Fúria da cidade
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A menor das Copas
Depois de dois Mundiais em países continentais, edição do Qatar será em uma nação do tamanho de Manaus
Felipe Pereira e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Petersburgo e São Paulo
Divulgação/Qatar Tourism Authority
Divulgação/Qatar Tourism Authority
Encerrada a Rússia-2018, prepare-se para uma Copa do Mundo como você nunca viu em quatro anos. O Qatar-2022 não será apenas o primeiro Mundial realizado no Oriente Médio: com área de cerca de 11.500 km², será o menor país que já recebeu o torneio.
Para você ter ideia das (pequenas) dimensões da nação da península arábica, seu tamanho equivale ao da cidade de Manaus. O estádio mais distante de Doha, a capital, está a apenas 35 km. E mais: quatro dos oito estádios planejados para a Copa estão na própria capital de 800 mil habitantes. As torcidas dos 32 países participantes [pelo menos esses são os planos atuais] basicamente ocuparão os mesmos lugares.
Outro detalhe: o torneio do Qatar também vai mudar o calendário dos campeonatos de futebol mundo afora, da Premier League ao Brasileirão.
Com o clima extremo do verão árabe, a Fifa marcou a Copa para os dias 21 de novembro e 18 de dezembro. É a primeira que não disputada no meio do ano, durante o verão europeu.
Internamente também há uma série de desafios a superar, especialmente no campo dos direitos humanos. O primeiro, e mais conhecido, é a denúncia de que operários trabalham nas obras da Copa em regime análogo à escravidão. As mulheres andam com os rostos cobertos. Ser gay lá é crime. Isso sem contar a eleição do país como sede, cercada de denúncias de corrupção que praticamente custaram a cabeça de Joseph Blatter.
Como forma de compensação (ou disfarce?), o Qatar promete instalações suntuosas e inovações tecnológicas. Você já está preparado?
Estádios próximos e mais ingressos que habitantes
Nos próximos quatro anos, o brasileiro vai cansar de escutar que "o Qatar é o menor país a já receber uma Copa do Mundo". Para se ter uma ideia da diferença em relação ao Brasil, que teve jogos no Amazonas e no Rio Grande do Sul, e à Rússia, que foi de Sochi a São Petersburgo, o estádio mais distante de Doha é o Al-Bayt, na cidade de Al-Khor, que fica a 35 quilômetros do centro da capital. Ou seja, a cada dia será possível escolher qual seleção e torcida acompanhar. Ou então acompanhar mais de uma.
Em condições normais, em menos de uma hora é possível circular entre os dois estádios mais distantes do próximo mundial. Outro atestado da falta de normalidade da próxima Copa: serão colocados à venda 2,8 milhões de ingressos. O número é maior do que os 2,5 milhões de habitantes do país-sede. As consequências no trânsito podem ser calamitosas. Imagine São Paulo em véspera de feriadão...
Vendo as pessoas e como elas se locomovem, estamos tentando imaginar como o tráfego vai fluir na Copa do Mundo. Nós estamos reconsiderando onde colocar a Fan Fest, por exemplo"
Nasser Al Khater, oficial sênior da Copa do Qatar
Mas também é possível que dê certo. As Olimpíadas concentram cerca de 30 instalações, geralmente em uma única cidade. E as coisas funcionam. Para se antecipar a possíveis problemas, a organização da primeira Copa do Oriente Médio enviou 180 pessoas à Rússia. Eles verificaram a paixão das torcidas, principalmente da América Latina, e prometem ajustes para evitar o caos.
Os estádios da Copa de 2022
Divulgação/Qatar Tourism Authority
Copa no fim do ano é admissão de erro da Fifa
Entre as peculiaridades da próxima Copa está a data. A final da Copa de 2022 será na mesma semana das festas de Natal. Com o fim do Mundial marcado para 18 de dezembro, todo o calendário do futebol terá de ser adequado. O Brasileirão e os outros campeonatos nacionais, por exemplo, terão um ano atípico. Nenhuma informação sobre como a adequação será feita no Brasil foi divulgada pela CBF, por exemplo, mas é improvável que o torneio não seja paralisado.
O motivo da mudança nas datas da Copa são as temperaturas extremas no verão do Qatar, onde os termômetros passam dos 50 graus. Lembrando que em junho e julho, os meses tradicionais do torneio para a Fifa, é verão no Qatar. A organização prometeu ar condicionado nos estádios, mas ainda assim resolveram mudar as datas.
A senha foi uma declaração do então presidente da Fifa, Joseph Blatter: "Após muitas discussões, deliberações e críticas, cheguei à conclusão de que jogar a Copa do Mundo no verão do Qatar simplesmente não é uma coisa responsável a fazer, apesar do fato de que eu sei muito bem que o Qatar tem os meios para desenvolver a melhor tecnologia de refrigeração. Foi um erro. É por isso que venho a público e sugiro ao Comitê Executivo da Fifa que reveja e analise as consequências de a Copa do Mundo 2022 seja disputada no inverno.” Assim foi feito.
Reuters
Estádio com ar condicionado
As temperaturas extremas fizeram o Qatar inaugurar a primeira arena do mundo com sistema de ar condicionado. Foi em maio do ano passado - o estádio Khalifa International também foi o primeiro a ficar pronto para o Mundial de 2022. Trata-se de um método complexo de refrigeração, com uma central de energia a 1 km do estádio e envolve fluxo de água gelada.
Desta maneira é possível produzir ar frio que é espalhado pelo estádio através de 500 saídas de ar. O objetivo é manter a temperatura no interior do local, que é aberto, em 26 graus, mesmo que o exterior passe de 50. O primeiro teste após o fim das obras foi a final da Copa do Emir, em que o Al Sadd venceu a final contra o Al Rayyan. O estádio começou a ser erguido antes da decisão de mudar as datas do Mundial, tomada em setembro de 2015.
Divulgação/Supremo Comitê da Copa-2022
"Novo rico" quer prestígio
Localizado sobre reservas de petróleo e gás natural, o Qatar é muito rico. O país tem a sexta maior renda per capta do mundo de acordo com o Banco Mundial – R$ 244,5 mil. Mas o país não tem o status mundial que gostaria. E vai usar a Copa do Mundo para conquistar prestígio.
A competição será suntuosa como se espera de um xeque árabe. O custo não é revelado porque transparência não é o forte do país. Mas o palco da abertura e da final do Mundial dá uma ideia de que a conta será elevadíssima. Ele foi batizado com o simbólico nome de Estádio Icônico de Lusail. Ao redor da obra está sendo construída uma cidade para até 450 mil pessoas. Não, você não leu errado.
Uma CIDADE está sendo construída especialmente para a Copa.
O custo é de faraônicos R$ 173 bilhões.
Usar o esporte como afirmação política não é novidade no Qatar. A empresa aérea Qatar Airways patrocina o Barcelona. Um fundo de investimentos do país também financiou a transferência de Neymar para o Paris St. Germains. Foram os árabes que pagaram o mais caro negócio da história do futebol (mais de R$ 820 milhões) e ainda pagam os salários do brasileiro. Lembrando: o fundo de investimentos do governo é dono de 70% do PSG.
Divulgação
"Estádio-Lego" será doado
O Estádio Ras Abu Aboud, em Doha, será o primeiro estádio desmontável da história das Copas. No anúncio do projeto, os organizadores afirmaram que o estádio será construído em blocos e contarão com assentos removíveis. “É o legado perfeito, capaz de ser remontado integralmente em um novo lugar ou dividido em partes menores de instalações de esporte e cultura”, disse o secretário-geral do comitê organizador, Hassan Al Thawadi.
A promessa é doar o Ras Abu Aboud a países em desenvolvimento. Ainda não foi explicado se a doação será da instalação completa para uma única nação ou se será feita a divisão, para beneficiar mais pessoas. O estádio está em construção e a promessa é de entrega em 2020 – ano em que todos os estádios estarão concluídos de acordo com os organizadores.
Além da possibilidade de ser doado, o Ras Abu Aboud é vendido pelo Qatar como uma obra de menor impacto ambiental. O argumento é que os blocos exigem menos material, geram menos lixo e reduzem a emissão de carbono.
EFE
A mancha do trabalho escravo
Por trás da riqueza e da suntuosidade em nome do tal prestígio internacional, a Copa do Mundo de 2022 é cercada por denúncias de trabalho escravo em obras de infraestrutura. A acusação é da Anistia Internacional, entidade que atua na proteção dos direitos humanos. Imigrantes pobres de países próximos, como Índia, Nepal e Bangladesh, estariam vivendo em condições humilhantes de trabalho e vida, como dormir amontoados com pouca higiene, entre baratas e submetidos a agressões.
O Governo nega essas e outras acusações, como as que dizem respeito a mortes por acidente de trabalho. De acordo com a imprensa inglesa, foram mais de 1.200 mortes diante destas condições sub-humanas de vida. Além disso, também existem relatos de apreensão de passaportes dos trabalhadores de outros países. Como o processo é conduzido com pouca transparência, a Fifa abriu investigação e exigiu providências. O emir diz que trata as pessoas com respeito.
Estima-se que de 500 mil a 1 milhão de trabalhadores entrará no país até o fim das obras.
"A violação de direitos dos trabalhadores migrantes é uma mancha na consciência do futebol mundial. Para jogadores e torcedores, um estádio de Copa do Mundo é um lugar de sonhos. Para alguns dos trabalhadores que conversaram conosco, pode ser como um pesadelo", disse o secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty.
Entre as denúncias, investigadas pela entidade desde 2016, baseadas em entrevistas com 132 operários do Estádio Khalifa Internacional e 99 paisagistas de um centro de treinamento, estão as seguintes reclamações: alojamentos sujos e apertados, pagamentos de grandes taxas a recrutadores em seu país de origem por um emprego no Qatar, mentiras dos contratantes sobre o salário, pressões financeiras e emocionais com demora do pagamento, empregadores que não renovaram autorização de residência, permitindo risco de detenção e deportação e confisco de passaportes para que eles não deixem o país.
Getty Images
Copa sem arco-íris
Se a Rússia já não foi um país amigável aos gays, no Qatar deve ser pior. O país considera crime o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, uma restrição que tem a ver com a religião islâmica. Em entrevista à agência de notícias "AP", o ministro dos Esportes do Qatar, Salah bin Ghanem bin Nasser al-Ali, disse que as pessoas que fossem à Copa do Mundo teriam que se adaptar ao sistema, lógica e leis do país, não o contrário. "Não queremos criar a impressão de que não nos importamos com nossa tradição e nossos valores éticos", disse, antes de indicar que o país poderia buscar "soluções criativas" para receber públicos "com outras preferências".
O Qatar é composto por sunitas do movimento salafista. Ele é ultraconservador, prega uma abordagem literal e rigorosa do islã e defende a Jihad, a luta armada contra os inimigos e infiéis. No país, há acusações de ajuda a grupos terroristas, como a Irmandade Muçulmana. Em 2014 e 2017, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes e Bahrein, os países mais poderosos do mundo árabe, cortaram laços com o Qatar. O bloqueio que isolou o país da próxima Copa tem origem no apoio ao terrorismo.
Quanto à comunidade gay, a primeira reação após a confirmação da Copa do Qatar foi de Joseph Blatter, então presidente da Fifa. Ele sugeriu que os gays "se abstivessem de relação sexual" durante o Mundial. O Qatar proíbe campanhas por direitos LGBT e a homossexualidade masculina já chegou a ser crime com cinco anos de prisão estipulada - hoje a pena vai de um a três anos.
Kamran Jebreili/AP
Desigualdade de gênero é outro desafio
Na Rússia, é preciso osso quebrado para atestar violência doméstica. No Qatar, a situação também é alarmante. A imensa maioria da população feminina não mostra o rosto quando caminha pelas ruas. As que fazem, evitam olhar para o lado para não serem mal interpretadas. A igualdade de gênero é uma realidade ainda mais distante na sede do próximo Mundial.
Um episódio que demonstra a realidade do Qatar foi a entrevista que a escritora Maryam Al-Subaiev deu a um canal francês que trata de assuntos árabes em 2016. Ela foi a primeira mulher catariana entrevistada em uma década e apareceu com a cabeça descoberta. Na sua terra natal, o gesto foi considerado falta de respeito e um ato vergonhoso. Ela reagiu dizendo que o caráter não está num pedaço de pano.
Além de menos direitos, as mulheres estão em menor número no Qatar. Elas correspondem a 36% da população. A diferença se explica porque o país atrai muitos trabalhadores estrangeiros, sendo a maioria homens. As profissionais que escolhem o país para seguir carreira muitas vezes entram em conflito com os costumes restritivos que a sociedade reserva às mulheres.
AFP
Escolha sob suspeita
A lisura da escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo sempre foi questionada. A Fifa decidiu não divulgar detalhes de sua investigação interna sobre o assunto. O responsável pelo trabalho, o americano Michael Garcia, renunciou ao cargo na sequência. Quando o relatório vazou, surgiu o nome de Ricardo Teixeira como possível beneficiário de corrupção.
Outro ex-presidente da CBF que está envolvido com a escolha da próxima sede da Copa é José Maria Marin. Ele foi condenado em seis de sete acusações feitas pela Justiça americana. A eleição do Qatar para sediar a Copa de 2022 é um dos assuntos investigados. O cartola estava no grupo de dirigentes presos em um hotel de luxo na Suíça em maio de 2015.
A escolha ainda custou a presidência da Fifa a Joseph Blatter. Pressionado e vendo aliados de longa data caindo ao seu redor, ele anunciou a abertura de um congresso para a escolha de um substituto em 2015. O suíço Gianni Infantino assumiu a entidade em 2016 - até hoje, Blatter está suspenso pela entidade.
Depois de dois Mundiais em países continentais, edição do Qatar será em uma nação do tamanho de Manaus
Felipe Pereira e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Petersburgo e São Paulo
Divulgação/Qatar Tourism Authority
Divulgação/Qatar Tourism Authority
Encerrada a Rússia-2018, prepare-se para uma Copa do Mundo como você nunca viu em quatro anos. O Qatar-2022 não será apenas o primeiro Mundial realizado no Oriente Médio: com área de cerca de 11.500 km², será o menor país que já recebeu o torneio.
Para você ter ideia das (pequenas) dimensões da nação da península arábica, seu tamanho equivale ao da cidade de Manaus. O estádio mais distante de Doha, a capital, está a apenas 35 km. E mais: quatro dos oito estádios planejados para a Copa estão na própria capital de 800 mil habitantes. As torcidas dos 32 países participantes [pelo menos esses são os planos atuais] basicamente ocuparão os mesmos lugares.
Outro detalhe: o torneio do Qatar também vai mudar o calendário dos campeonatos de futebol mundo afora, da Premier League ao Brasileirão.
Com o clima extremo do verão árabe, a Fifa marcou a Copa para os dias 21 de novembro e 18 de dezembro. É a primeira que não disputada no meio do ano, durante o verão europeu.
Internamente também há uma série de desafios a superar, especialmente no campo dos direitos humanos. O primeiro, e mais conhecido, é a denúncia de que operários trabalham nas obras da Copa em regime análogo à escravidão. As mulheres andam com os rostos cobertos. Ser gay lá é crime. Isso sem contar a eleição do país como sede, cercada de denúncias de corrupção que praticamente custaram a cabeça de Joseph Blatter.
Como forma de compensação (ou disfarce?), o Qatar promete instalações suntuosas e inovações tecnológicas. Você já está preparado?
Estádios próximos e mais ingressos que habitantes
Nos próximos quatro anos, o brasileiro vai cansar de escutar que "o Qatar é o menor país a já receber uma Copa do Mundo". Para se ter uma ideia da diferença em relação ao Brasil, que teve jogos no Amazonas e no Rio Grande do Sul, e à Rússia, que foi de Sochi a São Petersburgo, o estádio mais distante de Doha é o Al-Bayt, na cidade de Al-Khor, que fica a 35 quilômetros do centro da capital. Ou seja, a cada dia será possível escolher qual seleção e torcida acompanhar. Ou então acompanhar mais de uma.
Em condições normais, em menos de uma hora é possível circular entre os dois estádios mais distantes do próximo mundial. Outro atestado da falta de normalidade da próxima Copa: serão colocados à venda 2,8 milhões de ingressos. O número é maior do que os 2,5 milhões de habitantes do país-sede. As consequências no trânsito podem ser calamitosas. Imagine São Paulo em véspera de feriadão...
Vendo as pessoas e como elas se locomovem, estamos tentando imaginar como o tráfego vai fluir na Copa do Mundo. Nós estamos reconsiderando onde colocar a Fan Fest, por exemplo"
Nasser Al Khater, oficial sênior da Copa do Qatar
Mas também é possível que dê certo. As Olimpíadas concentram cerca de 30 instalações, geralmente em uma única cidade. E as coisas funcionam. Para se antecipar a possíveis problemas, a organização da primeira Copa do Oriente Médio enviou 180 pessoas à Rússia. Eles verificaram a paixão das torcidas, principalmente da América Latina, e prometem ajustes para evitar o caos.
Os estádios da Copa de 2022
Copa no fim do ano é admissão de erro da Fifa
Entre as peculiaridades da próxima Copa está a data. A final da Copa de 2022 será na mesma semana das festas de Natal. Com o fim do Mundial marcado para 18 de dezembro, todo o calendário do futebol terá de ser adequado. O Brasileirão e os outros campeonatos nacionais, por exemplo, terão um ano atípico. Nenhuma informação sobre como a adequação será feita no Brasil foi divulgada pela CBF, por exemplo, mas é improvável que o torneio não seja paralisado.
O motivo da mudança nas datas da Copa são as temperaturas extremas no verão do Qatar, onde os termômetros passam dos 50 graus. Lembrando que em junho e julho, os meses tradicionais do torneio para a Fifa, é verão no Qatar. A organização prometeu ar condicionado nos estádios, mas ainda assim resolveram mudar as datas.
A senha foi uma declaração do então presidente da Fifa, Joseph Blatter: "Após muitas discussões, deliberações e críticas, cheguei à conclusão de que jogar a Copa do Mundo no verão do Qatar simplesmente não é uma coisa responsável a fazer, apesar do fato de que eu sei muito bem que o Qatar tem os meios para desenvolver a melhor tecnologia de refrigeração. Foi um erro. É por isso que venho a público e sugiro ao Comitê Executivo da Fifa que reveja e analise as consequências de a Copa do Mundo 2022 seja disputada no inverno.” Assim foi feito.
Estádio com ar condicionado
As temperaturas extremas fizeram o Qatar inaugurar a primeira arena do mundo com sistema de ar condicionado. Foi em maio do ano passado - o estádio Khalifa International também foi o primeiro a ficar pronto para o Mundial de 2022. Trata-se de um método complexo de refrigeração, com uma central de energia a 1 km do estádio e envolve fluxo de água gelada.
Desta maneira é possível produzir ar frio que é espalhado pelo estádio através de 500 saídas de ar. O objetivo é manter a temperatura no interior do local, que é aberto, em 26 graus, mesmo que o exterior passe de 50. O primeiro teste após o fim das obras foi a final da Copa do Emir, em que o Al Sadd venceu a final contra o Al Rayyan. O estádio começou a ser erguido antes da decisão de mudar as datas do Mundial, tomada em setembro de 2015.
"Novo rico" quer prestígio
Localizado sobre reservas de petróleo e gás natural, o Qatar é muito rico. O país tem a sexta maior renda per capta do mundo de acordo com o Banco Mundial – R$ 244,5 mil. Mas o país não tem o status mundial que gostaria. E vai usar a Copa do Mundo para conquistar prestígio.
A competição será suntuosa como se espera de um xeque árabe. O custo não é revelado porque transparência não é o forte do país. Mas o palco da abertura e da final do Mundial dá uma ideia de que a conta será elevadíssima. Ele foi batizado com o simbólico nome de Estádio Icônico de Lusail. Ao redor da obra está sendo construída uma cidade para até 450 mil pessoas. Não, você não leu errado.
Uma CIDADE está sendo construída especialmente para a Copa.
O custo é de faraônicos R$ 173 bilhões.
Usar o esporte como afirmação política não é novidade no Qatar. A empresa aérea Qatar Airways patrocina o Barcelona. Um fundo de investimentos do país também financiou a transferência de Neymar para o Paris St. Germains. Foram os árabes que pagaram o mais caro negócio da história do futebol (mais de R$ 820 milhões) e ainda pagam os salários do brasileiro. Lembrando: o fundo de investimentos do governo é dono de 70% do PSG.
"Estádio-Lego" será doado
O Estádio Ras Abu Aboud, em Doha, será o primeiro estádio desmontável da história das Copas. No anúncio do projeto, os organizadores afirmaram que o estádio será construído em blocos e contarão com assentos removíveis. “É o legado perfeito, capaz de ser remontado integralmente em um novo lugar ou dividido em partes menores de instalações de esporte e cultura”, disse o secretário-geral do comitê organizador, Hassan Al Thawadi.
A promessa é doar o Ras Abu Aboud a países em desenvolvimento. Ainda não foi explicado se a doação será da instalação completa para uma única nação ou se será feita a divisão, para beneficiar mais pessoas. O estádio está em construção e a promessa é de entrega em 2020 – ano em que todos os estádios estarão concluídos de acordo com os organizadores.
Além da possibilidade de ser doado, o Ras Abu Aboud é vendido pelo Qatar como uma obra de menor impacto ambiental. O argumento é que os blocos exigem menos material, geram menos lixo e reduzem a emissão de carbono.
EFE
A mancha do trabalho escravo
Por trás da riqueza e da suntuosidade em nome do tal prestígio internacional, a Copa do Mundo de 2022 é cercada por denúncias de trabalho escravo em obras de infraestrutura. A acusação é da Anistia Internacional, entidade que atua na proteção dos direitos humanos. Imigrantes pobres de países próximos, como Índia, Nepal e Bangladesh, estariam vivendo em condições humilhantes de trabalho e vida, como dormir amontoados com pouca higiene, entre baratas e submetidos a agressões.
O Governo nega essas e outras acusações, como as que dizem respeito a mortes por acidente de trabalho. De acordo com a imprensa inglesa, foram mais de 1.200 mortes diante destas condições sub-humanas de vida. Além disso, também existem relatos de apreensão de passaportes dos trabalhadores de outros países. Como o processo é conduzido com pouca transparência, a Fifa abriu investigação e exigiu providências. O emir diz que trata as pessoas com respeito.
Estima-se que de 500 mil a 1 milhão de trabalhadores entrará no país até o fim das obras.
"A violação de direitos dos trabalhadores migrantes é uma mancha na consciência do futebol mundial. Para jogadores e torcedores, um estádio de Copa do Mundo é um lugar de sonhos. Para alguns dos trabalhadores que conversaram conosco, pode ser como um pesadelo", disse o secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty.
Entre as denúncias, investigadas pela entidade desde 2016, baseadas em entrevistas com 132 operários do Estádio Khalifa Internacional e 99 paisagistas de um centro de treinamento, estão as seguintes reclamações: alojamentos sujos e apertados, pagamentos de grandes taxas a recrutadores em seu país de origem por um emprego no Qatar, mentiras dos contratantes sobre o salário, pressões financeiras e emocionais com demora do pagamento, empregadores que não renovaram autorização de residência, permitindo risco de detenção e deportação e confisco de passaportes para que eles não deixem o país.
Copa sem arco-íris
Se a Rússia já não foi um país amigável aos gays, no Qatar deve ser pior. O país considera crime o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, uma restrição que tem a ver com a religião islâmica. Em entrevista à agência de notícias "AP", o ministro dos Esportes do Qatar, Salah bin Ghanem bin Nasser al-Ali, disse que as pessoas que fossem à Copa do Mundo teriam que se adaptar ao sistema, lógica e leis do país, não o contrário. "Não queremos criar a impressão de que não nos importamos com nossa tradição e nossos valores éticos", disse, antes de indicar que o país poderia buscar "soluções criativas" para receber públicos "com outras preferências".
O Qatar é composto por sunitas do movimento salafista. Ele é ultraconservador, prega uma abordagem literal e rigorosa do islã e defende a Jihad, a luta armada contra os inimigos e infiéis. No país, há acusações de ajuda a grupos terroristas, como a Irmandade Muçulmana. Em 2014 e 2017, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes e Bahrein, os países mais poderosos do mundo árabe, cortaram laços com o Qatar. O bloqueio que isolou o país da próxima Copa tem origem no apoio ao terrorismo.
Quanto à comunidade gay, a primeira reação após a confirmação da Copa do Qatar foi de Joseph Blatter, então presidente da Fifa. Ele sugeriu que os gays "se abstivessem de relação sexual" durante o Mundial. O Qatar proíbe campanhas por direitos LGBT e a homossexualidade masculina já chegou a ser crime com cinco anos de prisão estipulada - hoje a pena vai de um a três anos.
Kamran Jebreili/AP
Desigualdade de gênero é outro desafio
Na Rússia, é preciso osso quebrado para atestar violência doméstica. No Qatar, a situação também é alarmante. A imensa maioria da população feminina não mostra o rosto quando caminha pelas ruas. As que fazem, evitam olhar para o lado para não serem mal interpretadas. A igualdade de gênero é uma realidade ainda mais distante na sede do próximo Mundial.
Um episódio que demonstra a realidade do Qatar foi a entrevista que a escritora Maryam Al-Subaiev deu a um canal francês que trata de assuntos árabes em 2016. Ela foi a primeira mulher catariana entrevistada em uma década e apareceu com a cabeça descoberta. Na sua terra natal, o gesto foi considerado falta de respeito e um ato vergonhoso. Ela reagiu dizendo que o caráter não está num pedaço de pano.
Além de menos direitos, as mulheres estão em menor número no Qatar. Elas correspondem a 36% da população. A diferença se explica porque o país atrai muitos trabalhadores estrangeiros, sendo a maioria homens. As profissionais que escolhem o país para seguir carreira muitas vezes entram em conflito com os costumes restritivos que a sociedade reserva às mulheres.
Escolha sob suspeita
A lisura da escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo sempre foi questionada. A Fifa decidiu não divulgar detalhes de sua investigação interna sobre o assunto. O responsável pelo trabalho, o americano Michael Garcia, renunciou ao cargo na sequência. Quando o relatório vazou, surgiu o nome de Ricardo Teixeira como possível beneficiário de corrupção.
Outro ex-presidente da CBF que está envolvido com a escolha da próxima sede da Copa é José Maria Marin. Ele foi condenado em seis de sete acusações feitas pela Justiça americana. A eleição do Qatar para sediar a Copa de 2022 é um dos assuntos investigados. O cartola estava no grupo de dirigentes presos em um hotel de luxo na Suíça em maio de 2015.
A escolha ainda custou a presidência da Fifa a Joseph Blatter. Pressionado e vendo aliados de longa data caindo ao seu redor, ele anunciou a abertura de um congresso para a escolha de um substituto em 2015. O suíço Gianni Infantino assumiu a entidade em 2016 - até hoje, Blatter está suspenso pela entidade.