caráter forte permanecesse ´chefe do família´, até que ela tivesse os netos crescidos.

    Laura Bolseiro (neé Grubb) permaneceu ´chefe´ da família dos ´Bolseiros de Hobbiton´, até seus 102 anos. Como ela era 7 anos mais jovem que seu marido(que morreu com a idade de 93 em RC-1300), ela manteve esta posição durante 16 anos, até RC-1316; e seu filho Bungo não se tornou ´chefe´, até ele ter 70, dez anos antes que ele morresse com a prematura idade de 80. Bilbo não o sucedeu até a morte de sua mãe Tûk, Beladona, em 1334, quando ele tinha 44.

    A liderança dos Bolseiros então, devido aos eventos estranhos, entra em dúvida. Otho Sacola-Bolseiros era o herdeiro a este título – totalmente aparte de questões de propriedade que teriam surgido se seu primo Bilbo tivesse morrido intestado; mas depois do fiasco legal de 1342 (quando Bilbo retornou vivo depois de ser ´dado como morto´) ninguém ousou presumir a morte dele novamente. Otho morreu em 1412, seu filho Lotho foi assassinado em 1419, e sua esposa Lobelia morreu em 1420. Quando Mestre Samwise informou a ‘partida para o Mar´ de Bilbo (e Frodo) em 1421, ainda sim foi impossível presumir morte; e quando Mestre Samwise tornou-se Prefeito em 1427, uma regra foi feita que: ´se qualquer habitante do Condado for para o Mar na presença de uma testemunha fidedigna, com a intenção expressa de não retornar, ou em circunstâncias que impliquem tal intenção claramente, ele ou ela será julgado para que seja renunciado todos os títulos de direito ou propriedades previamente assegurados ou ocupados, e o herdeiro ou os herdeiros deles entrarão em seguida de posse destes títulos, direitos ou propriedades, como é ordenado por costume estabelecido, ou pelo testamento e disposição do morto, como o caso possa requerer. Presumivelmente o título de ´chefe´ passou então aos descendentes de Ponto Bolseiro – provavelmente Ponto (II).

    Um caso famoso, também, era o de Lalia a Grande (ou menos cortesmente a Gorda). Fortinbras II, uma vez chefe dos Tûks e Thain, casou com Lalia dos Clayhangers em 1314, quando ele tinha 36 e ela 31. Ele morreu em 1380 aos 102 anos, mas ela viveu longamente após ele, tendo um fim triste em 1402 com a idade de 119. Assim ela comandou os Tûks e Os Grandes Smials durante 22 anos, um grande e memorável, se não universalmente amado, ´matriarcado´. Ela não estava na famosa Festa (RC-1401), foi assim aconselhada não só por seu grande tamanho e imobilidade, como também pela idade. O filho dela, Ferumbras, não teve nenhuma esposa, sendo incapaz (como alegava) de achar qualquer um que quisesse ocupar apartamentos nos Grandes Smials, sob o comando de Lalia. Lalia, em seus últimos e mais gordos anos, tinha o costume de ser levada na cadeira de rodas para a Grande Porta, para tomar ar nas manhãs agradáveis. Na primavera de RC 1402, sua desajeitada assistente deixou a pesada cadeira correr além da soleira, derrubando Lalia degraus abaixo, indo parar no jardim. Assim terminou um reinado e vida que poderiam bem ter rivalizado com o do Grande Tûk.

    Eram grandes os rumores que a assistente era Pérola (a irmã de Pippin), entretanto os Tûks tentaram manter o assunto dentro da família. Na celebração de ascensão de Ferumbras o desgosto e pesar da família foram expressos formalmente pela exclusão de Pérola da cerimônia e banquete; mas não escapou a notícia que mais tarde (depois de um intervalo decente) ela apareceu com um colar esplêndido com as jóias que lhe davam seu nome, que a muito havia pertencido aos bens dos Thains.

    Costumes eram diferentes em casos onde o ´chefe´ morria sem deixar nenhum filho. Na família Tûk, desde que o comando era também ligado ao título e (originalmente militar) cargo de Thain[7], a descendência era estritamente através da linhagem masculina. Em outras grandes famílias o comando poderia passar por uma filha do finado direto ao neto primogênito deste (independente da idade da filha). Este último costume era habitual em famílias de origem mais recente, sem registros antigos ou mansões ancestrais. Em tais casos o herdeiro (se ele aceitasse o título de cortesia) toma o nome de família de sua mãe – embora ele freqüentemente tomasse o da família de seu pai também (colocado em segundo). Este era o caso com Otho Sacola-Bolseiro. O comando nominal dos Sacolas tinha vindo através de sua mãe Camélia. Era sua ambição, bastante absurda, alcançar a distinção rara de ser ´chefe´ de duas famílias (ele provavelmente teria se chamado então Bolseiro-Sacola-Bolseiro): uma situação que explicará sua exasperação com as aventuras e desaparecimentos de Bilbo, totalmente aparte de qualquer perda de propriedade envolvida na adoção de Frodo.

    Eu acredito que foi um ponto discutível na tradição Hobbit (o qual a decisão do Prefeito Samwise preveniu de ser discutida neste caso de particular) se ´adoção´ por um ´chefe´ sem filhos poderiam afetar a descendência do comando. Era concordado que a adoção de um membro de uma família diferente não pudesse afetar o comando, sendo uma questão de sangue e parentesco; mas havia uma opinião que adoção de um parente íntimo do mesmo nome[8] antes que ele fosse de maior idade, o habilitava a ter todos os privilégios de um filho. Esta opinião (mantida por Bilbo) foi contestada naturalmente por Otho.

    Não há nenhuma razão para supor que os Stoors de Wilderland tivessem desenvolvido um sistema estritamente ´matriarcal´, chamando corretamente. Nenhuma pista de tal coisa foi achada entre o elemento Stoor em Eastfarthing e Buckland, entretanto eles mantinham várias diferenças de costumes e leis. O uso de Gandalf (ou propriamente seu relato e o uso do tradutor) da palavra ´matriarca´ não era ´antropológico´, mas significava simplesmente uma mulher que de fato comandou o clã. Nenhuma dúvida que ela tinha sobrevivido ao marido e era uma mulher de caráter dominante.

    É provável que, no recessivo e decadente território Stoor de Wilderland, a tribo de mulheres (como freqüentemente será observado em tais condições) tendeu a preservar melhor o caráter físico e mental do passado, e assim tornou-se de importância especial. Mas não é (eu penso) suposto que qualquer mudança fundamental em seus costumes matrimoniais tenham acontecido, ou qualquer tipo de sociedade matriarcal ou poliândrica desenvolveu-se (embora isto pudesse explicar a ausência de qualquer referência ao pai de Sméagol-Gollum). ´Monogamia´ era praticada universalmente neste período no Oeste, e outros sistemas eram vistos com repugnância, como coisas só feitas ´sob a Sombra´.

    Eu na verdade comecei esta carta quase quatro meses atrás; mas nunca foi terminada. Logo após ter recebido seus questionamentos minha esposa, que tinha estado doente a maior parte de 1958, celebrou o retorno da saúde com uma queda no jardim, esmagando seu braço esquerdo tão gravemente que ela ainda está incapacitada e engessada. Assim 1958 foi um ano quase completamente frustrado, e com outros problemas, e a iminência de minha aposentadoria que envolve muitas reestruturações, eu não tive nenhum tempo para trabalhar no Silmarillion. Muito embora eu deseje fazê-lo (e, felizmente, Allen e Unwin também parecem querer o mesmo).

    [O rascunho termina aqui.]

    Notas

    [1] entre 2463 e o começo dos questionamentos especiais de Gandalf com relação ao Anel (quase 500 anos depois) eles aparecem ter desaparecido completamente(exceto, é claro, para Sméagol); ou ter fugido da sombra de Dol Guldur.

    [2] Antigamente isto aconteceu aparentemente, logo após nascimento, pelo anúncio do nome da criança para a família agregada, ou em comunidades maiores e mais elaboradas para o ´chefe´ titular´ do clã ou família. Veja nota no fim.

    [3] Conseqüentemente a expressão Hobbit ´um primo de doze-milhas´ para uma pessoa excluída pela lei, e não é reconhecida nenhuma obrigação além de sua interpretação precisa: aquele que não daria à você nenhum presente se a distância do degrau de entrada dele para seu não estivesse abaixo de 12 milhas (de acordo com a própria medida dele).

    [4] Nenhum presente era dado no ou durante a celebração de casamentos de Hobbits, exceto flores (casamentos eram realizados principalmente na Primavera ou nas manhãs do Verão). Ajuda em mobiliar uma casa (se o casal fosse ter uma em separado, ou apartamentos privados em um Smial) era dada muito antes pelos pais de qualquer lado.

    [5] Em comunidades mais primitivas, como aquelas ainda vivendo em clã-smials, o aniversariante também fazia um presente para o ´chefe da família´. Não há nenhuma menção dos presentes de Sméagol. Eu imagino que ele era um órfão; e não suponho que ele desse qualquer presente em seu aniversário, guardava (de má vontade) o tributo para sua ´avó´, provavelmente peixe. Um das razões, talvez, para a expedição. Teria sido como Sméagol dar peixe, mas de fato pego por Déagol!

    [6] Nós estamos aqui só tratando com ´chefe´ titular não com possessão de propriedade, e sua administração. Estas eram questões distintas; embora no caso da sobrevivência das ´grandes casas´, como Grande Smials ou Salas de Brandy, elas poderiam sobrepor. Em outros casos o comando, sendo um mero título e um assunto de cortesia, era naturalmente raro ser renunciado pelo herdeiro.

    [7] Este título e ocupação descendem imediatamente, e não foi mantido por uma viúva. Mas Ferumbras, embora ele se tornasse Thain Ferumbras III em 1380, ainda sim ocupou nada mais que um pequeno apartamento de um filho solteiro no Grande Smials, até as 1402.

    [8] os descendentes de um bisavô comum do mesmo nome.

  • Ósanwë-kenta

    Ósanwë-kenta

    Investigação acerca da Comunicação de Pensamento
    (resumo da discussão de Pengolodh)

    No final do Lammas, Pengolodh discute brevemente a transmissão direta de pensamento (sanwë-latya “abertura de pensamento”), fazendo várias afirmações sobre a mesma, que evidentemente são baseadas nas teorias e observações dos Eldar, tratadas em sua plenitude pelos mestres de tradição élficos. Elas estão relacionadas primeiramente com os Eldar e os Valar (incluindo os Maiar menores da mesma ordem). Os Homens não estão especialmente relacionados, exceto até aonde eles estão inclusos em declarações gerais sobre os Encarnados (Mirröanwi). Sobre eles, Pengolodh diz somente: “Os Homens têm a mesma aptidão dos Quendi, mas ela em si é mais fraca, e é mais fraca em ação devido à força do hröa, sobre o qual a maioria dos homens tem pouco controle pela vontade”.Pengolodh inclui essa questão primeiramente devido à sua conexão com a tengwesta (“linguagem”). Mas ele também está preocupado como um historiador em examinar as relações de Melkor e seus agentes com os Valar e os Eruhíni, apesar disso também ter uma conexão com a “linguagem”, uma vez que, como ele aponta, esse, o maior dos talentos dos Mirröanwi, foi tomado por Melkor para sua própria grande vantagem.

    Pengolodh diz que todas as mentes (sáma, pl. sámar) são iguais em status, apesar delas se diferenciarem em capacidade e força. Uma mente, por sua natureza, percebe outra mente diretamente. Mas ela não pode perceber mais do que a existência de outra mente (como algo diferente de si própria, embora da mesma ordem) exceto pela vontade de ambas as partes (Nota 1). O grau de vontade, entretanto, não necessita ser o mesmo em ambas as partes. Se chamarmos uma mente de C (para “convidada” ou doadora) e a outra A (para “anfitriã” ou receptora), então C deverá ter completa intenção de inspecionar A ou de informá-la. Mas o conhecimento pode ser ganho ou transmitido por C, mesmo quando A não estiver procurando ou pretendendo transmitir ou aprender: o ato de C será efetivo, se A estiver simplesmente “aberta” (láta; látie “abertura”). Essa distinção, ele diz, é de suma importância.

    A “Abertura” é o estado simples ou natural (indo) de uma mente que não está de outra forma ocupada (Nota 2). Na “Arda Não-Desfigurada” (isto é, em condições ideais livres do mal) a abertura seria o estado natural. No entanto, qualquer mente pode ser fechada (pahta). Isso requer um ato de vontade consciente: a Negação (avanir). Ela pode ser feita contra C, contra C e alguns outros, ou ser um isolamento total voltado para a “privacidade” (aquapahtie).

    Embora em “Arda Não-Desfigurada” a abertura seja o estado natural, cada mente possui, desde sua primeira percepção como um indivíduo, o direito de fechar-se; e ela possui poder absoluto para tornar isso eficaz pela vontade. Nada pode penetrar a barreira da Negação (Nota 3).

    Todas essas questões, diz Pengolodh, são verdadeiras a todas as mentes, dos Ainur na presença de Eru, ou os grandes Valar, tais como Manwë e Melkor, aos Maiar em Eä, e até aos menores dos Mirröanwi. Mas diferentes estados trazem limitações, que não são totalmente controladas pela vontade.

    Os Valar entraram em Eä e no Tempo de livre vontade, e eles agora estão no Tempo, enquanto este durar. Eles não podem perceber nada fora do Tempo, salvo pela memória de sua existência antes dele começar: eles podem recordar a Canção e a Visão. Eles estão, certamente, abertos a Eru, mas eles não podem, de sua própria vontade, “ver” qualquer parte de Sua mente. Eles podem se abrir a Eru em súplica, e Ele pode então revelar Seu pensamento a eles (Nota 4).

    Os Encarnados possuem pela natureza da sáma as mesmas aptidões; mas a sua percepção é obscurecida pelo hröa, pois seu fëa é ligado ao seu hröa, e seu procedimento normal é através do hröa, que é em si parte de Eä, sem pensamento. O obscurecimento é de fato duplo; pois o pensamento tem que passar do manto de um hröa e penetrar em outro. Por essa razão, nos Encarnados, a transmissão de pensamento requer fortalecimento para ser efetiva. O Fortalecimento pode ser por afinidade, por urgência, ou por autoridade.

    A Afinidade pode ser devido ao parentesco; pois isso pode aumentar a semelhança de hröa para hröa, e também dos interesses e modos de pensamento dos fëar residentes; o parentesco também é normalmente acompanhado por amor e simpatia. A Afinidade pode vir simplesmente do amor e amizade, que é a semelhança ou afinidade de fëa para fëa.

    A Urgência é transmitida por grande necessidade do “remetente” (como em contentamento, pesar ou medo); e se essas questões forem comuns em qualquer grau ao “receptor”, o pensamento é o mais claro recebido. A Autoridade também pode conceder força ao pensamento de alguém que possui uma responsabilidade quanto a outro, ou de qualquer governante que tenha um direito a emitir comandos ou a buscar a verdade para o bem de outros.

    Essas causas podem fortalecer o pensamento para passar os véus e alcançar uma mente receptora. Mas essa mente deve permanecer aberta, e ao menos passiva. Se, estando ciente que ele é endereçado, ela então se fecha, e nenhuma urgência ou afinidade permitirá o pensamento do remetente entrar.

    Por fim, a tengwesta também se torna um impedimento. Ela é nos Encarnados mais clara e mais precisa do que sua recepção direta de pensamento. Por ela eles também podem se comunicar facilmente com outros, quando nenhuma força é adicionada ao seu pensamento: como, por exemplo, quando estranhos encontram-se pela primeira vez. E, como vimos, o uso da “linguagem” logo se torna habitual, de modo que a prática do ósanwë (intercâmbio de pensamento) é negligenciada e torna-se mais difícil. Assim, vemos que os Encarnados tendem mais e mais a usar ou empenhar-se a usar o ósanwë somente em grande necessidade ou urgência, e especialmente quando a lambe é inútil. Como quando a voz não pode ser ouvida, o que acontece principalmente por causa da distância. Pois a distância em si não oferece qualquer impedimento ao ósanwë. Mas aqueles que por afinidade bem podem usar o ósanwë, usarão a lambe quando em proximidade, por hábito ou preferência. Nós também ainda podemos notar como os “afinados” podem compreender mais rapidamente a lambe que usam entre si e, realmente, tudo o que diriam não seria posto em palavras. Com menos palavras, eles chegam mais rápido a um melhor entendimento. Não pode haver dúvida que aqui o ósanwë também acontece freqüentemente; pois a vontade de conversar em lambe é uma vontade de comunicar o pensamento, e ela abre as mentes. Pode ser, certamente, que ambos que conversem já saibam parte do assunto e do pensamento do outro quanto a ele, de forma que apenas alusões ao estranho necessitam ser feitas; mas isso não é sempre assim. Os afinados alcançarão um entendimento mais rapidamente do que estranhos sobre assuntos que nenhum dos dois tenha discutido antes, e perceberão mais rapidamente a importância de palavras que, embora numerosas, bem escolhidas e precisas, permanecem inadequadas.

    O hröa e a tengwesta têm um efeito inevitavelmente semelhante sobre os Valar, se esses assumem vestes corpóreas. O hröa turvará em certo grau o envio do pensamento em força e precisão, e a recepção dele, se o outro também for encarnado. Se eles tiverem adquirido o hábito da tengwesta, assim como alguns podem ter adquirido o costume de serem ordenados, então isso reduzirá a prática do ósanwë. Mas esses efeitos são em grande parte menos sentidos no caso dos Encarnados.

    Pois o hröa de um Vala, mesmo tendo se tornado costumeiro, está muito mais sob o controle da vontade. O pensamento dos Valar é muito mais poderoso e penetrante. E, até onde diz respeito aos seus relacionamentos uns com os outros, a afinidade entre os Valar é maior do que a afinidade entre quaisquer outros seres; de forma que o uso da tengwesta ou da lambe nunca se fez necessário, e apenas com alguns isso se tornou um costume e uma preferência. E quanto aos seus relacionamentos com todas as outras mentes em Eä, seu pensamento freqüentemente possuía a mais alta autoridade, e a maior urgência. (Nota 5)

    Pengolodh então prossegue para os abusos do sanwë. “Pois” ele diz, “aqueles que leram até aqui, podem já ter questionado meu conhecimento, dizendo: Isso não parece de acordo com as histórias. Se a sáma era inviolável pela força, como poderia Melkor ter iludido e escravizado tantas mentes? Ou não é totalmente verdadeiro que a sáma pode ser protegida por uma força maior mas também capturada por uma força superior? Razão pela qual Melkor, o maior, e possuidor da mais dura, determinada e cruel vontade, poderia penetrar as mentes dos Valar, mas se continha em relação a eles, de forma que mesmo Manwë ao lidar com ele pode nos parecer às vezes débil, descuidado e ludibriado. Não é dessa forma?”

    “Digo que isso não se dá desse modo. Tais coisas podem parecer-se, mas se em gênero elas são totalmente diferentes, elas devem ser distintas. A previdência, que é a previsão, e o prognóstico, que é a opinião tomada pelo raciocínio sobre a presente evidência, podem ser idênticos em sua predição, mas são completamente diferentes em modo, e deveriam ser distinguidos por mestres de tradição, mesmo se a língua habitual, tanto de Elfos como de Homens, lhes der o mesmo nome como áreas da sabedoria”. (Nota 6)

    Desse modo, a extorsão dos segredos de uma mente parece vir da leitura da mesma pela força, a despeito de sua negação, pois o conhecimento ganho (à força) pode, às vezes, mostrar-se tão completo como qualquer um que pudesse ser obtido (de livre vontade). Entretanto, ele não vem da penetração da barreira da negação.

    Não há, de fato, nenhuma axan para que a barreira não devesse ser forçada, pois isso é únat, uma coisa impossível de ser ou de ser feita, e quanto maior a força exercida, maior a resistência da negação. Mas é uma axan universal que ninguém tomará de outro diretamente pela força ou indiretamente por embuste o que ele tem direito a possuir e guardar a si próprio.

    Melkor repudiava todas as axani. Ele também aboliria (por si próprio) todas as únati se pudesse. Realmente, no seu princípio e nos dias de seu grande poder, as mais devastadoras de suas violências vinham então de seu esforço em ordenar Eä para que não houvesse limites ou obstáculos para sua vontade. Mas isso ele não pôde fazer. As únati permaneceram, uma lembrança perpétua da existência de Eru e Sua invencibilidade, uma lembrança também da coexistência de si mesmo com outros seres (iguais na origem, senão em poder) inexpugnável à força. Disso se origina sua incessante fúria implacável.

    Ele percebeu que a aproximação aberta de uma sáma de grande poder e força de vontade era sentida por uma sáma inferior como uma imensa pressão, acompanhada por medo. Dominar por influência de poder e medo era seu deleite; mas nesse caso os considerava inúteis: o medo fechava a porta mais rapidamente. Por esse motivo ele tentou o engano e a furtividade.

    Aqui ele foi auxiliado pela simplicidade daqueles inconscientes do mal, ou ainda não acostumados a se acautelarem com relação a ele. E por essa razão, foi dito acima que a distinção de franqueza e vontade ativa para entreter era de grande importância. Pois ele chegava furtivamente a uma mente aberta e incauta, esperando estudar parte de seu pensamento antes que este se fechasse, e ainda mais, implantar nele seu próprio pensamento, para enganá-lo e convencê-lo de sua amizade. Seu pensamento era sempre o mesmo, embora variasse para se adaptar a cada caso (até onde o compreendia): ele estava acima de todos benevolentes; ele era rico e poderia dar qualquer presente que desejassem a seus amigos; ele tinha uma afeição especial com aquele ao qual ele se dirigia; mas nele deviam confiar.

    Deste modo ele obteve a entrada a muitas mentes, removendo sua negação, e abria a porta com a única chave, embora sua chave fosse falsificada. Mas isso não era o que ele mais desejava, a conquista dos relutantes, a escravização de seus inimigos. Aqueles que o escutavam e não fechavam a porta freqüentemente já eram inclinados à sua amizade; alguns (de acordo com seus limites) já haviam ingressado em caminhos semelhantes ao seu próprio, e lhe davam ouvidos porque esperavam aprender e receber dele ensinamentos que serviriam aos seus próprios propósitos. (Assim ocorreu com aqueles dos Maiar que primeiro e mais precocemente caíram sob sua dominação. Eles já eram rebeldes, mas desprovidos do poder de Melkor e de sua cruel vontade, admiravam-no, e viram em sua liderança a esperança de uma rebelião efetiva.) Porém, aqueles que ainda eram inocentes e não corrompidos no “coração” (Nota 7) ficaram imediatamente cientes de sua entrada, e se davam atenção ao aviso de seus corações, cessavam de escutá-lo, expulsavam-no, e fechavam a porta. Eram estes que Melkor mais desejava subjugar: seus inimigos, pois para ele todos eram inimigos que lhe resistiam à mais ínfima idéia ou reinvidicavam o que quer que fosse como pertencente a si próprios, e não a ele.

    Portanto ele procurou meios de vencer a únat e a negação. E essa arma ele encontrou na “linguagem”. Pois agora falamos dos Encarnados, os Eruhíni que ele mais desejava subjugar a despeito de Eru. Seus corpos, sendo de Eä, estão sujeitos à força; e seus espíritos, sendo ligados a seus corpos em amor e solicitude, estão sujeitos ao medo em seu benefício. E sua linguagem, embora venha do espírito ou da mente, atua através e com o corpo: ela não é a sáma nem seu sanwë, mas pode expressar o sanwë ao seu modo e de acordo com sua capacidade. Sobre o corpo e sobre o espírito, portanto, tal pressão e medo podem ser exercidos para que a pessoa encarnada seja forçada a falar.

    Assim Melkor ponderou em sua previdência por muito tempo antes que acordássemos. Pois nos dias antigos, quando os Valar instruíram os Eldar recém chegados à Aman a respeito do princípio das coisas e da inimizade de Melkor, o próprio Manwë disse àqueles que escutassem: “Dos Filhos de Eru, Melkor sabia menos do que seus iguais, prestando menos atenção ao que ele poderia ter aprendido, como nós fizemos, na Visão de sua Chegada. Todavia, como agora tememos, uma vez que conhecemos vocês em seu verdadeiro ser, quanto a tudo que possa auxiliar em seus propósitos, sua mente ansiava em alcançar a maestria, e seu propósito saltou adiante mais rapidamente do que o nosso, não estando ligado à nenhuma axan. Desde o princípio ele estava muito interessado na linguagem, aquele talento que os Eruhíni têm por natureza; mas nós não percebemos de imediato a malícia nesse interesse, pois muitos de nós o compartilhavam, e sobretudo Aulë. Mas descobrimos a tempo que ele criara uma linguagem para aqueles que o serviam; e ele aprendeu nossa língua com facilidade. Ele possui uma grande habilidade nessa matéria. Sem dúvida ele dominará todas as línguas, mesmo a bela fala dos Eldar. Portanto, se alguma vez falarem com ele, acautelem-se!”

    “Ai de mim!”, diz Pengolodh, “Em Valinor Melkor usava o Quenya com tal maestria que todos os Eldar ficavam impressionados, pois seu uso não podia ser melhorado, raramente sequer igualado, pelos poetas e pelos mestres de tradição”.

    Desse modo, por fraude, por mentiras, pelo tormento do corpo e do espírito, pela ameaça de sofrimento a outros bem amados, ou pelo terror absoluto de sua presença, Melkor sempre procurou forçar o Encarnado que caía nas mãos do seu poder, ou chegava ao seu alcance, a falar e lhe contar tudo o que soubesse. Mas sua própria Mentira gerou uma prole interminável de mentiras.

    Por essses meios ele destruiu muitos, causou enormes traições, e ganhou conhecimento de segredos para sua grande vantagem e para a ruína de seus inimigos. Mas isso não era feito pela penetração da mente, ou pela leitura dela como ela é, em seu menosprezo. Não, pois embora grande o conhecimento que ele ganhara, por trás das palavras (mesmo daquelas em medo e tormento) sempre estava a sáma inviolável: as palavras não estão nela, embora possam proceder dela (como gritos por trás de uma porta trancada); elas devem ser julgadas e avaliadas pela verdade que possa nelas existir. Por esse motivo, o Mentiroso diz que todas as palavras são mentiras: todas as coisas que ele escuta são passadas adiante com fraude, evasões, significados ocultos e ódio. Nessa vasta malha ele mesmo enredou lutas e fúrias, consumido pela suspeita, incerteza e medo. Não teria sido dessa forma, se ele pudesse ter quebrado a barreira, e visto o coração como ele é em sua verdade revelada.

    Se falarmos por último da “tolice” de Manwë e da fraqueza e imprudência dos Valar, tomemos cuidado ao julgar. Nas histórias, realmente, podemos nos impressionar e sofrer ao ler como (aparentemente) Melkor enganou e seduziu outros, e como mesmo Manwë mostra-se, de vez em quando, quase um ingênuo se comparado a ele: como se um pai afável, porém ignorante, estivesse tratando uma criança impertinente que seguramente perceberia na hora apropriada o erro de seus modos. Enquanto que nós, observando e sabendo a conseqüência, vemos agora que Melkor conhecia bem o erro de seus métodos, mas estava fixado neles pelo ódio e orgulho, além de qualquer retorno. Ele poderia ler a mente de Manwë, pois a porta estava aberta; mas sua própria mente era falsa e, mesmo que a porta parecesse aberta, havia portas de ferro no interior, fechadas para sempre.

    Como, de outra forma, você a teria? Deveria Manwë e os Valar enfrentar segredos com subterfúgios, traição com falsidade, mentiras com mais mentiras? Se Melkor usurpasse os direitos deles, deveriam eles negar o dele? Pode ódio sobrepujar ódio? Não, Manwë era mais sábio; ou, estando sempre aberto a Eru, feito sua vontade, a qual é mais do que sabedoria. Ele estava sempre aberto porque não possuía nada a esconder, nenhum pensamento que fosse prejudicial para qualquer um ter conhecimento, se pudessem compreendê-lo. De fato Melkor conhecia sua vontade, indubitavelmente; e ele sabia que Manwë era limitado pelos comandos e injunções de Eru, e faria isso ou abster-se-ia em concordância a eles, sempre, mesmo sabendo que Melkor as quebraria (as barreiras) conforme servisse ao seu propósito. Dessa forma, o impiedoso sempre contará com a piedade, e os mentirosos fazem uso da verdade; pois se a piedade e a verdade são mantidas pelo cruel e pelo mentiroso, elas deixaram de ser respeitadas.

    Manwë não poderia tentar por pressão forçar Melkor a revelar seus pensamentos e propósitos, ou (se ele usasse palavras) falar a verdade. Se ele falasse e dissesse: isto é verdade, deveriam nele acreditar até que fosse provado falso; se ele dissesse: isto eu farei, como vocês desejam, deveriam lhe permitir a oportunidade para cumprir sua promessa. (Nota 8)

    A força e a restrição que foram usadas em Melkor, pelo poder reunido de todos os Valar, não foram usadas para extorquir uma confissão (que era desnecessária); nem para compeli-lo a revelar seu pensamento (o que era ilegal, mesmo que não fosse em vão). Ele foi feito prisioneiro como uma punição pelos seus atos malignos, sujeito à autoridade do Rei. Assim podemos dizer; mas seria melhor dizer que ele foi destituído por um período, estabelecido pela promessa, de seu poder para agir, de forma que ele pudesse repensar e considerar a si mesmo, e ter assim a única oportunidade para que através da piedade pudesse alcançar o arrependimento e a correção. Para a cura de Arda, de fato, mas também para sua própria cura. Melkor tinha o direito à existência, e o direito de agir e usar seus poderes. Manwë possuía a autoridade para governar e ordenar o mundo, tanto quanto pudesse, para o bem-estar dos Eruhíni; mas se Melkor se arrependesse e retornasse à sua lealdade a Eru, deveria lhe ser dada sua liberdade novamente. Ele não pode ser escravizado, nem pode ser negada sua posição. A função do Rei Mais Velho era manter todos seus assuntos em fidelidade a Eru, e nessa fidelidade mantê-los livres.

    Portanto, não até o final, e não até pela ordem expressa de Eru e pelo Seu poder, fora Melkor deposto e privado para sempre de todo poder para fazer ou desfazer.

    Quem entre os Eldar sustenta que o cativeiro de Melkor em Mandos (que foi alcançado pela força) fora insensato ou ilegal? Mesmo a resolução de atacar Melkor, não meramente para opor-se a ele, para reunir violência com ira para o risco de Arda, foi tomada por Manwë apenas com relutância. E considere: que bem, nesse caso, mesmo o uso ilegal da força conseguiu? Isso o removeu por um tempo e aliviou a Terra-média da pressão de sua malícia, mas isso não erradicou seu mal, pois isso não podia ser feito. A menos que, talvez, Melkor de fato tivesse se arrependido. (Nota 9) Mas ele assim não o fez, e na humilhação ele tornou-se mais obstinado: mais sutil em seu engodos, mais perspicaz em suas mentiras, mais cruel e vil em sua vingança. A mais fraca e mais imprudente de todas as ações de Manwë, como parece a muitos, foi a libertação de Melkor do cativeiro. Disso veio a maior perda e o maior dano: a morte das �?rvores, e o exílio e angústia dos Noldor. Ainda assim, através desse sofrimento também se atingiu, como talvez não pudesse se atingir de outro modo, a vitória dos Dias Antigos: a queda de Angband e a última deposição de Melkor.

    Quem pode então dizer com certeza que se Melkor tivesse sido mantido aprisionado, menos mal teria se seguido? Mesmo em sua redução, o poder de Melkor está além da nossa compreensão. Ainda assim, algumas explosões devastadoras de seu desespero não são o pior que podia ter se sucedido. A libertação foi de acordo com a promessa de Manwë. Se Manwë tivesse quebrado essa promessa para seus próprios propósitos, ainda que “bons”, ele teria dado um passo em direção aos caminhos de Melkor. Esse é um passo perigoso. Naquela hora e ato, ele poderia ter deixado de ser o vice-regente do Uno, tornando-se somente um rei que toma vantagem sobre um rival que ele conquistou pela força. Teríamos então os sofrimentos que se sucedessem; ou veríamos o Rei Mais Velho perder sua honra, e então passar, talvez, para um mundo despedaçado entre dois orgulhosos governantes aspirando o trono? Disto podemos estar certos, nós, crianças de força pequena: qualquer um dos Valar poderia ter tomado os caminhos de Melkor e tornado-se como ele: mas um era suficiente.

    Notas do Autor para o Ósanwë-kenta

    Nota 1 – Aqui níra (“vontade”, como um potencial ou faculdade), uma vez que o requerimento mínimo é que essa faculdade não seja exercida em negação; a ação ou um ato de vontade é nirme; assim como sanwë “pensamento” ou “um pensamento” é a ação ou um ato da sáma.

    Nota 2 – Ela pode ser ocupada com o pensamento e ficar desatenta a outras coisas; ela pode ser “voltada em direção a Eru”; ela pode entrar em “conversação de pensamento” com uma terceira. Pengolodh diz: “Apenas grandes mentes podem conversar com mais do que uma outra ao mesmo tempo; várias podem conferenciar, mas então, de uma vez, apenas uma transmite, enquanto as outras recebem”.

    Nota 3 – “Mente alguma pode, de qualquer modo, ser fechada contra Eru, tampouco contra Sua inspeção ou contra Sua mensagem. Pode-se não estar atento a esta última, mas não se pode dizer que não a tenham recebido”.

    Nota 4 – Pengolodh acrescenta: “Alguns dizem que Manwë, por uma graça especial ao Rei, podia ainda em certa medida perceber Eru; outros dizem que, mais provavelmente, ele permaneceu perto de Eru, e Eru estava na maioria das vezes pronto para ouvi-lo e responder-lhe”.

    Nota 5 – Aqui Pengolodh acrescenta uma longa nota sobre o uso dos hröar pelos Valar. Em resumo, ele diz que, embora seja em origem um “auto vestir-se”, ele pode tender a se aproximar do estado de “encarnação”, especialmente com os membros inferiores daquela ordem (os Maiar). “É dito que, quanto mais tempo o mesmo hröa é usado, maior é a ligação ao hábito, e menos deseja o auto vestir-se abandoná-lo. Como vestimenta, pode logo deixar de ser um adorno, e se tornar (como é dito nas línguas tanto de Elfos como de Homens) um hábito, uma roupa costumeira. Ou se entre Elfos e Homens ela seja usada para mitigar o calor e o frio, ela logo torna o corpo vestido menos capaz de suportar tais coisas quando despido”. Pengolodh também cita a opinião de que se um “espírito” (isto é, um daqueles não encarnados pela criação) usa um hröa em auxílio a seus propósitos pessoais, ou (ainda mais) para o deleite de faculdades corpóreas, ele sente a dificuldade aumentar para operar sem o hröa. As coisas que são mais obrigatórias são aquelas que no Encarnado têm a ver com a vida do próprio hröa, seu sustento e propagação. Dessa forma, comer e beber são obrigatórios, mas não o prazer na beleza do som ou forma. A maioria das obrigações é criada ou compreendida.

    “Não sabemos as axani (leis, regras, como primeiramente originadas de Eru) que foram estabelecidas sobre os Valar com referência em particular ao seu estado, mas parece claro que não havia uma axan contra tais coisas. No entanto, parece existir uma axan, ou talvez consequência necessária que, se eles estão decididos, o espírito deve então habitar o corpo que é usado, e ficar sob as mesmas necessidades do Encarnado. O único caso que é conhecido nas histórias dos Eldar é o de Melian, que se tornou esposa do Rei Elu Thingol. Isso com certeza não foi feito com maldade ou contra a vontade de Eru, e embora tenha levado ao sofrimento, tanto Elfos como Homens foram enriquecidos”.

    “Os grandes Valar não realizam tais coisas: eles não geram, nem comem ou bebem, exceto nos altos asari (festivais), como prova de sua autoridade e habitação de Arda, e para a benção do sustento dos Filhos. Apenas Melkor dentre os Grandes tornou-se por fim limitado a uma forma corpórea; mas assim o era por causa do uso que ele fez disso, no seu intento de se tornar Senhor dos Encarnados, e por causa das grandes perversidades que cometera quando em corpo visível. Ele também dissipou seus poderes nativos para o controle de seus agentes e servos, de forma que ele se tornou no final, em si mesmo e sem o apoio deles, algo enfraquecido, consumido pelo ódio e incapaz de restaurar a si próprio do estado ao qual havia caído. Mesmo a sua forma visível ele não mais podia dominar, de modo que seu horror não podia mais ser mascarado, e isso revelou a maldade de sua mente. Assim também foi com alguns de seus maiores servos, como vemos nestes dias atuais: eles se tornaram unidos às formas de seus atos malignos, e se estes corpos eram tomados deles ou destruídos, eles eram anulados, até que tivessem reconstruído uma imagem de suas habitações anteriores, com a qual eles podiam continuar os cursos malignos nos quais eles haviam se fixado”. (Pengolodh aqui se refere evidentemente a Sauron, em particular, com cuja elevação partiu, por fim, da Terra-média. Mas a primeira destruição da forma corpórea de Sauron foi registrada nas histórias dos Dias Antigos, na Balada de Leithian.)

    Nota 6 – Pengolodh aqui elabora (embora não seja necessário ao seu argumento) essa questão de “previsão”. Nenhuma mente, ele afirma, conhece o que nela não está. Tudo o que fora experimentado está nela, apesar de que no caso dos Encarnados, dependendo dos instrumentos do hröa, algumas coisas podem ser “esquecidas”, não estando imediatamente disponíveis para recordação. Mas nenhuma parte do “futuro” lá está, pois a mente não pode vê-lo nem tê-lo visto: isto é, uma mente situada no tempo. Tal mente pode aprender sobre o futuro apenas a partir de outra mente que o tenha visto. Mas isso significa apenas diretamente de Eru, ou por intermédio de alguma mente que tenha visto em Eru alguma parte de Seu propósito (assim como os Ainur, que agora são os Valar em Eä). Só assim um Encarnado pode conhecer algo do futuro: por instrução derivada dos Valar, ou por uma revelação vinda diretamente de Eru. Mas qualquer mente, seja dos Valar ou dos Encarnados, pode deduzir pela razão o que pode ou irá ocorrer. Isso não é previsão, mesmo que possa parecer claro em termos e, de fato, mesmo mais preciso do que vislumbres de previsão. Nem mesmo se isso for formado por visões vistas em sonho, um meio segundo o qual a “previsão” é freqüentemente revelada à mente.

    Mentes que possuem grande conhecimento do passado, do presente, e da natureza de Eä, podem predizer com grande precisão, e quanto mais próximo o futuro, mais claro ele se apresenta (exceto, sempre, pela liberdade de Eru). Portanto, muito do que é chamado “previsão”, em palavras desatentas, é apenas a dedução do sábio; e se isso for recebido, como advertência ou instrução, dos Valar, pode ser somente a dedução do mais sábio; embora isso possa às vezes, por outro lado, ser “previsão”.

    Nota 7enda. Essa palavra nós traduzimos como “coração”, embora não tenha nenhuma referência física a qualquer órgão do hröa. Ela significa “centro”, e refere-se (embora pela inevitável alegoria física) ao fëa ou a própria sáma, distinto da periferia (aparentemente) de seus contatos com o hröa; autociente; favorecido com a sabedoria primordial de sua estrutura que o faz sensível a qualquer coisa hostil mesmo em seu menor grau.

    Nota 8 – Razão pela qual Melkor freqüentemente falava a verdade, e de fato ele raramente mentia sem que houvesse qualquer mescla de verdade. A não ser em suas mentiras contra Eru; e foi talvez por expressar essas mentiras que lhe foi negado qualquer retorno.

    Nota 9 – Alguns sustentam que, embora o mal possa então ter sido mitigado, ele não pode ter sido desfeito mesmo pelo arrependimento de Melkor; pois o poder partiu dele e não estava mais sob o controle da sua vontade. Arda foi desfigurada na sua própria existência. As sementes que a mão espalha crescerão e se multiplicarão mesmo que a mão seja removida.