Categoria: Textos e Ensaios

  • O Condado, a Terra-Média e o Mar: A nostalgia de Tolkien.

    Diego Klautau, Mestre em Ciências da Religião – PUC/SP, trata neste artigo a presença de uma crítica à modernidade em O Senhor dos Anéis. A partir das idéias de Agostinho, Tolkien cria um mundo que é percebido tanto em sua ordem de desenvolvimento natural quanto na regulação de virtudes nas relações entre o seres racionais como um mundo criado por Deus, e com valores claros transmitidos por gerações, revelados através da tradição por esse mesmo Deus. Esse conjunto de virtudes, concepção do homem, e seres racionais, da natureza e das esferas políticas e institucionais é baseado na filosofia de Agostinho. Porém, ao escrever O Senhor dos Anéis em um contexto de século XX, entre as duas grandes guerras e todo desenvolvimento histórico que percebia, devidamente inserido em seu tempo, Tolkien formula uma crítica a esse momento histórico.

    O artigo na íntegra de Klautau:

    http://74.125.47.132/search?q=cache:jnHvaNnveUYJ:www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2008/12/klatau-diego.pdf+texto+sobre+Tolkien&cd=36&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br

    Fonte: Diego Klautau – PUC/SP.

  • O Senhor dos Anéis, é um hino à Graça com referência contí­nua à Sagrada Escritura

    O Senhor dos Anéis, é um hino à Graça com referência contí­nua à Sagrada Escritura

    ” O Senhor dos Anéis» é fundamentalmente uma obra religiosa e católica escreve Tolkienna Carta de 2 de Dezembro de 1953 ao Padre Robert Murray: notícia nada surpreendente se for considerada a vida do seu autor, plasmada por uma profunda fé herdada da sua mãe, convertida da religião protestante da sua família de origem — o pai, educado numa escola metodista — ao catolicismo, escolha que pagou com em vida, sendo repudiada e abandonada à miséria com o desprezo dos seus familiares. ”

    Esta é a justa lente com a qual observar e compreender toda a obra de Tolkien. Os textos de Paolo Gulisano, de Andrea Monda e Saverio Simonelli sobre Tolkien, demonstram que a obra completa de Tolkien e não só «O Senhor dos Anéis», é um hino à Graça com referência contínua à Sagrada Escritura.

    Tolkien Nos textos de Tolkien do princípio ao fim surge como pensamento fundamental o sentido da vida e da escritura: o famoso conceito de subcriação, que vê o homem chamado por Deus na obra da formação da realidade, evidentemente com distinções: o subcriado do homem é o mundo dos mitos, dos acontecimentos que remetem para a mensagem completa.

    Se Deus, «escrevendo» a Bíblia deu vida àqueles acontecimentos que são narrados — a Palavra fez-se carne! — o homem só pode «criar» mundos que permanecem prisioneiros da estrutura. Este é, segundo o nosso autor, o contributo que o homem pode oferecer a Deus na obra da criação. Há quem compare Tolkien a Manzoni (Monda e Simonelli) mas quem o sinta mais próximo de Dante: pois ambos, tiveram intenção de conferir o sentido anagógico ao seu trabalho: não símbolo, mas verdadeira experiência que remete para outro significado os acontecimentos. Não uma criação que remete para o outro, assim como o faz a Divina Comédia na intenção de Dante.

    Olhando para a obra cinematográfica, se ao lado da trilogia podemos ver a presença dos dois últimos versos do Pai Nosso, o centro de toda a história pode ser expresso citando a conclusão da liturgia da palavra da Missa em honra de Sta. Inês — 21 de Janeiro — que recita: «Ó Deus omnipotente e eterno que escolhes as criaturas mais fracas para confundir o poder do mundo.» Nesta frase está condensada a mensagem de Tolkien: a confiança ilimitada no Deus católico e no seu projecto sobre a história, a exaltação dos humildes, a loucura que, como exclama Gandalf durante o conselho de Elrond, será o manto (a capa) aos olhos dos inimigos que assim confunde o poder do mundo. Palavras similares àquelas contidas no Magnificat : «exaltou a humildade da sua serva — derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.»

    Humildes e frágeis: esta parece ser a fundamental e decisiva diferença entre o valioso universo Tolkiano e o divertido, mas também superficial mundo do Harry Potter, onde os bons são esplendidamente bons e os maus perversamente maus, divisão maniqueia. Na obra de Tolkien todos, como Gollum, podem ser resgatados e onde todos, como Frodo, como Aragon, como Gandalf, são constantemente tentados e não são capazes de ultrapassar necessariamente a tentação. Só os orcs, imitação do homem, criados da lama, e os emissários de Sauron são apresentados como impermeáveis à salvação: como os demónios e Satanás, segundo o que nos diz o Catecismo da Igreja católica.

    Todo o «Senhor dos Anéis» é atravessado do sentido da fragilidade humana que só em Deus encontra cumprimento e apoio. Com efeito, como fez já notar Emília Lodizioni no primeiro e imprescindível «convite à leitura de Tolkien», o traço saliente deste romance, como de todos os que escreveu Tolkien, é a renúncia. A vitória sobre o mal só é possível renunciando, com liberdade, a qualquer coisa de querido. Se é bem notório que é a própria renúncia ao anel que permitirá salvar a Terra Média, são muitos outros os exemplos desta renúncia no texto, que se inicia com a renúncia de Bilbo ao seu precioso tesouro que Gandalf confiará a Frodo. O próprio Frodo renuncia à vida tranquila para assumir o encargo de conduzir ao término uma missão destinada aos heróis «institucionais» Aragon e Gandalf. Gandalf primeiro e Galadriel depois renunciam a possuir o anel que é oferecido a Frodo, superando a prova — e Tolkien utiliza em entrelinhas quase esse vocábulo — como Cristo no deserto afasta o demónio que lhe oferece a posse de todos os reinos da terra. Mas há outros argumentos que encontram a sua raiz na Escritura e na fé católica.

    «Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus» (Rm.8,25). Assim, de facto acontece no livro. Situações que parecem trágicas, extremamente negativas, demonstram-se no entanto preciosas para produzir o bem: se Gandalf o grisalho não «morresse» em Moria, não podia renascer como Gandalf o branco (e aqui recorda a palavra de Jesus: — Se o grão de trigo não morre — Jo.12,24). Sem o ataque de loucura que atinge Boromir e o leva a arrebatar o anel a Frodo e sem o assalto dos orcs o anel não chegaria a Est. Se Pepino e Merry não fossem raptados pelos orcs não chegariam à floresta de Fangar, se Gollum não tivesse fugido dos elfos e não tivesse traído os hobits o anel não teria sido deitado na fornalha ardente.

    A figura do verdadeiro protagonista Frodo é traçada sob a figura do Santo, como Abraão a ponto de deixar tudo, a casa, a riqueza, a posição, para ir para a desolação; Moisés, o profeta que se sente inadequado para a missão confiada, e o próprio Jesus, do qual condivide a profunda e forte humildade e vontade de levar ao termo a missão confiada a custo com a própria vida. Como escreve Bertoni, na sua tese de doutoramento apresentada na Universidade de Bologna em 1995: «Frodo respondeu a uma chamada; se bem que quisesse evitá-la e não soubesse nada, de facto, de armas e de guerras». E uma vez chamado não volta mais atrás. Moria, que atravessa o primeiro livro, é o nome do monte sobre o qual Abraão é chamado a sacrificar Isaac (Gen.22,1). Mória é na realidade o lugar sobre o qual é constituída, séculos depois a cidadede Ieru-Salem, cujo rei ao tempo do patriarca é o famoso Melquisedec, rei de Salém. Uma das referências de Moria é o Calvário, onde um outro sacrifício será oferecido: o de Nosso Senhor Jesus Cristo. É em Mória que Gandalf morrre para depois ressurgir: um acaso? Penso que não. Uma indicação muito marcada que remete para o verdadeiro sentido do sacrifício.

    Também a comunhão dos santos está presente no livro: é a piedade que Bilbo mostra sobre Gollum, não obstante todo o percurso do mal, inspira-lhe compaixão que permite que a missão seja cumprida. O esforço que as personagens fazem na sua batalha com as forças de Sauron sustêm Frodo, ajudando-o a levar o peso do anel que aumenta conforme se aproxima do Monte Fato. A mensagem de que o mal corrompe com a sua convivência está presente: o anel que representa o pecado, corrói todos os que têm contacto, não só Gollum, que o possui há muito, ficando uma imagem do que era, mas o próprio Bilbo e Frodo são alvo dos ataques e sobrevivem só em função de um esforço da livre vontade. Frodo não chega a perder a razão, também a capacidade de entender, e querer, no momento em que se encontra a poder deitar na voragem do Monte Fato o anel.

    O anel encerra as três concupiscências que fala S. Paulo: dos olhos, da carne e soberba de vida. Nota-se em particular na vivência de Boromir o seu desejo mórbido de apoderar-se do anel, o que o leva a agredir Frodo pronunciando palavras que podem ser remetidas às três concupiscências referidas. O olhar capaz de desvelar os pensamentos do coração, que Galadiel, a mulher de Lothorien apresenta, faz pensar na imagem que Nosso Senhor e remete ao olhar de Jesus como Palavra que penetra o mais fundo e íntimo do nosso ser (Heb.4,12). A parábola dos talentos ressoa neste esplêndido diálogo entre Frodo e Gandalf: «Desejei tanto que tudo isto não acontecesse nos meus dias», exclamou Frodo. «Também eu» anuiu Gandalf, «como todos os que vivem estes acontecimentos. Mas não nos cabe a nós escolher. Tudo o que podemos decidir é como dispor do tempo que nos é dado.»

    O importante é fazer bom uso do tempo, que foge das mãos e que, para quem tem critério cristão, vale mais que ouro, porque representa uma antecipação da glória que Deus nos concederá. A Graça está presente em cada página do romance e revela-se no momento decisivo: ninguém pode arrogar-se no mérito de ter salvo a Terra Média, pois todos ofereceram o seu contributo, todos os protagonistas da obra levam os seus pães e os seus peixes, mas nenhum deles pode multiplicá-los. É a Graça que se serve do hobits e dos homens, como dos elfos e restantes, que se alimenta da piedade de Bilbo e da misericórdia de Frodo, do heroísmo de Sam e da valentia de Aragon, a jogar a última carta.

    Tradução do italiano por Pe. Marco Luís.

    Fonte: Documentos de Hora da Esperança

  • Cinco Razões Para Sermos Gratos a Tolkien Segundo China Miéville

    Cinco Razões Para Sermos Gratos a Tolkien Segundo China Miéville

    china-mieville.jpgO autor China Miéville, um dos maiores nomes das nova geração de autores de fantasia, publicou no dia 15 de junho em seu blog um artigo falando sobre a obra tolkieniana. Conhecido por não ter “papas na língua” ao criticar a obra de Tolkien, Miéville desta vez nos apresenta uma lista de razões pelas quais devemos ser extremamente gratos à Tolkien. Não sem antes comentar, que em sua essência nem todas as críticas ao trabalho do professor são sem fundamento. Na verdade, segundo ele, existem argumentos perfeitamente razoáveis sobre o impacto, a natureza, a escala e o sucesso do trabalho do Tolkien. Argumentos esses não somente sobre o que é lamentável em Tolkien, mas, também sobre o que é indispensável. Mas vamos deixar de lero-lero e conhecer as razões que temos, segundo Miéville, para sermos gratos a Tolkien.

    A primeira razão está no fato de Tolkien esmerar-se em delinear e glorificar em sua obra a Magia Nórdica, para Miéville este era o brado que faltava para aqueles que sempre lamentaram a hegemonia dos clássicos classicistas e a falta de calor nos mitos gregos e romanos.

    A Tragédia quem diria, é a segunda razão. Para Miéville ao contrário do que muitos possam achar a história tolkieniana é trágica. No final, nem todas as lágrimas nos olhos dos personagens e dos leitores são expressões de felicidade. Se por um lado, os bons ganharam, por outro a “vergonha” que a época representa contribui para diminuir a Glória. Vendo por este prisma, é impossível negar isso. Se a união de personagens tão diversas por uma causa maior demonstra a grandeza da obra, o fato dessa união ser necessária é só um fato a mais para comprovar que a decadência da Terra Média caminhava a passos largos, e sim isso é trágico!

    “O episódio do Expurgo do Condado conclui bem, naturalmente, na medida em que ocorre, mas em relação à sua própria insignificância é apenas aquilo que foi, é brilhantemente insatisfatório, anunciando uma era de paródias de epopéias degradadas, onde não são apenas os elfos que vão: você não pode sequer mais obter um bom Senhor do Escuro. Qualquer que seja a visão que temos como a unidade por trás da visão trágica de Tolkien e, no entanto, dizem respeito à sua política e estética, a tragédia da desordem cotidiana da Terra Média, confere uma poderosa melancolia lamentavelmente ausente em muito do que seguiu. Isso merece ser celebrado e cultivado.” 

    (…)

     “Podem falar o que quiser de Tolkien, mas o fato é que ele criou bons monstros. Shelob, Smaug, o Balrog… Com seus espantosos nomes e a descrição vivaz de suas malevolências. Ninguém mais pode descrever sobre aranhas gigantes a não ser através de Shelob, todos os dragões são agora auxiliares. E assim por diante.” 

    A terceira razão está justamente aí, mas mais precisamente no Monstro na Água: o fato de Tolkien utilizar a técnica de esconder mais do que revelar é o que garante o diferencial aqui. Sabemos muito pouco sobre a criatura de muitos braços que habita o lago em Moria. E isto é o que a torna sobrenatural e fantástica, a incerteza que paira sobre a criatura só a torna mais forte e mítica.

    A quarta razão remete a Alegoria. E talvez agora, os fãs mais afoitos devem estar pensando que este cara é doido afinal Tolkien sempre falou que sua obra não era alegórica e sim que possuía uma aplicabilidade variada ao pensamento e à experiência do leitor. É, é justamente por aí que Miéville passeia. Segundo ele, a obra de Tolkien é rica em metáforas. E aqui cabe explicar justamente a diferença entre alegoria e metáfora: a última é fecunda, polissêmica, geradora de significados, mas evasiva de estabilidade; a alegoria é fecunda e interessante em grande parte, até que falha. Ao negar a alegoria, Tolkien recusa a noção de que uma obra de literatura é de certa forma redutora, principalmente, exclusivamente, ou mesmo “sobre” qualquer outra coisa, de forma restritiva e precisa.

    “O problema não é o fato de que a alegoria exagere inutilmente sobre o ‘significado’ de uma história ‘pura’, mas sim o fato de que ela a reduz criminalmente.
    Se Tolkien iria seguir todo o caminho com este argumento não é o ponto aqui: a questão é que o seu “desagrado cordial” é absolutamente fundamental para o projeto de criação de uma ficção fantástica viva e irredutível em si, tornando a ficção digna deste nome.”

    A última razão, mas não menos importante é a Subcriação:
    E na falta de palavras que melhor pudessem explicar o que o termo significa, recorro às palavras de Tolkien sobre o assunto.

     “(…)A filologia foi destronada do lugar elevado que ocupava neste tribunal de inquérito. A opinião de Max Müller, a visão da mitologia como “doença da linguagem”, pode ser abandonada sem remorso. A mitologia não é nenhuma doença, porém pode adoecer, como todas as coisas humanas. Da mesma forma alguém poderia dizer que o pensamento é uma doença da mente. Estaria mais próximo da verdade dizer que as línguas, em especial as européias modernas, são uma doença da mitologia. Mas ainda assim a Linguagem não pode ser descartada. A mente encarnada, a língua e o conto são contemporâneos em nosso mundo. A mente humana, dotada dos poderes de generalização e abstração, não vê apenas grama verde, discriminando-a de outras coisas (e contemplando-a como bela), mas vê que ela é verde além de ser grama. Mas quão poderosa, quão estimulante para a própria faculdade que a produziu, foi a invenção do adjetivo: nenhum feitiço ou mágica do Belo Reino é mais potente. E isso não é de surpreender: tais encantamentos de fato podem ser vistos apenas como uma outra visão dos adjetivos, uma parte do discurso numa gramática mítica. A mente que imaginou leve, pesado, cinzento, amarelo, imóvel, veloz também concebeu a magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria o chumbo cinzento em ouro amarelo e a rocha imóvel em água veloz. Se era capaz de fazer uma coisa, podia fazer a outra, e inevitavelmente fez ambas. Quando podemos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, já temos o poder de um encantador em um determinado plano, e o desejo de manejar esse poder no mundo externo vem a nossa mente. Isso não significa que usaremos bem esse poder em qualquer plano. Podemos pôr um verde mortal no rosto de um homem e produzir horror, podemos fazer reluzir a rara e terrível lua azul, ou podemos fazer com que os bosques irrompam em folhas de prata e os carneiros tenham pelagem de ouro, e pôr o fogo quente no ventre do réptil frio. Mas numa “fantasia”, tal como a chamamos, surge uma nova forma: o Belo Reino vem à tona, o Homem se torna subcriador.
    Assim, um poder essencial do Belo Reino é o de tornar as visões da “fantasia” imediatamente efetivas através da vontade. Nem todas são belas, nem mesmo salutares, certamente não as fantasias do Homem decaído. E ele maculou os elfos que têm esse poder (em verdade ou fábula) com sua própria mácula. Este aspecto da “mitologia” – a subcriação, não a representação ou interpretação simbólica das belezas e dos terrores do mundo – é muito pouco considerado, em minha opinião. (…)”

    J. R. R. Tolkien
    Sobre Histórias de Fadas, pp. 28-29.

    Que a Terra Média não foi o primeiro mundo a ser inventado é sabido. Mas a forma como esse mundo é encarado e gerido é o que representa a revolução. Anteriormente, era consenso que o mundo mágico tinha papel secundário para o enredo. Tolkien foi o arauto do que se mostrou uma inversão extraordinária: o mundo vem primeiro, e só então as histórias ocorrem, dentro dele. Quer se comemore ou lamente este fato, esta forma de abordagem literária é incrivelmente poderosa.

    Miéville finaliza o seu artigo da seguinte forma:

    “Nunca faltam elogios à Tolkien, mas isso não é razão para não repetir aqueles mais merecidos, ou, mais ainda, de salientar a razões negligenciadas por justificados e fervorosos elogios.”

    Talvez Miéville ainda não tenha se dado conta, mas parece-me que ele também já está sendo “fisgado” pela obra do professor. E ter um autor reconhecido elogiando a obra tolkieniana não pelos aspectos aos quais estamos mais acostumados e sim por outros menos alardeados é sem dúvida nenhuma muito representativo.

    Algumas informações sobre o autor:
    China Miéville é inglês, escritor de ficção fantástica e membro do Partido Socialista Operário. É autor dos romances Rei Rato, Perdido Street Station, The Scar e Iron Council. Pertence a um grupo de escritores por vezes chamado de Weird Fiction (“Ficção Estranha”), os quais conscientemente tentam manter-se longe das fantasias do gênero Tolkien.

    Vocês podem ler o artigo de China Miéville na íntegra em seu blog Omnivoracious

    Fontes:
    Tolkien Library
    J.R.R. Tolkien. Sobre Histórias de Fadas. pp. 28-29.

  • Obras de Tolkien vira tema de estudo em psicanálise.

    Este trabalho se originou da clínica com sujeitos adolescentes e de suas elaborações durante o processo de análise e da leitura da obra de J.R.R Tolkien "O Senhor dos Anéis". Não é pretensão interpretar ou fazer uma análise desse livro ou do seu filme, mas pontuar as identificações dos adolescentes com as situações vividas pelos atores, articular a ficção de Tolkien com a adolescência e demonstrar como a escuta do psicanalista pode propiciar ao sujeito a capacidade de criar nesse período "em que impera a masturbação e a morgação".

     

      A clínica da vintolescência1, 2

    Gladston dos Santos Silva – Grupo de Estudos Psicanalíticos – Grep

    RESUMO

    Articula a ficção de Tolkien em "O Senhor dos Anéis" com a adolescência e reflete como o psicanalista pode causar o sujeito, estimulando a capacidade de criação nesse momento "em que impera a masturbação e a morgação".

    Palavras-chave: Sexualidade infantil, Adolescência, Falo, Pulsão repetição, Gozo, Inconsciente, Clínica psicanalítica.

    ABSTRACT

    This text presents an articulation between the book The Lord of the Rings, written by Tolkien, and the adolescence. Likewise, it is discussed how a psychoanalyst may cause the subject, stimulating his or her capacity of creation in a period that masturbation and "morgação" make a kingdom.

    Keywords: Infantile sexuality, Adolescence, Phallus, Instinct, Repetition, Enjoyment, Unconscious, Psychoanalytic practice.

    Este trabalho se originou da clínica com sujeitos adolescentes e de suas elaborações durante o processo de análise e da leitura da obra de J.R.R Tolkien "O Senhor dos Anéis".  Não é pretensão interpretar ou fazer uma análise desse livro ou do seu filme, mas pontuar as identificações dos adolescentes com as situações vividas pelos atores, articular a ficção de Tolkien com a adolescência e demonstrar como a escuta do psicanalista pode propiciar ao sujeito a capacidade de criar nesse período "em que impera a masturbação e a morgação"3.

    Nesta articulação privilegiaremos a noção de falo, conceito central na teoria psicanalítica.

    Com a estréia do filme em Belo Horizonte, iniciou-se na fala dos adolescentes comentários sobre "a sociedade dos anéis, a expedição de Bilbo e o encontro do ‘Um anel’, as dificuldades e aventuras vividas por Frodo em sua viagem com o ‘Um anel’, as mulheres maravilhosas, e os seus encontros com os homens. As identificações com o mago Gandalf, com o Elfos Légolas e até mesmo com o repugnante Gollum".

    " O Senhor dos Anéis" é uma obra de ficção de John Ronald Reuel Tolkien. É alternadamente cômica, singela, épica, monstruosa e diabólica. A narrativa desenvolve-se em meio a inúmeras mudanças de cenário e de personagens num mundo imaginário absolutamente convincente em seus detalhes.

      Tolkien criou uma nova mitologia, um mundo inventado que demonstra possuir um poder de atração atemporal. Tanto o filme quanto a adolescência retratam uma travessia, na qual os aventureiros se confrontam com perigos de todas as ordens. No filme são os Trolls, Orcs, Elfos, Dragões, etc. Na adolescência são as mudanças fisiológicas produzidas na puberdade. O corpo em transformação prepara-se para exercer a função de reprodução, o encontro com o outro sexo, o novo posicionamento no mundo onde os adolescentes devem desligar-se dos modelos identificatórios da infância, assumir o seu desejo, por sua própria conta e risco e, marcar sua entrada no mundo adulto. Em nossa cultura essa passagem é um verdadeiro enigma.

    Segundo Freud, o sofrimento humano acontece no corpo, no mundo externo e nas relações com os outros. Na adolescência, esse sofrimento ocorre intensamente, já que acomete as três esferas simultaneamente. Tanto o filme quanto a adolescência são reedições do passado. Para melhor compreensão do filme "O Senhor dos Anéis" é necessário ler "O Hobbit", livro precursor da tríade. Ele retrata a saída de Bilbo (tio de Frodo) do conforto do Condado, chegando até a montanha solitária em busca do tesouro perdido, passando por momentos de grande perigo. Bilbo encontra "Um anel" que, ao ser colocado no dedo, o deixa invisível. O filme começa com Frodo recebendo das mãos do tio esse anel, que lhe dá o poder de tornar-se invisível, o que o retira do campo de visão do outro fazendo o adolescente acreditar que tem o falo.

    Em 1905, nos "Três Ensaios", Freud elabora a sexualidade infantil abrindo um amplo leque que decide o futuro de toda sexualidade humana. "Portanto, o que se dá na adolescência em parte já vem pré-formado nas etapas anteriores, ou seja, na infância, na latência e na puberdade"4. Nessa situação de conflito, nada melhor do que lançar mão de um objeto que torne o sujeito pleno, completo, perfeito e total. A noção de falo aparece tardiamente em Freud, no texto "A Organização Genital Infantil" (1923), na qual a "característica principal dessa organização genital infantil é sua diferença da organização genital do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um &oac
    ute;rgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo"
    5.Foi com Lacan, em "A significação do Falo",(1958), que a noção dele adquire um status central na teoria psicanalítica: "O falo é um significante, um significante cuja função, na economia intrasubjetiva da análise, levanta, quem sabe, o véu daquela que ele mantinha envolta em mistérios. Pois ele é o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante"6.

    Em 1972-1973 no Seminário Mais, Ainda, Lacan elabora o conceito falo em duas vertentes: função fálica e gozo fálico. Segundo ele a primeira, é a que inaugura a falta. Para a criança, ter o amor e a atenção da mãe é muito "precioso". Ela descobre que não é tudo para a mãe, que não pode completá-la, e que sua mãe deseja algo além dela. O falo aponta sempre para esse lugar vazio. Ela, portanto, é o significante da falta, é aquilo que vetoriza o desejo da mãe e da criança, que regula o ser ou não ser, o ter ou não ter. O gozo fálico é aquilo que sai do corpo e vai pela via do significante, delimitando o prazer do homem e marcando o desencontro entre os sexos.

    Percebemos, portanto, que o conceito de falo implica um critério de valor. O sujeito dá um valor fálico a determinados objetos.  Hugo Bleichmar, em Introdução ao Estudos das Perversões, cita uma metáfora, tomada de Lacan, para ilustrar a relação de poder entre as pessoas: é a brincadeira de passar o anel. "O valor que toma uma das pessoas no jogo depende do lugar onde o anelzinho esteja escondido. Este é o que determina que pessoa adquire um valor especial. As pessoas em si, pelo que são, não se diferenciam umas das outras em relação ao jogo. Só pelo fato de que cai em poder de uma delas, o anelzinho adquire um status particular"7.Tanto no filme quanto na adolescência os personagens lutam para defender o anel. "O um anel – para a todos dominar"

    8. Anel como representante do falo. Em sua última jornada, Frodo chega na montanha da perdição. Reivindica o anel para si e o coloca no dedo. Gollum rouba-lhe o anel: "precioso, precioso, precioso! gritava Gollum. Meu precioso! O meu precioso! E assim, no momento em que erguia os olhos para se regozijar com sua presa, deu um passo grande demais, tropeçou, vacilou por um momento na beirada, e então com um grito agudo caiu. Das profundezas chegou seu último gemido, precioso, e então ele se foi"9."Bem, este é o fim, (…). E ali estava Frodo, pálido e exausto, e apesar disso era Frodo novamente; agora em seus olhos só havia paz; nem luta de vontade, nem loucura, nem qualquer temor. Seu fardo fora levado"10.

    Na adolescência o sujeito oscila entre Ser ou não Ser e Ter ou não Ter o falo. Ser o filhinho da mamãe, ter um futuro promissor, uma profissão, se dar bem na vida ou só ter tamanho.

    " Ora minha mãe me trata como criança, ora como adulto. Não sou criança nem adulto. Acho que não sou nada" (Relato de um adolescente). Essa oscilação própria do sujeito adolescente o deixa confuso na elaboração de seu desejo.

    Ao analista cabe manejar a transferência, causando a continuidade do discurso, propiciando ao sujeito suportar melhor suas frustrações, diminuir suas identificações, tornando o objeto menos enganador.

    Em análise percebem que não têm o anel, nem o cajado poderoso de Gandalf. Não são bonitos como Legolas nem horríveis como Gollum, são sujeitos de desejo, portanto, seres de falta.

    O filme acaba, a adolescência fica na lembrança, como uma jornada repleta de fantasmas e monstros, e o sujeito percebe que "mancar não é pecado".

    Bibliografia

    BLEICHMAR, Hugo. Introdução ao estudo das perversões: a teoria do Édipo em Freud e Lacan. Trad. Emilia de Oliveira Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

    FINK, Bruce. O sujeito lacaniano. Entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

    FREUD, Sigmund. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago,1990.

    FREUD, Sigmund. A organização genital infantil: uma interpolação da teoria da sexualidade. ESB, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago,1990.

    LACAN, Jacques. Lacan. A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 937 p.

    LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 201p.

    NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

    NASIO, Juan-David. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

    TOLKIEN, J.R.R. O senhor dos anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

    TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

    SILVA, Gladston dos Santos. O que fica no ficar do Adolescente. Vorstellung, ano 3, n. 3, maio 1999/2000. Publ. do Grupo de Estudos Psicanalíticos – Grep.

    1 Vintolescência foi o termo usado por Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis", para nomear "os anos irres
    ponsáveis entre a infância e a maioridade".

    2 O ensaio que originou este trabalho foi apresentado na jornada do GREP em out. 2002.
    3 Termo usado por um adolescente para expressar o "ficar à toa, o não fazer nada, a inutilidade".
    4 SILVA, Gladston dos Santos. O que fica no ficar do Adolescente. Rev. Vorstellung, ano 3, n. 3, maio 1999/2000. p. 55. Publ. do Grupo de Estudos Psicanalíticos – Grep.
    5 FREUD, Sigmund. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. ESB. V XIX, 1990, p.180.
    6 LACAN, Jacques. A significação do falo. In: Escritos, 1998, p. 697.
    7 BLEICHMAR, Hugo. Introdução ao estudo das perversões: a teoria do Édipo em Freud e Lacan, 1984, P. 19.
    8 Filme O Senhor dos Anéis – A sociedade do Anel. Baseado no livro de J.R.R Tolkien, dirigido por Peter Jackson, 2002.
    9 TOLKEEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis, 2002, p.1003.
    10 Idem.

    Fonte: Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – www.pepsic.bvs-psi.org.br

     " Só Tolkien explica."

  • Os Senhores da Tradução!

    A partir do estudo de versões do livro O senhor dos anéis em língua portuguesa, dissertação mostra como os tradutores também imprimem sua personalidade no texto que produzem. Analisar os numerosos fatores envolvidos na tradução de uma obra literária, levando em conta a perspectiva de uma consagrada tradutora, é o objetivo da dissertação de mestrado de Patrícia Mara da Silva. A pesquisa, intitulada O senhor dos anéis – a tradutora na obra traduzida, foi apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da UNESP, campus de São José do Rio Preto.

     

      O estudo foi orientado pela docente Cristina Carneiro Rodrigues e focaliza a tradução feita do inglês para o português por Lenita Maria Rímoli Esteves do livro The lord of the rings (O senhor dos anéis), do escritor John Ronald Reuel Tolkien. Para Patrícia, o tradutor está inevitavelmente presente no texto que produz. "Meu trabalho, ao identificar como isso ocorre, promove uma aproximação entre a reflexão teórica sobre a tradução e a prática efetiva dos tradutores", diz.

    Para isso, partiu de entrevistas fornecidas por Lenita à imprensa e trabalhos teóricos da tradutora, entre eles sua dissertação de mestrado, intitulada As bruxas de Macbeth no ‘original’ e em quatro traduções brasileiras: a inquisição das diferenças (1992) e a tese de doutorado A (im)possível tradução de Finnegans Wake: uma investigação psicanalítica (1999), ambas concluídas na Unicamp. Patrícia comparou, ainda, a tradução de Lenita de O senhor dos anéis e as realizadas por Antônio Ferreira da Rocha (livros 1 e 2) e Luiz Alberto Monjardim (livros 3 a 6), para a primeira publicação brasileira da obra, lançada entre 1974 e 1979.

    O desafio dos nomes

    Lenita traduziu o texto em prosa de O senhor dos anéis (os versos foram traduzidos por Almiro Pisetta) com a revisão técnica de Ronald Kyrmse, especialista nos escritos de J. R. R. Tolkien. Quando questionada a respeito de problemas e/ou desafios que a linguagem do autor lhe oferecia, ela mencionou principalmente os nomes de personagens e lugares. Nesse aspecto, a tradutora deixa claro que seguiu as "diretrizes sugeridas" por Tolkien em Guide to the names in ‘The Lord of the Rings’ (Guia de nomes em ‘O Senhor dos Anéis’), em que o escritor explica a origem desses nomes e sugere como eles devem ser traduzidos. "Pude então constatar que foi desenvolvido ali um trabalho de invenção filológica bastante acurado", conta Lenita.

    Tolkien enfatiza que os significados que ele atribui aos nomes em seu livro podem e devem ser preservados pelos tradutores. "Lenita disse que pôde evitar e corrigir, graças ao livro, muitas associações que poderiam ser equivocadas", informa a pesquisadora do Ibilce. É o caso da tradução de gladden fields. A expressão não se relaciona com o termo glad ("alegre"), como se poderia pensar. Tolkien explica que glad ou gladden se origina de glaedene, do inglês arcaico, e corresponde à flor-de-lis, comum nos escudos e insígnias medievais. "Portanto, traduzir gladden fields por ‘campos alegres’, como fez a tradução portuguesa, cria uma inconsistência para a história, já que tais campos foram alvo de uma das mais sangrentas batalhas de toda a narrativa", analisa a pesquisadora do Ibilce. "Lenita optou por ‘Campos de Lis’."

    Tolkien, portanto, apresenta vários nomes e suas respectivas etimologias, remetendo à língua inglesa, a outras línguas germânicas e a línguas criadas por ele mesmo, como o quenya e o sindarin. Também fornece indicações de como esses nomes devem ser traduzidos.

    Resíduos da tradução

    Na maioria dos casos, Lenita seguiu as instruções de Tolkien. É o caso de Magote, hobbit que vivia na região do Pântano, cujo nome no texto original é Maggot, palavra que, em inglês, pode significar larva de mosca ou inseto. Em seu guia, entretanto, o escritor explica que esse nome não era para ter sentido algum a não ser soar como um nome de hobbit. Por acidente, maggot é uma palavra de língua inglesa. Sendo assim, não deve, para o autor, ser traduzido. Sem as instruções de Tolkien, a tradutora poderia ter passado o nome do fazendeiro por "Larva" ou qualquer outra coisa do tipo. No entanto, seguindo o guia, Lenita traduziu o nome por "Magote". "Apenas o adaptou à língua portuguesa por meio da omissão de uma letra ‘g’ e do acréscimo de uma letra ‘e’ no fim do nome", explica Patrícia.

    Em outros casos, a tradutora seguiu a sua própria interpretação. É o caso de "Buckland", lugar onde moram os hobbits da família Brandebuques. Tolkien declara que esse nome deve conter a palavra buck (animal) ou o inglês arcaico bucc ("veado macho") ou bucca ("bode"), embora Buckland, um nome de lugar em inglês, seja derivado de "bookland", terra originalmente mantida graças a um documento oficial. Nesse caso, Lenita traduz Buckland por "Terra dos Buques". Segundo Patrícia, essa opção buscou preservar o som de buck e a idéia de land ("terra"). "O nome Terra dos Buques, no entanto, possibilita a leitura de que esse era um lugar em que moravam os Buques, o que não procede, já que os habitantes do lugar eram os Brandebuques", comenta.

    A autora da dissertação aponta também os "resíduos singulares" do processo de tradução. "São ocorrências que mostram a presença do tradutor na tradução. Percebe-se a sua existência quando se faz o cotejo do original com a tradução ou quando se tem acesso a uma outra tradução do mesmo original", afirma. Como exemplo, Patrícia cita um trecho do prólogo do livro. Os hobbits são descritos como inclined to be fat. Na tradução de Antônio Ferreira da Rocha, aparecem como tendo "certa propensão à obesidade" e, na tradução de Lenita, surgem com "tendência a acumular gordura na barriga". "Essa pequena diferença – a localização da gordura – não constitui um erro, mas acrescenta ao original uma informação que não pode ser a ele atribuída", diz a autora do mestrado.

    A pesquisa apresentada no Ibilce, em síntese, concebe a tradução como produção de conhecimento, não como uma forma mecânica de transporte neutro de significados de uma língua para outra. "O tradutor inevitavelmente interfere no jogo de tradução de um texto de uma língua para outra", conclui Patrícia.

    Fonte: UNESP – Oscar D’Ambrosio

  • Hobbits, Elfos e Magos

    Há 25 anos, Michael Stanton estuda e dá aulas de Literatura Inglesa na Universidade de Vermont, em especial sobre Dickens, Melville e J.R. Tolkien. Com esta autoridade, ele reuniu o que sabe sobre o Senhor dos Anéis e escreveu Hobbits, Elfos e Magos, que a Frente Editora traz aos leitores brasileiros, já que vivemos o advento de Tolkien no cinema. Para Stanton, o livro do escritor inglês é um santuário de lingüística, um mito heróico, fábula religiosa, uma obra literária, recriação da Europa pré-cristã, um romance antibélico. Tolkien levou 17 anos para escrevê-lo e foi editado na Inglaterra em 1954 por um aparentemente convencional professor de inglês, órfão de pais desde os 12 anos, católico, pai de quatro filhos e conhecido como um inventor de línguas (antes de entrar na adolescência, Tolkien tinha criado dois ou três idiomas e durante sua vida criou mais uma dúzia pelo menos). Tudo começa na palavra, pois afirmou Tolkien que "a invenção do idioma é o fundamento… O nome vem em primeiro lugar e a história se segue".

     

      O fato é que ele tinha um fantástico senso de imaginação, uma fantasia ilimitada e seus personagens – hobbits, elfos e magos – têm características próprias e sofrem os efeitos de uma peculiar geografia moral: o bem flui do oeste e a ele volta… O ataque ao mal vem sempre do leste. A Terra-Média, cenário da história, fica entre as forças do bem e do mal, campo de batalha de O Senhor dos Anéis. Quem leu e se apaixonou pelos personagens não vai largar hobbits, elfos e magos, pois que Stanton decifra em grande parte a recriação do mundo de J.R. Tolkien e responde às centenas de indagações a ele trazidas por seus alunos, durante todos os anos em que participou de discussões e deu aulas sobre o tema.

    Seguem alguns elementos da vida de Tolkien. Podemos observar como os diferentes eventos que marcaram sua história se encaixam na criação de sua obra. John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 3 de janeiro de 1892, o primogênito de Arthur e Mabel (Suffield) Tolkien, em Bloemfontein, África do Sul, onde seu pai trabalhava para o Bank of Africa. Depois de uma longa e produtiva carreira dedicada largamente aos estudos literários, ao ensino e à escrita, J.R.R. Tolkien morreu em 2 de setembro de 1973, na cidade costeira inglesa de Bournemouth. Em seguida ao nascimento de Hilary, irmão de Tolkien, em 1894, Mabel Tolkien voltou à Inglaterra com os meninos, onde, em fevereiro de 1896, recebeu a notícia da morte do marido. Tolkien cresceu em um vilarejo simpático e à moda antiga chamado Sarehole. Sua agradável qualidade pastoral e os rústicos cidadãos ajudaram a moldar a visão que Tolkien tinha da zona rural do centro da Inglaterra, conhecida como the Shire, e de seus habitantes.

    Sua infância conteve mais um evento trágico — a morte da mãe quando tinha 12 anos. Entretanto, ele guardou sua lembrança e nunca se esqueceu que foi ela quem o apresentou à fé católica romana e ao estudo de idiomas, duas áreas que o sustentaram, de formas completamente diferentes, pelo resto da vida. Após a morte de Mabel, Ronald e Hilary passaram à guarda do padre Francis Morgan e foram criados por uma tia. Tolkien formou-se pelo Exeter College de Oxford, em 1915 e, praticamente em seguida, serviu na Primeira Guerra Mundial como segundo-tenente dos fusileiros de Lancashire. Foi durante uma licença médica para se recuperar da febre das trincheiras, em 1917, que Tolkien colocou no papel os primeiros elementos de um ciclo de histórias, dentre as quais aquelas que viriam a formar O Silmarillion, o primeiro broto da grande árvore da Terra-média.

    Entre 1918 e 1920, foi um dos vários editores assistentes do OED, como é carinhosamente chamado o Oxford English Dictionary. De 1920 a 1925, foi professor assistente e depois professor de inglês na Universidade de Leeds. De 1925 a 1945, foi membro do conselho da Pembroke College, Oxford, com o título de Professor Rawlinson and Bosworth de Anglo-Saxão. Em 1945, mudou de faculdade e tornou-se membro da Merton College, com o título de Professor Merton de Língua e Literatura Inglesas até sua aposentadoria em 1959 (pouco antes que a Universidade de Oxford tenha revisado e melhorado seu programa de pensão, lembrou Tolkien pesarosamente). É interessante destacar que, embora tenha acumulado rica coleção de honrarias acadêmicas, Tolkien nunca estudou além do grau de bacharel.Casou-se com Edith Bratt em 1916, com quem teve três filhos e uma filha (a quem escrevia deliciosas cartas anuais do Papai Noel, que foram recentemente reunidas e publicadas); era católico devoto em um país e instituição famosos por suas tendências anti-católicas; era amigo íntimo de C.S. Lewis e outros graduados da Universidade de Oxford.

    Se quisermos, podemos analisar a relevância que esses dados têm no contexto de O Senhor dos Anéis. Sua data de nascimento: é importante ter em mente que Tolkien já era adulto antes do início da Primeira Guerra Mundial. Até certo ponto, seu pensamento e sensibilidade foram produtos da cultura vitoriana tardia. Eles se formaram em uma era, talvez não mais inocente que a nossa, mas certamente mais esperançosa. Tolkien dava pouca importância à maioria das informações biográficas, mas considerava importante enfatizar que "Nasci em 1892 e vivi no Condado em uma época pré-mecânica." A experiência da guerra: como Tolkien escreve no "Prefácio" do Senhor dos Anéis, "Em 1918, todos os meus amigos íntimos, com a exceção de um, estavam mortos." A Primeira Grande Guerra teve um custo terrível à geração de Tolkien e sente-se que O Senhor dos Anéis é, entre outras coisas, uma história anti-bélica. Ao mesmo tempo, é necessário evitar, resistir e mesmo combater uma leitura puramente alegórica: Mordor não é a Alemanha nazista, a pequena província de Tom Bombadil não é a Suíça etc. Tolkien fala de "aplicabilidade" (I, XV) — o comportamento do Mal é repetidamente o mesmo em diversos tempos e lugares; todas as lutas pelo poder têm características em comum.

    A editoração do OED e os cargos de professor: O Senhor dos Anéis é, no sentido mais básico, sobre idiomas. A qualidade da língua de um povo é um ponto de referência moral na narrativa: a língua dos Elfos é musical e bela (aos nossos ouvidos); os Elfos são bons. O idioma dos Orcs é duro e gutural; os Orcs são maus. A relação entre o grande valor moral e a beleza da linguagem é implicitamente causal: os Elfos muito fizeram e sofreram com o passar das eras na Terra-média; adquiriram sabedoria, nobreza e poes
    ia e, assim, seus idiomas transformaram-se em instrumentos de grande expressividade. Os Orcs, criaturas deformadas nascidas da escuridão, não possuem inteligência, mas sim astúcia, e são brutais e traiçoeiros. Sua áspera linguagem expressa essas qualidades.

    As histórias da Terra-média iniciaram-se a partir do amor pelas línguas, como Tolkien declarou: "A invenção do idioma é o fundamento… Para mim, o nome vem em primeiro lugar e a história se segue." Para Tolkien, o início está na palavra. É importante considerar como isso vai fundo. Inventar um planeta ou país imaginário tem suas dificuldades criativas, é claro, mas inventar uma língua, com vocabulário, sons, regras e sintaxe é uma operação psicologicamente extenuante.

    Mas esse era o ofício de Tolkien: ele já tinha inventado dois ou três idiomas antes de entrar na adolescência e, durante sua carreira, inventou pelo menos uma dúzia de outros, baseando-se ou influenciando-se pelas línguas que conhecia ou que estava aprendendo. Já falava pelo menos quatro idiomas quando chegou ao colegial.Segue abaixo uma lista das línguas que Tolkien conhecia ou estudou, além do grego, latim, lombardo e gótico: • entre as línguas germânicas: nórdico ou islandês antigo, sueco, norueguês e dinamarquês modernos, inglês antigo ou anglo-saxão, vários dialetos do inglês médio, alemão e holandês modernos;• entre as línguas românicas: francês, espanhol e italiano; • em outros grupos lingüísticos: galês moderno e medieval, russo, finlandês (as duas grandes influências no desenvolvimento da língua dos Elfos foram o galês e o finlandês). Apesar de estes fatos atestarem o contrário, traçar paralelos entre a vida e a obra tem utilidade limitada. Entretanto, a amizade de Tolkien e C.S. Lewis deve ser mencionada. Eles foram grandes amigos durante muitos anos, embora tenham se afastado nos últimos anos da vida de Lewis. Tolkien sempre relatou que foi a confiança de Lewis no valor de O Senhor dos Anéis e a sua insistência em que Tolkien desse continuidade à obra que o fizeram completar o livro.

    Tolkien era um homem claramente trivial: roupas desalinhadas, salvo o brilhante colete que usava ocasionalmente, comida corriqueira, uma casa inexpressiva, quadros comuns nas paredes. Ele tinha muito pouco tempo ou utilidade para a moda ou o bom gosto.Tudo acontecia no interior, na imaginação: ele nunca se interessou por viagens, porque, de uma certa maneira, já tinha viajado. "Quando se escreve uma história (como O Senhor dos Anéis), não a partir de folhas de árvores que ainda temos que observar…, mas que cresce como uma semente na escuridão, que se alimenta das emboloradas folhas da mente, de tudo que já foi visto ou pensado ou lido e que há muito foi esquecido…".

    Apesar de sua timidez, Tolkien era um professor fascinante. Anglo-saxão não é a matéria mais glamourosa, e ainda assim, um de seus alunos, J.I.M. Stewart (Michael Innes) escreveu: "Ele transformava um auditório em um salão de festas; ele era o bardo e nós, os convidados que se alimentavam atentamente de suas palavras." Tolkien também se destacou como estudioso. Escreveu os primeiros comentários críticos do poema em inglês antigo, Beowulf, e foi um dos primeiros eruditos a tratar esse poema épico como uma obra de arte e não como uma mina de ouro para lingüistas pedantes. Com E.V. Gordon, editou vários textos medievais. O Senhor dos Anéis é um texto altamente literário, como exploraremos mais adiante.

    Ainda assim, Tolkien completou um obra menos extensa do que poderia ter feito, pois, entre seus traços de personalidade, salientam-se a procrastinação e o perfeccionismo. É por isso que O Senhor dos Anéis levou 17 anos para ser escrito e publicado e O Silmarillion só viu a luz do dia postumamente, quando o filho Christopher o tomou em mãos após Tolkien ter trabalhado nele por mais de sessenta anos. Quando os Hobbits apareceram pela primeira vez?Desde o início, os Elfos apareceram na obra imaginativa de Tolkien. Por outro lado, os Hobbits foram criados muito mais tarde, no final dos anos 20, ou início dos 30, quando Tolkien corrigia uma pilha monótona de provas. Sem pensar, ele escreveu no alto
    de uma delas: "em um buraco no solo vivia um Hobbit".

    Conforme disse, o nome veio primeiro e depois a história. Começou então a desenvolver informações sobre os Hobbits: o que eram, em que tipo de lugar viviam, quais aventuras seriam surpreendentes para eles ou para um deles. Esse esforço resultou em O Hobbit, publicado em 1937. Quando falava sobre O Hobbit, Tolkien buscava corrigir dois mal-entendidos: O livro não foi escrito simplesmente para crianças apesar dos "‘apartes’ para os leitores juvenis", como o biógrafo de Tolkien, Humphrey Carpenter, os chama. Tolkien "começou a se aborrecer com eles e passou a acreditar que tratar as crianças com condescendência é um erro para um escritor". De fato, o paternalismo e o preciosismo que prejudicam O Hobbit estão ausentes em O Senhor dos Anéis; Tolkien aprendera a lição. Como respondeu a outro indagador, se O Hobbit parece "‘vestido’ para crianças em estilo ou forma, sinto muito. E as crianças também devem sentir".

    Hobbits não são pessoas pequenas. Não se deve confundí-los com os mini elfos e fadas que se escondem nas prímulas silvestres, nem com duendes ou nenhuma outra raça de seres cuja essência é ser "uma gracinha". São pessoas de verdade e sua concepção se originou da experiência de Tolkien com a vida no campo. Ele disse: "Os Hobbits são simplesmente ingleses rústicos diminuídos no tamanho para refletir o pequeno alcance da sua imaginação, mas não o pequeno alcance de sua coragem ou força latente."

    Embora este estudo pretenda concentrar-se quase que exclusivamente em O Senhor dos Anéis, é apropriado dispensar algumas palavras ao Hobbit. Há pouca continuidade entre a primeira e a segunda narrativa. O anel que Bilbo encontrou ou ganhou sob a montanha torna-se O Anel. Os próprios Hobbits, e Gollum e Gandalf, fornecem associações, mas as dessemelhanças são mais abundantes que as semelhanças: os locais são diferentes, a maioria dos personagens muda (em O Senhor dos Anéis, a raça dos Anões tem apenas dois representantes), a elaboração de paisagem e ambiente é extremamente diferente. A natureza do enredo é outra: o que acontece com Bilbo na obra anterior é uma série de aventuras de pequena escala, enquanto o destino de Frodo e seus amigos, no livro posterior, faz parte de uma batalha mundial.

    E, acima de tudo, confirmando a declaração de Tolkien, o tom é diferente. Há maior seriedade em O Senhor dos Anéis; nele, as implicações morais são sentidas mais intensamen
    te e o leitor não faz parte de uma "brincadeira íntima" com crianças imaginárias em volta de uma lareira ilusória. Personagens que aparecem nos dois livros, como Gandalf, parecem ter pelo menos uma dimensão a menos em O Hobbit. O histórico autoral e editorial. Como acontece ao longo da mitologia criada por Tolkien, partes deste conto já existiam no início de sua carreira; fragmentos de O Senhor dos Anéis antecederam os esforços conscientes de Tolkien de contar uma história longa. O sucesso de O Hobbit no Natal de 1937 levou o editor Allen and Unwin a incentivar Tolkien a escrever uma seqüência.

    A composição de O Senhor dos Anéis como o conhecemos começou logo depois do lançamento de O Hobbit. Finalmente, 17 anos e 600.000 palavras mais tarde, O Senhor dos Anéis surgiu em 1954 e 1955. A propósito, a obra não é uma trilogia, o que implicaria que cada volume se sustentaria sozinho, podendo ser lido separadamente e fazer sentido. Ela é, na verdade, uma longa obra de ficção em três volumes (que é a forma como eram publicadas obras de autores como Dickens, no século XIX). O formato em três volumes é uma conveniência para o editor: ele não somente torna a tarefa do leitor menos volumosa, mas também garante três momentos separados de críticas. Depois de vários capítulos, começando com "Uma festa muito esperada" (todos aprovados pelo jovem Rayner Unwin), ficou claro que a história tinha mudado de direção. Segundo Humphrey Carpenter, "Tolkien não queria mais escrever histórias como O Hobbit; ele queria dar início a um trabalho sério: sua mitologia."

    Em todo caso, a guerra, seus deveres acadêmicos, mudanças de carreira e talvez a simples inabilidade de ver onde a história estava indo (ver comentários de Tolkien abaixo), impediram a finalização de um primeiro rascunho até o final de 1947. Então, a história tinha de ser revisada e, "na verdade, em grande parte reescrita" (I, XIV) e passada a limpo. Tolkien e Allen and Unwin também tiveram alguns desentendimentos. O autor ofereceu o original à editora Collins, que no final o recusou, e Tolkien voltou a negociar com sua primeira editora. Rayner Unwin sempre acreditou na história, mas, claramente, ela não seria o best-seller juvenil que O Hobbit tinha sido. A firma concordou em publicar O Senhor dos Anéis como um item de prestígio, acreditando que, na melhor das hipóteses, venderia poucos milhares de cópias. Assim, fez-se um acordo financeiro pouco comum na indústria editorial moderna: em vez do acordo de direitos autorais normal, pelo qual o autor obtém uma porcentagem de cada cópia vendida a partir da primeira, em geral 10 a 15 por cento, Tolkien não receberia nada até que os custos de produção fossem cobertos. A partir daí, ele e a editora dividiriam os ganhos meio a meio.

    Alguns motivos que atrasaram a escrita de O Senhor dos Anéis já foram mencionados, mas vale à pena discorrer ligeiramente sobre o processo. Tolkien não fala do desdobramento da narrativa como se ele estivesse controlando ou mesmo escrevendo a história, mas sim como se a história estivesse acontecendo com ele. Ele escreveu: "a Busca essencial teve início imediatamente, mas encontrei no caminho coisas que me chocaram." Ele já conhecia Tom Bombadil e havia ouvido falar das Minas de Moria e dos Cavaleiros de Rohan, mas Passolargo, e a cidade de Bri, a Floresta Dourada de Lothlórien e a Floresta de Fangorn (entre outros) eram completamente novos. O mais estranho é que Saruman ainda não lhe havia ocorrido e, assim, não entendia por que Gandalf não ia ao encontro conforme prometido!

    Os autores em geral falam de suas criaturas dessa forma e, para a imaginação de Tolkien, ele estava quase literalmente na Terra-média. De todo modo, o livro recebeu boas críticas e a edição de capa dura teve reputação modesta na Inglaterra e nos Estados Unidos até 1965, quando a edição pirata da Ace apareceu na América do Norte. Houghton Mifflin detinha os direitos da obra de Tolkien nos Estados Unidos e as batalhas e processos legais ofereceram para O Senhor dos Anéis uma valiosa publicidade. Foi nesse momento que, no final de 1965, Ballantine Books, em acordo com Houghton Mifflin, lançou a versão de bolso autorizada e revisada pelo autor. O crescimento das vendas que se sucedeu foi o resultado não apenas do interesse público levantado pela guerra legal, mas também do boca-a-boca entre leitores. Nos dez meses seguintes ao lançamento da edição de bolso Ballantine, 250.000 cópias foram vendidas.

    No final dos anos 60, Tolkien, seu livro e personagens tornaram-se um cult nas universidades americanas. Viam-se broches e grafites com a inscrição Frodo Vive! em todos os lugares; a Tolkien Society foi formada em Harvard e o Tolkien Journal passou a ser publicado. Havia mapas, cartazes e calendários. Hoje em dia, com milhões de leitores, O Senhor dos Anéis não pode mais ser visto como um texto cult se a expressão se define por um pequeno grupo de devotos excêntricos. A influência da fantasia de Tolkien pode ser medida por dois fatos um pouco antipáticos: originou uma série de imitadores (na sua maioria mercantilistas) e tornou-se tema da crítica literária acadêmica.

    Fonte: www.ebookcult.com.br

  • Análise Psicológica de O Retorno do Rei – Parte Final

     
    Esta é a parte final de “Análise Psicológica de O Senhor dos Anéis.” Para analisar e escrever esta parte da análise procurei seguir o livro e não o filme. Pois, no livro estão relatadas importantes passagens, as quais não aparecem no filme. Informo aos que desconhecem a análise completa que, as partes referentes a “Sociedade do Anel “ ,”As Duas Torres” e a parte 1 de “O Retorno do Rei”, encontram-se aqui neste site. Qualquer dúvida, crítica ou sugestão, estejam à vontade para me enviar: rangelfabrete@gmail.com. Um grande abraço! – Rangel Roberto M. Fabrete
     
     

     
     
    O EXÉRCITO DOS MORTOS E O REI

    “Sobre a terra se estende uma sombra terrível,
    Lançando sobre o oeste longas asas de trevas.
    A Torre treme; das tumbas de reis
    a sina se aproxima. Os Mortos despertam,
    chegada é a hora dos que foram perjuros:
    junto á Pedra de Erech de pé ficarão
    para ouvir a corneta ecoar nas colinas
    De quem será a corneta? Quem irá chamar
    da dúbia meia-luz o olvidado povo?
    O herdeiro daquele a quem foi feita a jura.
    Do norte ele virá movido pela sorte.
    Seguirá pela Porta para as Sendas dos Mortos.”
    Pg 32 e 33. (21)

    Não há mais tempo ou espaço para um Aragorn cordial, ingênuo, amistoso e escapista. É tempo de conhecer suas trevas; seus talentos e o poder que existe na condição de ser o herdeiro do trono de Isildur. A jornada de todo aquele busca a meta da individuação não termina sem antes do confronto com a sombra.

    Como já vimos na trajetória de Frodo e Gandalf, após a confrontação da sombra, ambos tiveram acréscimos em suas personalidades. O confronto de ego e sombra em Passolargo aparece simbolizado em sua ida até as Sendas dos Mortos. Na confrontação do ego com a sombra os conteúdos antes reprimidos e ocultos, agora se tornam disponíveis. Estes conteúdos agora presentes na consciência irão se tornar importantes ferramentas nas decisões a serem tomadas adiante.

    O simbolismo de descer às profundezas dos mortos é um tema arquetípico,  presente em muitos temas mitológicos e ou religiosos. O herói sempre sofre algum tipo de transformação em sua catábase. O herói da mitologia grega Ulisses fora instruído de que para ter sucesso em sua jornada de volta para casa, deveria ir até o Hades, o mundo dos mortos. Lá ele receberia a orientação do sábio Tirésias a respeito do caminho a ser percorrido.

    Aragorn em sua caminhada até o mundo dos mortos receberia mais do que uma simples  orientação, receberia sua honra e seu reconhecimento de ser rei. Com todo um exército recebendo suas ordens, só o fariam por reconhecê-lo como rei. Muitas vezes consideramos muitas de nossas características e ou talentos como “mortos” em nossas personalidades, um grande engano. Algumas situações nos parecem desafios maiores do que a nossa própria capacidade, podemos nos sentir inferiores e não capacitados, assim como Aragorn.

    Porém, sempre quando enfrentarmos a nossa insegurança e o nosso medo de amadurecer e mudar, passaremos pelo conflito e o inconsciente que antes parecia tão terrível e ameaçador aos planos do ego, se torna um “grande exército aliado” para batalhas que a vida possa vir a desejar nos colocar.

    Muitas vezes, acabamos por desprezar características e ou talentos em nossas personalidades em detrimento de um autojulgamento equivocado ou para buscar aceitação da sociedade. Com Aragorn, não foi diferente. A relação com o poder que era exagerado em Isildur, de forma oposta veio a se manifestar em Passolargo. Talvez por saber do trágico fim de seu antepassado, Aragorn optou em não manter nenhum tipo de relação com o poder. Faltou discernimento. Aragorn sempre buscou distância de suas responsabilidades como rei, não poderia mais menosprezar sua capacidade e seu legado. O que Aragorn reprimiu para sombra não foi sua responsabilidade em ser rei e sim sua capacidade em ser rei.

    Que sempre possamos nos lembrar que dentro de cada um de nós, talvez exista um “exército de mortos” e é neste exército que poderemos retomar e redescobrir capacidades e ou talentos por muito tempo esquecidos pela consciência, mas não pelo inconsciente. Vimos aqui o desenrolar do conflito pessoal de Passolargo em relação a assumir sua condição de herdeiro do trono de Isildur. Agora, vamos acompanhar como se manifesta o arquétipo do rei e ou salvador no comportamento de Aragorn e no decorrer da estória.

    O RENOVO DO REI

    Um tema arquetípico que se repete em diversas mitologias e ou religiões, é o tema da sucessão universal do regente e ou sistema de governo. Um sistema de governo arcaico, ultrapassado e por vezes maligno, acaba por ser deposto ou destruído pelo seu sucessor que se torna um gestor de um novo tempo trazendo renovo e progresso ao seu povo.

    Na mitologia grega podemos ver este tema na relação de Uranos e Cronos. Cronos castra seu pai  e regente do universo Uranos, provocando a separação entre Uranos (céu) e Gaia (terra). Mediante a separação de Uranos (céu) e Gaia (terra), Cronos se torna o novo rei do Universo.

    O próprio Cronos viria a ser deposto mais tarde também por seu filho, Zeus. Cronos havia se tornado um tirano, devorador de seus próprios filhos pois temia que um deles o destronasse, como previa a profecia. O apego ao poder acabou por cegar o amor de Cronos por seus filhos e tudo que lhe interessava era tão somente o seu governo.
     
    Zeus fora ocultado por sua mãe Réia, que ao invés de entregar a Cronos o pequeno futuro regente do Olimpo, para ser devorado substitui a criança por uma pedra. O rei tirano não percebeu que havia engolido uma pedra no lugar do filho. Zeus cresceu sendo cuidado por outro casal e quando chegado o tempo, a profecia se cumpriu. Cronos fora deposto por Zeus e vomitou todos os irmãos do novo rei do universo. Zeus dá início ao reinado e logo tende enfrentar um inimigo antigo, resquício de um tempo perverso e hostil. O monstro Tifão, filho de Gaia (terra) que luta pela mãe, numa tentativa de retomar o governo do universo. Zeus vence a batalha e se consolida como o rei do universo.

    Na mitologia babilônica  o tema da disputa pela sucessão do governo tirano pelo novo regente, é representado pelo mito de Marduk e Tiamat. Tiamat a criadora de todas as coisas, criou bestas para atormentar os outros deuses podendo manter tranqüilamente seu governo tirano. Os deuses se reúnem em um banquete e proclamam Marduk como seu senhor e vingador.
    Marduk enfrenta Tiamat e a derrota. Seu triunfo é coroado pelos deuses, elegendo-o o senhor do universo. Marduk cria  mediante o corpo de Tiamat  e dos corpos dos deuses súditos da rainha tirana, o Céu, a Terra o Abismo e o Homem, para servir aos deuses.

    Todos este mitos trazem consigo o tema da necessidade de sucessão de um rei antigo que é regente de um governo tirano ou  antiquado em progresso. O tema do arquétipo do rei  ou do salvador do universo, traz consigo a necessidade de renovação.
    O rei antigo precisa ser deposto, dando lugar a um novo governo, uma nova era. Podemos observar ao longo da análise como as condutas desastrosas de dois velhos  governantes responsáveis por seus povos, vieram a conduzir o povo em desgraça.

    Primeiro Theóden  estava enfeitiçado por Saruman,  Rohan é devastada pelos orcs. Liberto do feitiço, Theóden toma a trágica decisão de levar seu povo para o abismo de Helm. Em Minas Tirith, cego pelo apego ao poder, Denethor toma decisões influenciadas pelo complexo de Cronos, levando seus dois filhos a sofrerem grandemente por conta de seu desejo de manter seu status.

    Boromir morreu e Faramir quase é assassinado pelo regente obstinado. Denethor também é o responsável direto pela destruição de Osgiliath,a cidade de Minas Tirith em sua boa parte e principalmente seu povo e exército.

    As condutas tiranas, tolas e loucas citadas são frutos da mesma semente, a falta de autoconhecimento. A falta de autoconhecimento sempre irá afetar o poder de decisão de qualquer um, imagine agora quais as proporções de decisões tomadas por governantes  sem discernimento de si mesmos. Bem, talvez basta lermos as notícias, não precisamos imaginar. É necessário que o novo rei morra e renasça e é justamente isto que acontece simbolicamnete com Aragorn na montanha das Sendas dos Mortos.

    Estes textos trazem a explicação do porque é necessário que o velho rei dê lugar ao novo rei:

    “O antagonismo, todavia, quer seja entre pai e filho, avô e neto, ou entre pai e pretendente, é sempre um combate pelo  poder, cujo desfecho é a vitória do mais jovem. Ao que parece, essa luta, de  início, entre pai e filho, fazia parte de um rito, o combate de morte que , nas sociedades primitivas, permitia ao Jovem Rei suceder ao Velho Rei.

    Todo o contexto familiar, com os problemas morais que o mesmo comporta, foi acrescentado mais tarde, quando a sucessão patrilinear se tornou a norma vigente.” M G pg 82 (22)

    Para encerrar uma pergunta: Por que o Velho Rei deve ser substituído?

    Na Odisséia, XI, 494sqq., Aquiles, quando da visita de Ulisses ao país dos mortos, mostra-se preocupado com a morte de seu pai Peleu e pergunta-lhe se ele não é desprezado pelos mirmidões, uma vez que a velhice lhe entorpece os membros. Na realidade um rei envelhecido não é apenas um soberano demissionário, mas sobretudo um ser maltratado e menosprezado.

    É que a função do rei, já que o mesmo é de origem divina, é fecundar e manter  viva e atuante sua força mágica. Perdido o vigor físico, tornando-se impotente ou não mais funcionando a força mágica, o monarca terá que ceder seu posto a um jovem, que tenha méritos e requisitos necessários para manter acesa a chama da fecundação e a fertilidade dos campos, uma vez que, magicamente, esta está ligada àquela.” M G pg 83(23)

    “Na expressão de Westrup, “o mérito pessoal é uma condição necessária para se subir ao trono dos antigos e a persistência da energia ativa é indispensável para conservar o poder real”. Donde se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se no princípio da incapacidade, por velhice, de exercer a função real. “A razão é de ordem mágica: quem perdeu a força física não pode transmiti-la à natureza por via de irradiação, como deveria e teria que fazer um rei.” M G Pg 84(24)

    “ Quanto mais recuarmos na História, tanto mais  manifesta se apresenta a divindade do rei. Até à época mais recente ainda existia o reinado pela graça de Deus. Os césares romanos já usurpavam a igualdade com Deus e exigiam o culto pessoal correspondente.

    Na Ásia Menor a realeza, de acordo com sua própria essência, se apóia toda ela muito mais em pressuposições teológicas do que em políticas. A psique do povo se revela aí como a fundamentação verdadeira e única para a realeza de Deus: o rei naturalmente é a fonte mágica do bem-estar e da prosperidade de toda a comunidade vital constituída pelo homem, pelo animal e pela planta útil; dele promana a vida e o crescimento dos súditos, o aumento dos rebanhos e a fertilidade do solo. Esse significado da realeza não é uma invenção feita de acréscimo, mas é um apriori psíquico que alcança a primitividade profunda e a pré-história, e que por isso equivale a uma revelação da estrutura psíquica. O fato de nós fazermos prevalecer os motivos racionais de finalidade representa apenas algo para a nossa maneira de conceber, mas não para a psicologia primitiva, que parte de pressuposições puramente psíquicas e inconscientes, em escala fora de toda previsão e mais elevada do que a nossa formação de imagens orientada para o que é objetivo.

    A teologia da realeza, que nos é mais conhecida e apresenta certamente o mais rico desenvolvimento, é a do antigo Egito; são essas concepções que mais penetraram no desenvolvimento espiritual dos povos do Ocidente, principalmente pela mediação dos gregos.

    O rei é uma encarnação da divindade e um filho de Deus. Nele reside a força divina da vida e da geração, o Ka, isto é, o deus gera a si próprio em sua mãe humana e nasce dela como homem-deus. Como homem-deus o rei garante o crescimento e a prosperidade do país e do povo, ao aceitar ele a sorte de ser morto quando o tempo estiver completo, isto é, quando sua capacidade generativa estiver esgotada.” Mysterium II pg 9 e 10 (25)

    De acordo com a leitura dos textos acima fica fácil de entender que o renovo e o progresso de toda a Terra Média está ligado diretamente ao sucesso de Aragorn em sua busca pela meta do processo de individuação. A saúde do povo está ligada diretamente a saúde do seu rei.

    O significado psicológico do tema da sucessão do rei, é correspondente ao sucesso ou fracasso que temos ou teremos diante da forma como lidamos  com  o desenvolvimento de nossa personalidade,em busca do Self, a totalidade.

    Se formos conservadores, antiquados ou covardes, o “nosso reino”ou seja, as nossas vidas se tornarão estéreis e secas, sem produzir nada.

    Se formos imaturos, impulsivos ou dependentes emocionais seja lá de quem for,” nosso reino entrará em crise”, necessitando sempre do auxílio e socorro de uma pessoa próxima.

    Se formos inconstantes, “nunca conseguiremos juntar tijolos” o suficiente para construirmos as nossas vidas como desejarmos.

    O inconsciente sempre irá nos incomodar de alguma forma, quando o ego estiver confortável ou apegado demais a uma determinada situação. Quando isto acontecer será um motivo não para nos entristecermos e sim para nos alegrarmos. Será chegado o momento de crescermos.

    “Este é o seu reino, e o coração do reino maior que haverá. A Terceira Era do mundo está terminada, e a nova era começou; é sua tarefa ordenar o início e preservar o que pode ser preservado. Pois, embora muito tenha sido salvo, muita coisa deve agora morrer, e o poder dos Três Anéis também terminou. E todas as terras que você está vendo, e aquelas que ficam em torno delas, deverão ser moradias de homens. Chegou o tempo do Domínio dos Homens, e a Gente Antiga deverá desaparecer ou partir”. pg 178 (26)

    “A Árvore no Pátio da Fonte ainda está seca e estéril. Quando terei um sinal de que um dia será de outro modo?

    – Desvie seu rosto do mundo verde, e olhe para onde tudo parece desolado e frio! – disse Gandalf.

    Então Aragorn se virou, e havia uma ladeira de pedra atrás dele, que descia da orla da neve; e, quando olhou, percebeu que ali, solitária, em meio à desolação, estava uma coisa viva. E ele subiu até ela, e viu que exatamente da orla da neve nascia uma muda de árvore que não ultrapassava noventa centímetros em altura. Já Já exibia jovens folhas longas e belas, escuras na face superior e prateadas por baixo, e sobre sua esbelta copa carregava um pequeno cacho de flores, cujas pétalas brancas brilhavam como a neve iluminada pelo sol.”(27)

    Quando se têm a visão total a respeito de uma determinada situação,  temos clareza para enxergar o todo, meditar, decidir e agir. Uma visão unilateral sempre continuará olhando para os mesmos ângulos e caminhos, sempre parcial, nunca total. Ao olharmos para ângulos e caminhos antes nunca examinados, com certeza iremos nos surpreender com os resultados. Da mesma forma que Aragorn procurou vida em meio ao exército de mortos e a encontrou.

    “Então Aragorn exclamou: – Yé! utúvienyes! Encontrei-a! Veja! Aqui está uma descendente da Mais Velha das Arvores. Mas como veio parar aqui? Pois ela mesma não tem mais de sete anos de idade.

    E Gandalf, aproximando-se, olhou para a pequena árvore e disse: – Realmente, esta é uma muda da linhagem de Nimloth, a bela, e esta foi uma semente de Galathilion, que nasceu do fruto de Telperion dos muitos nomes, a Mais Velha das Árvores. Quem poderá dizer como ela veio parar aqui na hora marcada? Mas este é um antigo local sagrado, e, antes que os reis caíssem ou a Arvore secasse no pátio, um fruto deve ter sido plantado aqui. Pois comenta-se que, embora o fruto da Árvore raramente fique maduro, mesmo assim a vida que existe dentro dele pode dormir através de muitos e muitos anos, e ninguém pode predizer o tempo em que despertará. Lembre-se disso. Pois, se algum dia um fruto amadurecer, ele deve ser plantado, para evitar que a linhagem desapareça do mundo. Aqui ele foi colocado, escondido nas montanhas, da mesma forma que a raça de Elendil ficou escondida nos ermos do norte. E apesar disso a linhagem de Nimloth é muito mais antiga do que a sua, Rei Elessar.

    Aragorn encostou delicadamente sua mão á muda de árvore e ai percebeu, surpreso, que ela se prendia muito de leve á terra; retirou-a sem feri-la, e levou-a de volta à Cidadela. Então a árvore seca foi arrancada, mas com reverência; não a queimaram, mas a deitaram para que descansasse no silêncio de Rath Dinen. E Aragorn plantou a nova árvore no pátio perto da fonte, e ela começou a crescer rápida e alegremente; e, quando chegou o mês de junho, ficou carregada de flores.

    – O sinal foi dado – disse Aragorn -, e o dia não está distante.”pgs 178 e 179.(28)

    A velha Árvore Branca, fora arrancada, uma nova árvore fora plantada. A velha Árvore Branca já não era mais branca por ser viva e frutífera. Mas, por ser branca como a lepra, estéril e seca. O velho foi arrancado e o novo fora plantado, que tenhamos coragem para fazermos o mesmo em nossas vidas, sempre que necessário.

    BIBLIOGRAFIA :

    Bíblia Sagrada, 1 Pedro 2;6-8ª.(13).

    BRANDÃO, Junito de Sousa . Mitologia Grega / Vol. 1. Petrópolis . Vozes . 11ª ed. 1997 .(22),(23),(24).

    BRANDÃO, Junito de Sousa . Mitologia Grega / Vol. 2. Petrópolis . Vozes . 11ª ed. 1997 .(7),(8),(9).

    CAMPBELL, Joseph . As Máscaras de Deus / Mitologia Ocidental . São Paulo . 5ª ed. Palas Athena, 2004 .

    CHEVALIER, J & GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos . 14ª ed. Rio de Janeiro . José Olympio . 1999 .(15),(16),

    JUNG, C.G., Memórias, Sonhos e Reflexões . 22ª ed. Rio de Janeiro . Nova Fronteira . 2002 .(2),(20).

    JUNG, C.G., Mysterium Coniunctionis / Vol 2. 3ª ed. Petrópolis. Vozes. 1997.(25)

    TOLKIEN, J.R.R, O Senhor dos Anéis/O Retorno do Rei. 2ª ed. São Paulo. Martins Fontes. 2001 . (1),(3),(4),(5),(6),(10),(11),(14),(17),(18),(19),(21),(26),(27),(28).

  • Curiosidades Tolkienianas

    Você sabia que…

    •  Tolkien detestava automóveis e desistiu de dirigir no início da Segunda Guerra Mundial? Tolkien era bem conhecido entre habitantes locais pela maneira como tentava ultrapassar os outros veículos na rua principal de Oxford. "Ataque-os que eles fogem!", ele berrava enquanto ia costurando pelo trânsito. As coisas foram piorando a tal ponto que Edith se recusava a andar de carro com ele.
     
    • tolkien_1.jpgOs roncos de Tolkien tornaram-se um incômodo tão grave que ele e Edith acabaram chegando a um acordo incomum para a hora de dormir: ela passava a noite no quarto e ele dormia no banheiro.
    • A  "galofobia" de Tolkien não tinha limites, e começou bem cedo em sua vida. Em uma visita a Paris quando tinha vinte e poucos anos ele execrou "a vulgaridade, a tagarelice, a indecência e o hábito de cuspir" dos franceses.
    • Tolkien nunca foi chegado em cultivar a própria fama. "Existem muitas pessoas em Oxford que nunca ouviram falar a meu respeito", ele comentava com orgulho. E isso ele provou em 1964, quando o autor Robert Graves visitoua universidade para proferir uma palestra. Durante a recepção, Graves apresentou Tolkien a uma linda e bem-dotada jovem, que estava sendo escoltada por um exército de repórteres e fotógrafos. Os dois conversaram amavelmente por vários minutos, até que Graves percebeu que Tolkien não tinha a menor idéia de quem era aquela mulher maravilhosa. Avisando que tratava-se da atriz Ava Gardner, Tolkien continuou a tratá-la do mesmo modo. Mas tudo bem, porque ela tampouco sabia quem era ele.
    • Tolkien ficou horrorizado com a ilustração que adornava a capa da primeira edição norte-americana de O Hobbit, em 1965. A pintura sinistra – que mostrava um leão, dois avestruzes e uma árvores com frutos bulbosos – parecia ter pouco ou nenhuma relação com o conteúdo do livro. "Acho a capa muito feia", o agastado autor escreveu a seu editor, "mas reconheço que o objetivo principal da capa de uma brochura seja atrair compradores, e imagino que os senhores sejam melhores juízes do que eu sobre o que é atraente nos Estados Unidos. Portanto não irem alongar-me num debate sobre gosto (o que não significa que eu não possa dizer: cores horríveis e letras horrorosas), mas devo indagar o seguinte a respeito da vinheta: Por que o leão e os avestruzes? E o que é aquela coisa no fundo, com bulbos cor-de-rosa? Eu não entendo como alguém tenha lido o livro (e espero que o senhor tenha sido um deles) imagine que tal figura poderia satisfazer o autor". Tolkien não recebeu resposta à sua queixa. Em um telefonema subseqüente, ele reiterou suas objeções sobre o artista e, finalmente, obteve uma explicação do representante da editora: "Mas o sujeito não teve tempo de ler o livro!"

    Para ler essas e outras curiosidades sobre J. R. R. Tolkien (e também outros grandes escritores estrangeiros), não deixe de conferir o livro A vida secreta dos grandes autores , de Robert Schnakenberg e ilustrações do gaúcho Allan Sieber, da editora Ediouro.

  • Frodo e o poder do Anel

    Frodo e o Um AnelDurante os treze meses que Frodo Baggins foi portador em período integral do Um Anel, pudemos ver transformações profundas no caráter do hobbit. Mas, essa terrível prova, acabou por deixar Frodo em um estado de espírito relativamente taciturno, mesmo muito tempo depois da destruição do Anel. Ao longo de nossas vidas, também passamos por fortes momentos de transformação e que, por vezes, podem resultar-nos em uma melhora ou piora de nosso ânimo. Afinal, o que foi que Frodo sofreu na Guerra do Anel?
     
     
    É claramente perceptível que o surgimento do Anel da vida do hobbit só lhe trouxe problemas e preocupações desde o primeiro minuto. No entanto, após a ida de Bilbo para Rivendell, o Um já começava a ocupar a consciência de Frodo a cada minuto – muitas vezes ele parava seus afazeres diários para checar se o Anel estava muito bem escondido em seu baú.

    Trazendo esta história para nós mesmos, irei associar muitos dos elementos desta vivência de Frodo com a teoria Psicanalítica, em uma visão Freudiana. O baú em que tantas vezes o hobbit foi ao encontro, corresponde ao nosso inconsciente – lugar escuro, pouco visitado e que carrega tantos mistérios. Já o Um Anel representa o Super-ego. Este nada mais é do que a autoridade externa que introjetamos e que passa a ser nosso direcionador em tudo o que fazemos ou pensamos em fazer – a partir dele passamos a nos punir e nos sacrificar em nome daquilo que ele considera correto para nós.

    Podemos verificar que ao passar da história, o poder do Anel vai crescendo e se fortificando, passando a dominar cada segundo da vida de Frodo: assim também o é conosco – a partir da infância, passamos a interiorizar essa autoridade do super-ego de forma cada vez maior e quando chegamos à fase adulta, somos completamente controlados por ele e perdemos a noção do que nos proporciona prazer.

    Se há um personagem em SDA que perde a noção de si e passa a se dedicar inteiramente em favor de uma coletiva, este é Frodo. O hobbit abdica de toda a libido (instinto de prazer) em prol de vencer as maiores dificuldades a fim de destruir o Anel.

    O que acho importante de analisar os derradeiros momentos de Frodo é o quanto nos assemelhamos com ele. Na civilização do século XXI, o mal-estar que nos toma conta é grande demais e é quase como se tivéssemos um Sauron a correr em nosso encalço todo o tempo! Já não nos damos ao direito de fazer o que nos dá prazer ou alegria porque temos que trabalhar, pensar em algo para ganhar dinheiro, ver o outro ser humano como um ser que só quer competir conosco etc. É quase como se dia após dia nos tornássemos nâzgul e abandonássemos toda a essência humana que possuímos dentro de nós.

    Thomas Hobbes já dizia que “o homem é lobo do homem”. Mas talvez estejamos indo longe demais e nos tornamos nossos próprios inimigos ao permitir que nosso super-ego se converta em um dragão de nós mesmos que somente visa a auto-destruição e flagelamento da condição de indivíduo. Não somos mais meras pessoas como no século XV: abandonamos a condição servil em favor da liberdade de cada um e a nossa construção de indivíduos. Então, não podemos ser nós mesmos os culpados pela nossa desgraça.

  • O Caso das Traduções de O Senhor dos Anéis em Lí­ngua Portuguesa

    artigo_academico.jpgO artigo a seguir foi apresentado em um conjunto de comunicações integradas sob o título
    "Interpretação: modos de dizer, modos de fazer", em conjunto com Maria
    Paula Frota, Helena Martins e Ana Paula El-Jaick, no XII Congresso da
    Assel-Rio: “Linguagens: modos de dizer, modos de fazer”, Rio de
    Janeiro, 17 de novembro de 2003. Resumo publicado no Livro de Resumos e
    Programação, p. 109. A autora gentilmente permitiu a reprodução inegral do artigo na Valinor.
     
     
    TEORIAS E PRÁTICAS DE INTERPRETAÇÃO:
    O Caso das Traduções de O Senhor dos Anéis em Língua Portuguesa

    INTRODUÇÃO

    Complementando esta mesa coordenada sobre modos de fazer e modos de
    dizer a interpretação, neste trabalho vou confrontar discussões
    teóricas sobre interpretação com a análise de uma situação prática
    envolvendo traduções, buscando mostrar como elas interagem de forma
    complexa, havendo inclusive o comparecimento, na prática, de abordagens
    teóricas aparentemente divergentes. Primeiramente, apresentarei o
    panorama teórico pertinente a esta discussão.

     
     
    PANORAMA TEÓRICO

    Nestas últimas décadas, diversas discussões aplicadas à teoria da leitura e envolvendo interpretação, geralmente frutos de questionamentos filosóficos mais amplos, vieram repensando definições e papéis dos objetos tradicionalmente considerados como participantes da situação da leitura: o autor, o texto, o leitor e os vários contextos e situações possíveis envolvendo cada um deles.

    Uma das rupturas mais significativas foi a conhecida morte do Autor decretada por Roland Barthes, que destituiu aquele sujeito poderoso, onisciente, fonte criativa única de sua obra e cujos pensamentos e intenções o leitor deve resgatar através da leitura.

    No início do século XX, o inglês Ivor A. Richards, que inspirou fortemente os New Critics, de grande influência no meio acadêmico norteamericano, levou ao extremo a idéia da morte do autor em sua metodologia de interpretação e crítica literária: ele restringiu suas análises unicamente ao texto, visto como um sistema fechado, buscando eliminar qualquer vestígio tanto do autor e seu contexto quanto de projeções feitas pelo leitor (o que ele caracterizou como um erro metodológico chamado “falácia afetiva”). Segundo Richards (por exemplo, 1956 [1929]), uma leitura correta do texto levaria a somente uma interpretação, a única invocada pelo texto. Contudo, em seus textos, fica claro que essa única leitura correta é sempre a dele, e ele sempre consegue provar que qualquer interpretação divergente não se sustentará com base no texto.

    Outras abordagens teóricas, como a Estética da Recepção, afastaram ainda mais a interpretação da intenção inicial do autor, transferindo o foco cada vez mais para o pólo do leitor (ainda que, no caso da Estética da Recepção, o texto ainda devesse nortear as interpretações possíveis).

    Já posturas teóricas como o Pragmatismo, desenvolvido com mais ênfase, em teoria literária, a partir da década de 80, são mais radicais: para teóricos como Stanley Fish, por exemplo, o próprio texto não tem mais o privilégio de orientar suas interpretações possíveis. Agora, o que determinará quais os significados que serão construídos a partir do texto é o uso dado a ele por cada comunidade que o lê, em seu contexto específico – ou, segundo o termo cunhado por Fish, por cada comunidade interpretativa. Entre os vários casos narrados por Fish para ilustrar seu argumento, um dos mais clássicos relata que, ao receber tal informação do professor, alunos de uma aula de literatura interpretaram como sendo um poema uma lista bibliográfica deixada no quadro negro pelo professor da aula anterior (Fish, 1980). As mesmas palavras que serviram ao propósito de uma determinada comunidade puderam ser efetivamente utilizadas por uma comunidade diferente, adquirindo significados sem nada em comum e sequer possuindo a priori uma interpretação correta. Portanto, seria impossível prever todas as situações capazes de serem criadas ao longo da história pelas mais diversas comunidades interpretativas que possibilitariam a construção de diferentes interpretações e, assim, virtualmente qualquer interpretação seria possível, ainda que os leitores inseridos em um contexto específico sejam incapazes de aceitar interpretações divergentes das suas, que são moldadas por sua comunidade interpretativa.

    Contudo, em meio a todas estas vertiginosas transformações teóricas, alguns autores se perguntam se certas posturas não estão indo longe demais, ou como são possíveis determinadas atividades práticas que não parecem capazes de se desvincular de um objeto tradicionalmente denominado texto e algum tipo de relação com uma entidade conhecida como autor.

    Tendo sido partidário e feito experiências literárias relacionadas à Estética da Recepção e ao Pragmatismo, Umberto Eco é um dos que, sem negar os insights teóricos das últimas décadas, agora reivindica algum tipo de consideração pelo que chama de “os direitos do texto” (Eco, 2000). A reivindicação de Eco é que, ao contrário do que afirmam teóricos de orientação pragmatista e descontrutivista, deve haver algo no texto que, ainda que seja difícil de caracterizar de modo objetivo, é o que permite que pessoas diferentes, em contextos variados, se refiram ao conteúdo de uma determinada obra e ao menos reconheçam que estão falando do mesmo objeto.

    Alinhamentos como o de Eco também voltam a aproximar, ainda que não mais de forma ingênua, uma concepção teórica a respeito da leitura e da interpretação, do senso comum, para o qual, de modo geral, aquele Autor morto por Barthes ainda está bem vivo e cuja expectativa com relação à situação de leitura provavelmente coincidirá mais com a idéia de Umberto Eco do que com a de Stanley Fish.

    Além disso, para complicar ainda mais, muitas vezes entre um certo texto e um certo leitor, existe ainda a controvertida figura do tradutor – na qual não terei tempo de me deterei nesta ocasião, mas que ainda mencionarei algumas vezes.

    Particularmente no caso de obras literárias de grande influência, que acabam sendo consideradas canônicas, esses paradigmas tradicionais parecem tornar-se ainda mais rígidos e sensíveis a mudanças. O autor e seu contexto, sua biografia, ganham ainda mais poder, desencadeando uma busca mais obstinada de seus pensamentos e intenções. No pólo do leitor, a influência de diversas informações adquiridas, ainda que não de forma consciente, geram expectativas e norteiam sua leitura, tendo um peso que pode ser decisivo na sua interpretação do texto.

    Veremos agora uma situação prática, que analisaremos sob diversos aspectos de modo a contrastá-la com nosso panorama teórico.

    NOSSO OBJETO DE ESTUDO


    Consideraremos a obra O senhor dos anéis (The Lord of the Rings), de J.R.R. Tolkien, publicada pela primeira vez em 1954. Desde seu lançamento, o livro teve enorme sucesso e foi traduzida para um grande número de línguas. No Brasil, foi publicada em português nas décadas de 60 e 70 pela editora Artenova, em seis volumes, mas o longo espaço de tempo entre o lançamento de um volume e outro fez com que vários leitores dos primeiros volumes dessem continuidade à leitura migrando para a tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, publicada pela editora portuguesa Europa-América na década de 70. Algum tempo depois, a Artenova fechou as portas e seus livros deixaram de ser encontrados, de modo que, durante bastante tempo, a opção mais acessível para leitores brasileiros foi a tradução portuguesa. Uma nova tradução brasileira, feita por Lenita Maria Rímoli Esteves e Almiro Pisetta, foi publicada na década de 90 pela editora Martins Fontes, antecipando o lançamento da trilogia de filmes baseada nos livros, ao mesmo tempo reavivando comunidades já existentes de fãs e estimulando a formação de um novo público leitor de Tolkien.

    Para obter dados com relação à recepção dessas obras por leitores brasileiros, realizei uma pesquisa através de grupos de discussão na internet, por meio de um questionário para ser respondido apenas por leitores brasileiros que tivessem lido tanto a versão portuguesa quando a nova tradução brasileira. O questionário continha diversas perguntas visando respostas subjetivas e não técnicas sobre facilidade de leitura, o prazer proporcionado e diversas preferências a respeito de passagens específicas (por exemplo, com relação a poemas e canções, passagens descritivas, diálogos e cenas de ação, entre outras). No fim, havia um espaço livre para observações adicionais. Esses leitores são assumidamente “fãs” da obra de Tolkien, o que intensifica ainda mais seu status canônico.

    Vejamos, de forma bem resumida, os resultados desta investigação.

    O questionário foi respondido pelo mesmo número de homens e mulheres distribuídos de modo equilibrado entre várias faixas etárias. A tradução portuguesa foi a preferida somando-se todos os aspectos, sendo escolhida, de modo geral, por seu texto ser mais rico, poético e estar mais no “clima” do livro, por assim dizer, enquanto a tradução brasileira quase sempre foi escolhida por ser de leitura mais fácil. Uma ligeira maioria dos leitores leu a versão brasileira mais depressa, o que também indica facilidade de leitura, devida principalmente à familiaridade com o vocabulário e o estilo, porém a portuguesa propiciou mais prazer à maioria dos leitores.

    Isto é, para os atuais fãs brasileiros da obra de Tolkien, tudo indica que a compreensão das palavras e a proximidade da linguagem não são fatores mais importantes que a poeticidade e o ar fantástico desse mundo. Um dos leitores inclusive mencionou explicitamente que o estilo e o vocabulário português, que para os brasileiros parecem antigos, distantes e inclusive causam dificuldade, “combinariam” com o mundo de Tolkien, igualmente longínquo no tempo e no espaço.

    Uma observação importante é que, somando os leitores que leram uma
    das traduções em língua portuguesa antes do original em inglês e aqueles que nunca leram o texto em inglês, constatamos que 91% dos entrevistados desenvolveram sua interpretação do livro primeiro em português (às vezes lendo a tradução duas, três, quatro vezes), antes de terem algum contato direto com o original (e, na maioria das vezes, não sendo capazes de ler a obra completa em inglês ou de compreendê-la de modo satisfatório). Isto é, para a grande maioria dos leitores brasileiros, a construção imaginária desse universo, a relação com os personagens, a identificação dos lugares, etc. se dá primeiro em português.

    Entre as duas traduções em língua portuguesa, também podemos observar que a quase totalidade dos leitores prefere amplamente, em vários aspectos, a tradução que foi lida primeiro. A grande maioria daqueles que leram primeiro a tradução portuguesa preferem esta versão na maioria dos aspectos levantados no questionário, enquanto a maioria dos que leram primeiro a tradução brasileira tendem a preferir esta versão, inclusive por vezes considerando-a mais rica e poética, e não apenas mais fácil, como foi a tendência geral.

    A preferência por características particulares de versões que foram o primeiro contato de um leitor com uma obra não é novidade. André Lefevere e Susan Bassnett (1990) recontam um caso relatado por Proust referente à sua avó, que durante décadas se habituara aos personagens de As mil e uma noites e A odisséia de uma tradução antiga, sentindo-se indignada quando, tempos depois, novas traduções propuseram transliterações diferentes, “corrigidas”, para os nomes dos personagens, que ela não era mais capaz de reconhecer. Há um sentimento de violação associado a mudanças que parecem descaracterizar o mundo que foi sendo construído pelo leitor e que este tende a atribuir, não à sua interpretação pessoal, mas ao texto e ao autor, transferindo a eles a violação que sente ao se deparar com uma nova tradução – o que, no caso de um texto sacralizado, constitui um grave pecado.

    Finalmente, vamos analisar as teorias na prática.

    TEORIA NA PRÁTICA: REFLEXÕES

    Ponderando sobre as respostas dadas pelos leitores de O senhor dos anéis e, principalmente, seus comentários espontâneos muitas vezes adicionados aos questionários para justificar suas opiniões, o primeiro que notamos é o quanto suas intuições acerca das leituras que fizeram se aproximam do modelo de Richards. Apesar de estes leitores não deixarem de considerar o autor e seu contexto – muito pelo contrário, dotando-os de grande valor –, eles identificam no texto, em passagens específicas, as provas para suas conclusões interpretativas, muitas vezes apresentando suas opiniões como o resultado de uma (ou, em geral, mais de uma) leitura crítica do texto, desprovida de “falácias afetivas”, de modo a demonstrar que sua interpretação e suas preferências entre as duas traduções seriam as mais corretas.

    Contudo, examinando com atenção as justificativas que os leitores fornecem para suas opiniões, fui percebendo que grande parte do que está por trás de suas preferências não é o texto propriamente dito. Na maioria das vezes, eram citados como exemplos os versos de abertura do livro e nomes próprios de personagens e lugares, que foram traduzidos de modo diferente nas duas traduções em língua portuguesa e são uma questão bastante sensível para os fãs. Pois bem: os mesmos trechos mencionados visando justificar as preferências por esta ou aquela tradução não são consistentes entre leitores diferentes. Uma rima considerada “tão poeticamente linda” por um leitor é a mesma usada por outro para mostrar que a tradução “perde em poesia”. Se um diz que prefere os nomes próprios da versão portuguesa porque são mais poéticos, outro os considera “confusos” demais e prefere os nomes recriados pelos tradutores brasileiros.

    Mas afinal, como os leitores constroem suas interpretações? Quais, efetivamente, seriam os fatores responsáveis por uma caracterização do mundo criado por Tolkien de acordo com a qual as diferentes traduções seriam avaliadas? Se, por um lado, é muito difícil não admitirmos que não haja algo no texto, algo em comum a todas as suas versões sobre o qual diversos leitores concordem ao falar sobre o texto – como reivindica Umberto Eco –, por outro é igualmente complicado justificarmos, com base somente no texto, comentários do tipo “A Editora Martins Fontes cometeu alguns erros na tradução, mas que muitos deixam passar desapercebido” e “a brasileira deixa realmente a desejar, sem poeticidade nenhuma e além disso uma tradução ao pé da letra que ‘enfeiou’ o texto completamente”, comentários estes redigidos por leitores que nunca leram o texto em inglês. Evidentemente, eles estão comparando o texto em português com algo que foi construído sem a leitura do texto original – sem, portanto, o comparecimento do texto em si.

    Stanley Fish afirma que a leitura que um determinado indivíduo faz de um texto não depende nem do texto nem do leitor, mas exclusivamente da comunidade na qual ele se insere e através da qual seus pensamentos são moldados. No caso de obras consideradas canônicas, cuja fama as precede, essa influência do entorno se torna bastante clara.

    Os leitores que responderam ao questionário são fãs declarados destes livros, invariavelmente tendo lido as quase mil páginas de O senhor dos anéis no mínimo duas ou três vezes nas diferentes versões. A maioria dos fãs que responderam ao questionário freqüenta sites especializados e participa de listas de discussão por correio eletrônico sobre as obras de Tolkien, de modo que a interação com outros fãs, de diversas idades e graus de devoção, é bastante grande. Este ambiente é ainda mais influente do que a mídia – afinal, considera-se que um jornalista ou crítico possa fazer comentários equivocados, com intenções dúbias ou mal informados, mas nunca um fã que dedica boa parte do seu tempo a analisar e discutir as palavras de seu ídolo e tudo o mais que se relaciona a ele.

    Pois bem: em entrevistas e sites coletados na Internet, parece ser bastante unânime entre fãs respeitados que “a tradução portuguesa é melhor”, mais “poética” e mais “solene”. Isso foi posto inicialmente com relação à tradução brasileira publicada pela Artenova e, mais recentemente, continua sendo divulgado entre os fãs com respeito à da Martins Fontes. Certamente, os fãs brasileiros mais antigos leram repetidas vezes, divulgaram e valorizaram a edição portuguesa, no início por considerá-la melhor que a da Artenova (o que coincide com a opinião geral da mídia) e, depois, possivelmente por falta de opção – já que os livros da Artenova deixaram de ser encontrados. Recentemente, com o lançamento da tradução da Martins Fontes, esses fãs continuaram declarando sua preferência e mesmo recomendando explicitamente a versão da Europa-América. No rastro destes fãs mais “sábios”, os mais novos tendem a formar a mesma opinião.

    É claro que as preferências são por vezes justificadas com provas encontradas no texto das quais, em muitos casos, é difícil discordarmos. O problema é que fãs atentos que preferem o texto português encontrarão provas da sua superioridade da mesma forma que o farão os que querem demonstrar que o texto brasileiro é melhor. Fica evidente o paralelo desta situação com o caso relatado por Fish sobre o falso poema da aula de literatura. Aquilo que efetivamente está no texto parece pouco contribuir para a interpretação do leitor, cuja visão é essencialmente persuadida pela comunidade interpretativa na qual se insere.

    Com o lançamento da tradução da Martins Fontes, à força da comunidade de fãs opôs-se o vigor da mídia. Em todos os meios brasileiros que localizei na Internet que não eram sites dedicados a Tolkien, que geralmente são mantidos por fãs, a versão portuguesa não é sequer mencionada e a da Martins Fontes é sempre exaltada. Os tradutores e o consultor receberam visibilidade incomum da mídia, sendo entrevistados diversas vezes e tendo a invejável oportunidade de explicar diversos aspectos da tradução, ressaltando dificuldades e justificando mudanças. Na primeira página do livro, os nomes dos tradutores e do consultor são seguidos de seus títulos e atribuições acadêmicas e, na página seguinte, uma “nota à edição brasileira” justifica a recriação de nomes próprios com base em instruções deixadas pelo próprio Tolkien e a re-tradução de textos escritos em runas em outras línguas, também baseada nas gramáticas escritas por Tolkien.

    O choque entre essas duas forças certamente causou impacto. Muitos fãs aprovam o trabalho e a dedicação da Martins Fontes e seus tradutores, mostram-se felizes com o respeito que demonstraram por Tolkien ao seguir suas indicações e elogiam a qualidade técnica do texto – porém continuam divulgando a opinião de que algo do “espírito” do original, que ainda estava presente no texto português, se perdeu. Como ocorreu com a avó de Proust, o novo texto brasileiro descaracterizou o mundo que eles conheciam.

    A situação da Martins Fontes e seus tradutores era muito delicada. Uma parcela significativa de seu público-alvo, com a capacidade de emitir opiniões especializadas potencialmente influentes, já tinha lido outras versões da obra e estava esperando uma nova tradução que atendesse a suas (altas) expectativas, sendo ao mesmo tempo melhor que as anteriores e mais “fiel” ou “próxima” ao texto original e a seu universo. Contudo, como já vimos, esta concepção do original e seu imaginário foi construída em grande parte graças à tradução portuguesa já existente e considerada superior à tradução brasileira anterior. Isto explica em grande parte o afã da Martins Fontes em atestar a aptidão técnica dos tradutores e justificar com base nas instruções deixadas por Tolkien a nova adaptação dos nomes próprios e a re-tradução de trechos em línguas inventadas pelo autor.

    Para satisfazer as expectativas e conquistar fãs mais antigos, são enfatizadas as fontes originais, buscando valorizar e resgatar o autor, suas idéias e sua obra, de acordo com os padrões mais tradicionais. A meu ver, esta estratégia não demonstra nenhum tipo de ingenuidade por parte dos editores e tradutores, que certamente estão a par das discussões teóricas, mas, pelo contrário, apela mais ao senso comum dos leitores, particularmente os fãs, que têm a ilusão do contato mais direto possível com seu autor através de sua obra, ainda que por meio da tradução. Além disso, devemos ter em mente os fins por trás de praticamente qualquer publicação literária são comerciais.

    Pessoalmente, acredito que, com o passar do tempo, a tradução da Martins Fontes será amplamente aceita no Brasil, à medida que for se tornando, como já está sendo, a primeira opção de leitura por um novo público, que construirá sua interpretação desse universo em cima dessa tradução. O mais provável é que a tradução lusitana fique cada vez mais relegada aos fãs dos primórdios, que a continuarão preferindo e justificando sua supremacia de diversas maneiras mas que, gradativamente, perderão espaço para o público crescente que já terá adotado a tradução brasileira.

    CONCLUSÃO

    Apesar dos acalorados debates entre representantes de diversas abordagens teóricas relacionadas a teorias de leitura, interpretação e tradução, parece que todas elas podem comparecer, em algum grau, em situações práticas. Ainda que, por questão de clareza, tenhamos enfatizado nesta análise duas posturas radicalmente opostas – a de Richards e a de Fish –, não parece impossível supor que concepções que se encaixam entre esses dois extremos também participem de certa forma. Portanto, poderíamos dizer que a interface entre as diversas teorias e situações práticas particulares se dá de forma plural e complexa, não podendo ser compreendida segundo a ótica de uma única abordagem e sem considerar os vários objetivos, interesses e expectativas por trás de qualquer questão.

    BIBLIOGRAFIA


    Eco, U. Os limites da interpretação. São Paulo, Perspectiva, 2000.

    Fish, S. Is there a text in this class? The authority of interpretive communities. Cambridge/Londres, Harvard University Press, 1980.

    Lefevere, A. & Bassnett, S. Introduction: Proust’s grandmother and the Thousand and One Nights – the ‘cultural turn’ in translation studies. Lefevere,

    A. & Bassnett, S. (eds.) Translation, history and culture. Londres/Nova York, Pinter, 1990.

    Richards, I.A. Practical criticism: a study of literary judgment. Califórnia/Nova York, Harvest, 1956 [1929].