Fúria da cidade
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Naquela manhã em que as Torres Gêmeas caíram, o londrinense Fernando Botelho, 49, estava a poucas centenas de metros do World Trade Center. As imagens dos aviões que viraram bolas de fogo ao colidirem contra os arranha-céus estão na memória coletiva.
Embora Fernando estivesse lá, a uma distância suficientemente próxima para ser atingido caso os prédios não tivessem desmoronado sobre si mesmos, ele não assistiu à cena. Nem naquele dia, nem nunca.
Cego desde os 15, Fernando se recorda do dia que mudou o curso da história de uma forma diferente. "Toda aquela cinza no chão abafava o barulho da cidade. Não tinha barulho normal de trânsito, nem música nas lojas. E papéis para todo lado porque ali era tudo escritório, pisávamos em tudo", afirma.
Fernando sofre de retinose pigmentar, uma doença hereditária, degenerativa e sem cura, que atinge uma a cada 4 mil pessoas. Movido desde sempre por uma profunda vocação de ajudar os outros, o paranaense, nascido em Londrina, passou a buscar desde 2007 soluções para pessoas como ele, com algum tipo de deficiência visual. Como? Permitindo que elas tenham acesso ao computador para estudar e trabalhar.
"A acessibilidade na internet é importante para ter a educação à distância, para um estudante fazer as tarefas de casa ou interagir com os colegas de curso. Não ter acesso à tecnologia afeta a educação e futuras oportunidades de emprego", explica o fundador da F123, empresa social que reinveste todos os recursos arrecadados em projetos sem fins lucrativos.
Theo Marques/UOL
Tecnologia acessível
A primeira tecnologia lançada foi o F123 Visual, um sistema operativo adaptado e baseado em software livre. "Ele fala, vem com atalhos otimizados para quem é cego, vem com voz de boa qualidade, que não é mecânica", explica Fernando. A ferramenta não está mais disponível, mas o download gratuito foi feito por cerca de 2 mil pessoas.
Em 2015, o empresário criou o software F123 Acess, disponível em português, inglês e espanhol. A ferramenta melhora a usabilidade da internet, ou seja, reformata as páginas web automaticamente, incluindo plataformas como Facebook, YouTube e WhatsApp, tornando o conteúdo acessível a quem tem deficiência visual.
Gratuito, o software funcionava como uma extensão do navegador e foi usado em mais de 70 países até março de 2019, quando foi vendido para uma empresa americana. Atualmente, um acordo comercial impede que Fernando divulgue quantas pessoas foram impactadas pela ferramenta.
Filantropos, mas sobretudo fundações e agências governativas brasileiras e estrangeiras estão por trás dos financiamentos desses projetos. "No Brasil, você pode ter uma empresa convencional ou uma ONG, mas não existe o conceito de empresa social que reinveste os lucros na missão. Já no exterior esse tipo de empresa é mais aceita, por isso muitos financiamentos vêm de fora", explica Fernando.
Com os recursos, o empresário contrata a equipe que vai desenvolver o projeto e paga um salário para si mesmo. "Quando não tenho nenhum projeto, vivo das minhas economias. É o único jeito porque nunca sei se vão renovar o financiamento", diz.
A casa na qual Fernando vive no centro de Curitiba, no Paraná, é também o seu escritório. O dia a dia da empresa é tocado ao lado da sua mulher, Flávia de Paula. Ele não tem uma equipe fixa, mas contrata pessoas para cada projeto. O trabalho é feito remotamente. Até novembro de 2019, ele comandou um time de 16 pessoas, sobretudo desenvolvedores de software, mas também tradutores e analistas de comunicação.
Theo Marques/UOL
Atentado na escuridão
As lembranças de Fernando sobre o dia 11 de setembro de 2001 ainda são latentes em sua mente. Às 9h59 daquela terça-feira, ele tinha acabado de sair do metrô, uma estação depois do World Trade Center. O trem havia sido desviado por causa dos ataques às Torres Gêmeas, e ele estava numa rua que não conhecia.
Camisa, calça social e bastão-guia na mão, percebeu que algo grave estava acontecendo, mas o quê? Afinal era para ser mais um dia de trabalho em seu escritório em Manhattan.
Pedi ajuda para a primeira pessoa que passou perto. Uma mulher foi me guiando e de repente escutamos um barulho enorme, todo mundo começou a gritar e correr. Foi a queda do primeiro prédio."
Sua primeira preocupação foi sair do meio da rua para encontrar proteção num lugar fechado. "Aquela nuvem gigantesca de cinzas veio na nossa direção, quem olhou para trás ficou gritando e correndo", lembra.
Roupas e cabelos estavam embranquecidos pelos detritos. "Eu nem sabia, mas sentia que meu cabelo estava esquisito, meio endurecido". Ele se abrigou no subsolo de um prédio, junto com a multidão. Com os nova-iorquinos em estado de choque e a cidade em colapso, saiu de lá depois de algumas horas. Quase não havia mais sol, tapado pela cortina de fumaça. "Era um dia lindo, mas todo mundo falava 'nossa parece que está anoitecendo'", lembra.
Theo Marques/UOL
Cidadão do mundo
Nova York é só uma das cidades em que Botelho morou. Seu passaporte de cidadão do mundo exibe os carimbos de Argentina, Chile, Espanha, França, Ilhas Cayman, sem contar diversas cidades brasileiras.
Em 2007, ele se estabeleceu com a mulher em Curitiba. Da capital do Paraná, Fernando iniciou uma revolução que diariamente transforma a vida de milhares de cegos ao redor do mundo.
Antes de voltar ao Brasil, estudou sociologia na Universidade de Cornell e fez mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Georgetown, ambas nos Estados Unidos. Por uma coincidência, teve como colega de turma o então herdeiro do trono da Espanha, o hoje rei Filipe 6º. "Infelizmente não mantenho contato, não sou tão chique", brinca.
Entre 2004 e 2006, morou na Suíça, onde trabalhou na Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e, em seguida, atuou como diretor adjunto de serviços filantrópicos de um banco em Genebra. A experiência acumulada como desenvolvedor de projetos sociais para os maiores clientes do banco foi o estopim para ele mesmo se transformar num causador de transformações.
"Conheci muitos empreendedores sociais, no Brasil e no exterior, e pensei que era o meu momento de fazer algo nessa área", afirma.
"Tive que encarar a cegueira"
A estimativa da OMS (Organização Mundial da Saúde) é que a cegueira afete 39 milhões de pessoas em todo o mundo e que 246 milhões sofram de perda moderada ou severa da visão.
No caso da doença de Fernando, o mal consiste numa degeneração da retina, que provoca a perda progressiva da visão devido à morte dos cones e bastonetes, células responsáveis por receber a luz externa e enviá-la ao cérebro, formando uma imagem.
A mãe de Fernando percebeu quando ele tinha quatro anos que os filhos tinham dificuldades em encontrar os brinquedos espalhados pelo chão. Após o diagnóstico, Fernando tentou levar uma vida "mais ou menos normal".
Não era bom para esporte por causa da minha visão e tinha problemas com a leitura, mas eu andava sem bastão, até o momento que não dava mais eu fingir que não tinha deficiência visual. Tive que encarar."
Ele tinha 16 anos quando sua mãe perguntou: "Você não acha que você devia aprender Braille?". "Braille é para cego, eu falei. Aí, a ficha caiu", conta.
Enxergar por meio da tecnologia
A última empreitada de Fernando é o software Letícia, uma voz feminina sintetizada ágil, rápida e leve que permite que cegos usem o computador e o celular. Ela é baseada na voz da cantora Sara Bentes e pode ser baixada gratuitamente nos dispositivos Windows, Linux e Android.
Fernando não sabe exatamente quantas pessoas a usam diariamente, mas estima que seja cerca de 1 mil no Brasil, Portugal e Angola. Por enquanto é disponibilizada apenas em português, mas Fernando já tem planos para traduzi-la em outros idiomas.
"Tem países que são relativamente pobres, sobretudo na África, onde as empresas convencionais não se interessam em fazer uma voz sintética para os cegos", explica o empresário, que agora busca os recursos necessários para financiar o projeto.
Suas soluções inovadoras lhe renderam uma extensa lista de reconhecimentos nacionais e internacionais. Dois são os que mais se orgulha de ter conquistado: empreendedor social pela Ashoka, organização global que escolhe projetos de vanguarda, e o de empreendedor social de futuro da "Folha de S. Paulo", ambos em 2012.
Ter uma trajetória de sucesso não o exime de enfrentar uma luta diária contra desafios e obstáculos. O lançamento do Voiss, que chegou ao mercado com a promessa de ser o computador mais barato do mundo voltado para pessoas com deficiência visual. O produto era vendido entre R$ 400 e R$ 500, a metade do preço de um computador com as mesmas funções, mas teve as vendas suspensas depois de poucos meses.
"O pessoal gostou bastante, mas a gente viu que o processo de marketing, de fabricação, de distribuição ia ser muito complexo e a gente não conseguiu dar conta dentro do nosso orçamento", explica Fernando, que já está atrás de novos recursos para retomar a ideia.
Theo Marques/UOL
Aprender com o passado e desenhar o futuro
Ele não desanima. Já passou por momentos muito difíceis. Em 1989, aos 18 e já cego, se mudou sozinho para os Estados Unidos. Por dois anos, prestou exames de admissão para várias universidades, até ser aceito em Cornell.
A frustração com o insucesso do Voiss já foi superada. "Nossa missão nunca foi fazer software, computador ou algo específico, mas sim usar a tecnologia para melhorar o acesso à educação e ao emprego a pessoas com deficiência visual, independentemente da forma", explica. "Não temos escalada para fabricar um computador, mas aprendemos que o software que desenvolvemos é valioso e útil para a comunidade", completa.
Essa e outras experiências serão compartilhadas por Fernando na Expo 2020, realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, no fim de 2020. Até o momento, o seu projeto é o único brasileiro escolhido. Ele irá apresentar seu software e mostrar como é possível incluir crianças com deficiência na sala de aula e adultos no local de trabalho.
"O modelo ainda não está definido, mas a partir de outubro vou fazer apresentações e demonstrações de como funciona o computador Voiss e a voz Letícia para empresários que estarão na Expo", explica.
Homem culto, Fernando sabe que o software livre é a opção mais barata e flexível para melhorar o acesso à educação e ao trabalho de pessoas com deficiência. Mas é inteligente ao ponto de saber que a ciência não é remédio para todos os males.
Nossos problemas não podem ser resolvidos com a tecnologia. O que causa nossos problemas é o comportamento humano: egoísmo, momentos de fraqueza moral, de desonestidade, de impaciência. Nenhuma dessas coisas é solucionável com tecnologia".
Convivendo há mais de 30 anos com a cegueira, Fernando conta que recentemente a ciência avançou no tratamento da retinose pigmentar. Mas a cura ainda está em fase de teste e, sobretudo, inacessível do ponto de vista financeiro.
Algo que ele gostaria de poder enxergar novamente na vida? "O pôr do sol, quando você está no avião, e aquela camada de nuvens, aquele segmento que fica mais avermelhado, depois mais amarelado. É meio clichê de dizer, mas é bonito". Há como negar?
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/causadores-fernando-botelho-/index.htm#tematico-7
Embora Fernando estivesse lá, a uma distância suficientemente próxima para ser atingido caso os prédios não tivessem desmoronado sobre si mesmos, ele não assistiu à cena. Nem naquele dia, nem nunca.
Cego desde os 15, Fernando se recorda do dia que mudou o curso da história de uma forma diferente. "Toda aquela cinza no chão abafava o barulho da cidade. Não tinha barulho normal de trânsito, nem música nas lojas. E papéis para todo lado porque ali era tudo escritório, pisávamos em tudo", afirma.
Fernando sofre de retinose pigmentar, uma doença hereditária, degenerativa e sem cura, que atinge uma a cada 4 mil pessoas. Movido desde sempre por uma profunda vocação de ajudar os outros, o paranaense, nascido em Londrina, passou a buscar desde 2007 soluções para pessoas como ele, com algum tipo de deficiência visual. Como? Permitindo que elas tenham acesso ao computador para estudar e trabalhar.
"A acessibilidade na internet é importante para ter a educação à distância, para um estudante fazer as tarefas de casa ou interagir com os colegas de curso. Não ter acesso à tecnologia afeta a educação e futuras oportunidades de emprego", explica o fundador da F123, empresa social que reinveste todos os recursos arrecadados em projetos sem fins lucrativos.
Theo Marques/UOL
Tecnologia acessível
A primeira tecnologia lançada foi o F123 Visual, um sistema operativo adaptado e baseado em software livre. "Ele fala, vem com atalhos otimizados para quem é cego, vem com voz de boa qualidade, que não é mecânica", explica Fernando. A ferramenta não está mais disponível, mas o download gratuito foi feito por cerca de 2 mil pessoas.
Em 2015, o empresário criou o software F123 Acess, disponível em português, inglês e espanhol. A ferramenta melhora a usabilidade da internet, ou seja, reformata as páginas web automaticamente, incluindo plataformas como Facebook, YouTube e WhatsApp, tornando o conteúdo acessível a quem tem deficiência visual.
Gratuito, o software funcionava como uma extensão do navegador e foi usado em mais de 70 países até março de 2019, quando foi vendido para uma empresa americana. Atualmente, um acordo comercial impede que Fernando divulgue quantas pessoas foram impactadas pela ferramenta.
Filantropos, mas sobretudo fundações e agências governativas brasileiras e estrangeiras estão por trás dos financiamentos desses projetos. "No Brasil, você pode ter uma empresa convencional ou uma ONG, mas não existe o conceito de empresa social que reinveste os lucros na missão. Já no exterior esse tipo de empresa é mais aceita, por isso muitos financiamentos vêm de fora", explica Fernando.
Com os recursos, o empresário contrata a equipe que vai desenvolver o projeto e paga um salário para si mesmo. "Quando não tenho nenhum projeto, vivo das minhas economias. É o único jeito porque nunca sei se vão renovar o financiamento", diz.
A casa na qual Fernando vive no centro de Curitiba, no Paraná, é também o seu escritório. O dia a dia da empresa é tocado ao lado da sua mulher, Flávia de Paula. Ele não tem uma equipe fixa, mas contrata pessoas para cada projeto. O trabalho é feito remotamente. Até novembro de 2019, ele comandou um time de 16 pessoas, sobretudo desenvolvedores de software, mas também tradutores e analistas de comunicação.
Theo Marques/UOL
Atentado na escuridão
As lembranças de Fernando sobre o dia 11 de setembro de 2001 ainda são latentes em sua mente. Às 9h59 daquela terça-feira, ele tinha acabado de sair do metrô, uma estação depois do World Trade Center. O trem havia sido desviado por causa dos ataques às Torres Gêmeas, e ele estava numa rua que não conhecia.
Camisa, calça social e bastão-guia na mão, percebeu que algo grave estava acontecendo, mas o quê? Afinal era para ser mais um dia de trabalho em seu escritório em Manhattan.
Pedi ajuda para a primeira pessoa que passou perto. Uma mulher foi me guiando e de repente escutamos um barulho enorme, todo mundo começou a gritar e correr. Foi a queda do primeiro prédio."
Sua primeira preocupação foi sair do meio da rua para encontrar proteção num lugar fechado. "Aquela nuvem gigantesca de cinzas veio na nossa direção, quem olhou para trás ficou gritando e correndo", lembra.
Roupas e cabelos estavam embranquecidos pelos detritos. "Eu nem sabia, mas sentia que meu cabelo estava esquisito, meio endurecido". Ele se abrigou no subsolo de um prédio, junto com a multidão. Com os nova-iorquinos em estado de choque e a cidade em colapso, saiu de lá depois de algumas horas. Quase não havia mais sol, tapado pela cortina de fumaça. "Era um dia lindo, mas todo mundo falava 'nossa parece que está anoitecendo'", lembra.
Theo Marques/UOL
Cidadão do mundo
Nova York é só uma das cidades em que Botelho morou. Seu passaporte de cidadão do mundo exibe os carimbos de Argentina, Chile, Espanha, França, Ilhas Cayman, sem contar diversas cidades brasileiras.
Em 2007, ele se estabeleceu com a mulher em Curitiba. Da capital do Paraná, Fernando iniciou uma revolução que diariamente transforma a vida de milhares de cegos ao redor do mundo.
Antes de voltar ao Brasil, estudou sociologia na Universidade de Cornell e fez mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Georgetown, ambas nos Estados Unidos. Por uma coincidência, teve como colega de turma o então herdeiro do trono da Espanha, o hoje rei Filipe 6º. "Infelizmente não mantenho contato, não sou tão chique", brinca.
Entre 2004 e 2006, morou na Suíça, onde trabalhou na Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e, em seguida, atuou como diretor adjunto de serviços filantrópicos de um banco em Genebra. A experiência acumulada como desenvolvedor de projetos sociais para os maiores clientes do banco foi o estopim para ele mesmo se transformar num causador de transformações.
"Conheci muitos empreendedores sociais, no Brasil e no exterior, e pensei que era o meu momento de fazer algo nessa área", afirma.
"Tive que encarar a cegueira"
A estimativa da OMS (Organização Mundial da Saúde) é que a cegueira afete 39 milhões de pessoas em todo o mundo e que 246 milhões sofram de perda moderada ou severa da visão.
No caso da doença de Fernando, o mal consiste numa degeneração da retina, que provoca a perda progressiva da visão devido à morte dos cones e bastonetes, células responsáveis por receber a luz externa e enviá-la ao cérebro, formando uma imagem.
A mãe de Fernando percebeu quando ele tinha quatro anos que os filhos tinham dificuldades em encontrar os brinquedos espalhados pelo chão. Após o diagnóstico, Fernando tentou levar uma vida "mais ou menos normal".
Não era bom para esporte por causa da minha visão e tinha problemas com a leitura, mas eu andava sem bastão, até o momento que não dava mais eu fingir que não tinha deficiência visual. Tive que encarar."
Ele tinha 16 anos quando sua mãe perguntou: "Você não acha que você devia aprender Braille?". "Braille é para cego, eu falei. Aí, a ficha caiu", conta.
Enxergar por meio da tecnologia
A última empreitada de Fernando é o software Letícia, uma voz feminina sintetizada ágil, rápida e leve que permite que cegos usem o computador e o celular. Ela é baseada na voz da cantora Sara Bentes e pode ser baixada gratuitamente nos dispositivos Windows, Linux e Android.
Fernando não sabe exatamente quantas pessoas a usam diariamente, mas estima que seja cerca de 1 mil no Brasil, Portugal e Angola. Por enquanto é disponibilizada apenas em português, mas Fernando já tem planos para traduzi-la em outros idiomas.
"Tem países que são relativamente pobres, sobretudo na África, onde as empresas convencionais não se interessam em fazer uma voz sintética para os cegos", explica o empresário, que agora busca os recursos necessários para financiar o projeto.
Suas soluções inovadoras lhe renderam uma extensa lista de reconhecimentos nacionais e internacionais. Dois são os que mais se orgulha de ter conquistado: empreendedor social pela Ashoka, organização global que escolhe projetos de vanguarda, e o de empreendedor social de futuro da "Folha de S. Paulo", ambos em 2012.
Ter uma trajetória de sucesso não o exime de enfrentar uma luta diária contra desafios e obstáculos. O lançamento do Voiss, que chegou ao mercado com a promessa de ser o computador mais barato do mundo voltado para pessoas com deficiência visual. O produto era vendido entre R$ 400 e R$ 500, a metade do preço de um computador com as mesmas funções, mas teve as vendas suspensas depois de poucos meses.
"O pessoal gostou bastante, mas a gente viu que o processo de marketing, de fabricação, de distribuição ia ser muito complexo e a gente não conseguiu dar conta dentro do nosso orçamento", explica Fernando, que já está atrás de novos recursos para retomar a ideia.
Theo Marques/UOL
Aprender com o passado e desenhar o futuro
Ele não desanima. Já passou por momentos muito difíceis. Em 1989, aos 18 e já cego, se mudou sozinho para os Estados Unidos. Por dois anos, prestou exames de admissão para várias universidades, até ser aceito em Cornell.
A frustração com o insucesso do Voiss já foi superada. "Nossa missão nunca foi fazer software, computador ou algo específico, mas sim usar a tecnologia para melhorar o acesso à educação e ao emprego a pessoas com deficiência visual, independentemente da forma", explica. "Não temos escalada para fabricar um computador, mas aprendemos que o software que desenvolvemos é valioso e útil para a comunidade", completa.
Essa e outras experiências serão compartilhadas por Fernando na Expo 2020, realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, no fim de 2020. Até o momento, o seu projeto é o único brasileiro escolhido. Ele irá apresentar seu software e mostrar como é possível incluir crianças com deficiência na sala de aula e adultos no local de trabalho.
"O modelo ainda não está definido, mas a partir de outubro vou fazer apresentações e demonstrações de como funciona o computador Voiss e a voz Letícia para empresários que estarão na Expo", explica.
Homem culto, Fernando sabe que o software livre é a opção mais barata e flexível para melhorar o acesso à educação e ao trabalho de pessoas com deficiência. Mas é inteligente ao ponto de saber que a ciência não é remédio para todos os males.
Nossos problemas não podem ser resolvidos com a tecnologia. O que causa nossos problemas é o comportamento humano: egoísmo, momentos de fraqueza moral, de desonestidade, de impaciência. Nenhuma dessas coisas é solucionável com tecnologia".
Convivendo há mais de 30 anos com a cegueira, Fernando conta que recentemente a ciência avançou no tratamento da retinose pigmentar. Mas a cura ainda está em fase de teste e, sobretudo, inacessível do ponto de vista financeiro.
Algo que ele gostaria de poder enxergar novamente na vida? "O pôr do sol, quando você está no avião, e aquela camada de nuvens, aquele segmento que fica mais avermelhado, depois mais amarelado. É meio clichê de dizer, mas é bonito". Há como negar?
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/causadores-fernando-botelho-/index.htm#tematico-7