E no último dia 23 o José Francisco Botelho publicou um ótimo texto em comemoração aos 500 anos de Camões. Vale a leitura (como tudo que ele escreve rs). Saiu no
Matinal:
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Há 500 anos, em 1524 ou talvez 1525, nascia um nosso eterno contemporâneo: o “barbirruivo”, o Cara-sem-olhos, o arruaceiro, o marujo, o soldado, o amante febril, o incomensurável poeta Luís Vaz de Camões. Relê-lo no quinto século de seu nascimento é compreender que a excelência da linguagem cumpre a promessa de certo lugar-comum assaz repetido e às vezes, graças às musas, comprovado: ela realmente desafia o tempo. O adjetivo “contemporâneo”, dois períodos atrás, é mais do que um ornamento retórico – pois Camões “segue atual”, como se diz, no sentido mais crucial para quem viveu ou vive da palavra: ou seja, ele ainda nos ensina a escrever, hoje e na língua de hoje.
Abrindo minha antiga edição de
Os Lusíadas (da Nova Fronteira, com um ótimo ensaio de Alexei Bueno), reencontro anotações que fiz numa releitura de 2013, época em que estava traduzindo os
Contos da Cantuária. Versos sublinhados e sílabas escandidas na ponta do lápis me fazem recordar que, ao verter Geoffrey Chaucer para o Português brasileiro moderno, recorri inúmeras vezes à obra camoniana, em busca de conselhos sobre ritmo, prosódia, métrica, vocabulário, imagens… Sempre encontrei o que buscava, e sempre saí com a fantástica impressão de que
Os Lusíadas é não apenas um monumento do passado, mas uma oficina para o presente. A intensidade e a precisão de seus versos ativam os gérmens da língua, de tal forma que basta abrir ao acaso qualquer um dos Cantos para encontrar um tesouro de possibilidades a serem exploradas.
A julgar pelas pesquisas mais recentes, Camões parece ter nascido em Lisboa, embora outros locais já tenham reclamado a honra de serem seu chão natal (Coimbra, Alenquer, Santarém…). Muito do que se diz ou escreve sobre a vida de Camões, aliás, exige certas fórmulas de dúvida:
parece ter nascido em Lisboa;
teria estudado em Coimbra;
consta que frequentou tanto a corte quanto a boêmia lisboeta… Boa parte de sua vida, como a de Shakespeare, permanece na névoa. Porém, se a biografia de Shakespeare às vezes nos espanta porque nela quase nada parece ter acontecido, a de Camões provoca o efeito contrário: em meio a lendas, incertezas e tradições, parece ter-lhe acontecido
coisa demais, mais até do que prometia a força humana.
Sabe-se com certeza que o autor das
Rimas e dos
Lusíadas era de família da pequena nobreza, de origem galega, e com poucos recursos. A sombra da pobreza e mesmo da fome o perseguiria por toda a vida.
Consta que, sendo fidalgo moço e pobre, alistou-se para lutar na África e perdeu um olho em Ceuta, por causa de um pelouro – espécie de projétil metálico das antigas armas de fogo. O ferimento lhe rendeu a alcunha de Cara-sem-olhos, a que ele próprio alude em uma de suas redondilhas. Em 1550, novamente alistou-se, dessa vez para ir à Índia, conforme atesta um documento que o descreve como “escudeiro, de 25 anos, barbirruivo”. A viagem foi adiada por uma arruaça. No dia de Corpus Christi, meteu-se numa briga e feriu com espada um certo Gonçalo Borges, empregado do Paço. Preso no Tronco de Lisboa, Camões foi libertado em 1553, quando enfim partiu ao Oriente, na armada de Fernão Álvares Cabral, filho daquele Pedro que conhecemos bem. Navegou e andou pelo Golfo Pérsico, pela Índia, pela China – onde naufragou na foz do rio Mekong, salvando-se a nado, a si mesmo e aos manuscritos dos
Lusíadas, que já começara a escrever. Depois vagou pela África, “tão pobre que comia de amigos”, como registrou Diogo do Couto, que encontrou Camões depauperado em Moçambique. Ainda em solo africano, roubaram-lhe o Parnaso, coletânea lírica que jamais de recuperou.
De volta a Portugal em 1570, sem nada além dos escritos que sobreviveram ao périplo global, buscou a proteção da família de Vasco da Gama, herói de sua epopeia. Os epígonos não lhe deram bola, e Camões desopilou-se acrescentando uns versos amargos ao poema. Conseguiu um privilégio para a impressão dos
Lusíadas no ano seguinte, e uma pensão foi conferida por El-Rei. A parca recompensa não impediu que morresse pobre – dois anos após a catástrofe de Alcácer-Quibir, em que desapareceu D. Sebastião, e apenas uma semana antes da anexação de Portugal à coroa espanhola. Foi-se deste mundo talvez sem esperanças de que um dia fosse venerado pela nação que em vida o ignorara; e decerto sem imaginar e que, no futuro distante, estaríamos celebrando seu aniversário no além-mar, nesta terra que seu poema chama apenas de “Santa Cruz”.
Já se disse que, nos
Lusíadas, o lírico supera o épico, mas eu discordo. De todos os poetas posteriores a Homero, Camões é, em diversos sentidos, o que me parece mais próximo ao autor da
Odisseia. Primeiramente, porque a poesia de Camões apresenta uma espécie de variedade na intensidade, semelhante à do grego antigo. Sua habilidade em manejar ideias contraditórias cria um fluxo poético de teses e antíteses: se, por um lado, dispõe-se a cantar o “ilustre peito lusitano”, por outro apresenta o contraponto à “glória de mandar” e “a vã cobiça”, no discurso do Velho do Restelo e ainda outros trechos da epopeia. Além disso, ao entusiasmo desbravador de seus barões assinalados e ao relato exaltado da história portuguesa, Camões mistura de tempos em tempos uma pungente melancolia que, a depender do leitor, pode predominar sobre o hausto heroico. Esse amargor, belamente expresso em versos, nasce da contemplação da “austera, apagada e vil tristeza” que toma conta da nação – presságios de um declínio que o poeta sentiu profundamente como a tantas outras coisas.
Camões, que dobrou duas vezes o Cabo das Tormentas, foi também um dos grandes poetas do mar e soube lhe conferir a fúria, a doçura e a estranheza das coisas vivas. Assim como ressoam, nos versos de Homero (mesmo em tradução!), as ondulações do
thalassa cor de vinho, escutamos em Camões a voz dos oceanos do mundo, com suas “calmas, tormentas e opressões”. A sabedoria marítima de Camões impressionou um comentarista insuspeito: o polímata e naturalista alemão Alexander von Humboldt, que também conhecia bem o mar. Diz von Humboldt em seu
Kosmos: “Camões é inimitável quando pinta a permutação perpétua que se opera entre o ar e o mar, as harmonias que reinam entre as formas das nuvens, as suas transformações sucessivas e os diversos estados por que passa a superfície do Oceano. A princípio mostra essa superfície enrugada por uma leve aragem; as vagas mal erguidas cintilam, brincando com o raio de luz que nelas se reflete; depois outra vez os navios, assaltados por uma terrível tempestade, lutam contra todos os elementos desencadeados”.
Von Humboldt elogia Camões por preservar a “verdade dos fenômenos”; mas o autor dos
Lusíadas não é um geógrafo, e sim um poeta. Ocorre que, se as navegações portuguesas foram dissipando o mundo imaginário da cartografia antiga – com suas ilhas móveis, cheias de diabos e duendes –, Camões criou uma nova mitologia a partir do mundo real, com seus elementos e seus espantos. Assim, ao descrever o fenômeno elétrico do fogo de São Telmo – espécie de descarga luminosa causada pela ionização do ar –, o poeta criou estes versos que se gravaram na língua com o poder das coisas fantasticamente reais:
Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Observem: a repetição da letra “v” no primeiro verso nos dá a impressão de um olhar que pestaneja e de uma chama que crepita. Um dos poderes de Camões era conferir essa impressão de materialidade às palavras, que sobrevive à passagem dos séculos e às transformações do idioma.
A nós que escrevemos, Camões nos ensina a exatidão e a naturalidade. Seus versos – trabalhadíssimos como são – parecem, contudo, anteriores à mão humana: simplesmente existem, como as águas e os céus que tanto cantam. E, uma vez lidos, se impõem como manifestações necessárias, insubstituíveis, de um universo que se estende de dentro para fora da página, e vice-versa. A precisão, a elegância e o colorido de seus adjetivos, que dizem tudo o que têm de dizer sem jamais recaírem no meramente ornamental, não foram superadas em 500 anos de literatura – perto dele chegaram Eça, Machado e só. Vejam por exemplo a aparição de Adamastor, o gigante que personifica o Cabo das Tormentas e que é um dos personagens mais inesquecíveis em toda a literatura de língua portuguesa:
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e vastíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra, e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
(…)
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo”.
E os verbos? Camões os maneja com a mesma excelência, plasmando ações em imagens que ressoam: “Mas o de Luso, arnês, couraça e malha/ Rompe, corta, desfaz, abola e talha”. E os advérbios – sim, até mesmo os advérbios camonianos têm algo a nos ensinar! Melhor que extirpá-los, como sugerem não poucos gurus, é aprender a usá-los com o mestre. Assim, por exemplo:
A muitos manda ver o Estígio Lago,
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.
O Mestre morre ali de Santiago
Que
fortissimamente pelejava.
A quase inesgotável potência verbal de Camões faz dele um autor sentencioso no melhor dos sentidos possíveis: é o grande frasista da língua e um dos autores mais citáveis entre os todos os clássicos. O fato de escrever em decassílabos e redondilhas confere a muitos de seus versos a aparência de epigramas cinzelados pelo tempo e não pelo engenho de um único homem. “Um fraco rei faz fraca a forte gente”. “Aparelhamos a alma para a morte”. “Ora pois, porque o amo, é mal tratado,/ Quero querer-lhe mal: será guardado”. A força da sentença camoniana faz triunfar seu intuito de cantar, nos
Lusíadas, a descoberta da “máquina do mundo”, na confluência da fábula e da ciência: a golpes de verbo, Camões torna o real fabuloso, como o fogo de São Telmo; e torna o fantástico verossímil, como o gigante Adamastor – um dos poucos casos em que um poeta posterior soube não apenas dilatar, mas até mesmo aprimorar a mitologia dos antigos.
Eu escrevi, há pouco, que a potência verbal de Camões é
quase inesgotável. Ocorre que ele próprio demarcou o
nec plus ultra de sua criação, nuns versos comoventes do Canto X:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
Aquele que mira o infinito, sendo humano, está condenado a ter a derrota na vitória. Em muitos sentidos, a grandeza de Camões é a crônica de um desastre. Sempre que releio
Os Lusíadas, tendo a achar que o Velho dos Restelo se sobrepõe a Vasco da Gama e que toda “glória de mandar” é absolutamente vã: pois o Império cantado por Camões há muito ruiu, como todos os impérios devem ruir um dia. John Milton quis escrever um poema que elogiasse a obediência e condenasse a rebeldia; mas por séculos o
Paraíso Perdido foi lido como um romance de aventuras cujo herói é o Diabo. Camões quis cantar as glórias portuguesas (passageiras, como todas as glórias) mas acabou cantando o mundo, e o homem no mundo, e, principalmente, cantou o próprio Canto – que se tornou, ele sim, a glória duradoura de seu povo. Pois os fervores nacionais e as loucuras do tempo sempre acabam por arder e se transformar na cinza dos dias – o que permanece é a imaginação e a linguagem, alma e combustível de outra chama, aquela que permite à voz humana seguir viva, elétrica e luminosa como os fogos de São Telmo, e mais imensa e retumbante que Adamastor.
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José Francisco Botelho é jornalista, escritor, poeta e tradutor. De sua mão saíram os Contos de Cantuária
, de Chaucer, assim como o Romeu e Julieta
, de Shakespeare, entre outros.