Balzac, o escritor da burguesia
Gustave Flaubert, já muito acostumado aos louros literários por seu “Madame Bovary” (1857), certa vez afirmou que Honoré de Balzac escrevia mal (“Que homem teria sido Balzac se soubesse escrever!”). A crítica é mal fundamentada, uma vez que Flaubert tem por base apenas a si mesmo, um escritor cheio de pruridos de estilo, onde a sintaxe, o vocabulário e o enredo eram trabalhados e retrabalhados à exaustão, ou seja, aquilo que em Flaubert é uma qualidade, em Balzac a mesma qualidade se transformaria em afetação. Pois o estilo de Balzac é uma invenção de Balzac, uma invenção posta em prática para atingir seus objetivos literários, sociais e econômicos, tudo ao mesmo tempo, e ele tinha pressa!
Flaubert levou cinco anos para concluir “Madame Bovary”; cinco anos para Balzac significavam uma eternidade. Ele trabalhava de forma assoberbada, apressadamente. A Literatura para Balzac era não apenas a arte à qual se destinara a cumprir, mas também o seu modo de ganhar dinheiro (passou a vida adquirindo imensas dívidas e fugindo de credores). Em sua fase mais produtiva, em cinco anos, escreveu mais romances e novelas do que Flaubert escreveu a vida toda. Em que se pese que Flaubert foi e é um grande escritor, e fez contribuições decisivas para a Literatura (sua influência está presente até os dias atuais), não quer dizer que Balzac não o foi e o é. Aliás, o autor de “Madame Bovary” foi bastante influenciado pelo próprio Balzac e até mesmo lhe serviu de modelo (“A mulher de trinta anos” – 1835). Em defesa de Flaubert, também podemos dizer que ele não foi o único a criticar Balzac e abordar a obra balzaquiana de forma superficial, sem penetrar a fundo na “Comédia humana”.
De qualquer modo, não estamos aqui querendo sobrepor quantidade à qualidade e Flaubert é por si só um grande escritor. Mas fato é que o autor da “Comédia humana”, essa imensa e pretenciosa invenção literária, para além de seus quase noventa romances e novelas, e suas mais de duas mil e quinhentas personagens inter-relacionadas e aparecerão em mais de um livro, contém, não uma, mas várias obras-primas. E isto só será conhecido por aqueles que penetrarem mais fundo na “Comédia humana”, não se contentando com a leitura de um ou dois romances. Entre esses leitores destacam-se escritores do calibre de Marcel
Proust, Émile
Zola, Charles
Dickens, Dostoyevsk
y,
Henry James,
Machado de Assis,
Monteiro Lobato,
Ítalo Calvino e muitos mais. E não foi por acaso que Balzac tornou-se o escritor preferido de Karl Marx. E Engels, em uma carta, declara à sua destinatária que aprendera com Balzac mais do que com “todos os historiadores professos, economistas e estatísticos do período juntos.”. Já Otto Maria Carpeaux, nas páginas que dedicou a Balzac na sua magnífica “História da literatura ocidental”, sentenciou: “A história do romance como gênero literário divide-se em duas épocas: antes e depois de Balzac. Com ele, até o termo mudou de sentido. Antes de Balzac, “romance” fora a relação de uma história extraordinária, “romanesca”, fora do comum. Depois, será o espelho do nosso mundo, dos nossos países, das nossas cidades e ruas, das nossas casas, dos dramas que se passam em nossos apartamentos e quartos.”.
Embora muito do “homem” Balzac se imiscua com as personagens de sua obra (Balzac era um católico conservador e adepto da Monarquia do “Antigo Regime”), no seu caso, a obra supera o autor. Homem de muitos desejos, Balzac a tudo se lançava com uma paixão voraz, desde conquistas amorosas, incluindo baronesas e marquesas, até empreendimentos e negócios mirabolantes, sempre terminados em insucessos, fora seu desejo de reconhecimento literário e também da sua genialidade. Contudo, ao se atirar à escrita, seu olhar arguto e de viés sociológico, o lançava a um furioso e minucioso escrutinar da vida como era vivida na primeira metade do século XIX, com a ascensão da burguesia, que teria a partir daí o “culto do dinheiro” como sua principal característica, hoje tão comum e tão banalizado. Sim, escritor da burguesia, e também o seu carrasco, sendo que é este o fato que o coloca na Literatura Ocidental como o “pai do Realismo” e como “pai do romance moderno”. Ler Balzac em sua época significava defrontar-se com verdades até então quase nunca abordadas nos romances, como, por exemplo, ser o casamento não o final feliz das histórias, mas bem o seu contrário, ser o “contrato” de casamento o começo das histórias e estas muitas vezes acabarem num bueiro nojento; ou ainda, o fato de se ter, ou não, uma nota de “vinte francos” no bolso, determinar o começo da desgraça ou da felicidade. Olhando por este caminho, acabaremos concordando com o autor, e o declararemos um “gênio”! Assim também pensava W. Somerset Mougham, que dizia ser Balzac o único escritor a quem atribuiria o epíteto de gênio, e que se tivesse que indicar um livro dele a quem nunca o tivesse lido, indicaria “O pai Goriot”.
Eis aí uma das obras-primas de Balzac, “O pai Goriot”, romance publicado em 1834, inicialmente como folhetim, em quatro tiragens seguidas da “Revue de Paris”, e depois em formato de livro, em 1835 (a história se passa em 1819, no período da Restauração, sob o reinado de Luís XVIII). Foi um enorme e escandaloso sucesso literário de Balzac, no qual, tomando uma pensão parisiense como epicentro do enredo, e utilizando um recurso de estilo que é quase como uma marca registrada em muitos de seus romances, vai lentamente nos introduzindo no lugar em que viremos a conhecer as principais personagens. Logo nos primeiros parágrafos de “O pai Goriot”, nos acena o autor com uma descrição que traz em seu bojo o que ali haverá de se passar:
“... Um parisiense que por lá se perdesse veria apenas pensões burguesas ou instituições, miséria ou tédio, velhice que morre, alegre mocidade aprisionada, forçada a trabalhar. Nenhum bairro de Paris é mais horrível e, digamos de passagem, mais desconhecido. A rue Neuve-Sainte-Geneviève, sobretudo, é como uma moldura de bronze, a única que convém a esta narrativa, para a qual o espírito nunca estaria demasiado preparado por cores escuras e ideias graves, assim como, de degrau em degrau, a luz vai diminuindo e a voz do guia se tornando mais débil enquanto o viajante desce às Catacumbas. Comparação exata! Quem afirmará o que é mais horrendo de ver, corações empedernidos ou crânios vazios?”.
E logo em seguida nos lança para dentro do lugar:
“... A fachada da pensão dá para um jardinzinho, de modo que fica em ângulo reto sobre a rue Neuve-Sainte-Geneviève, de onde aparece em todo o comprimento. Ao longo dessa fachada, entre a casa e o pequeno jardim, corre uma calha de pedra, de uma toesa de largura, diante da qual há uma aleia coberta de areia e orlada de gerânios, louros-rosa e romãzeiras, plantados em grandes vasos de louça azul e branca. Entra-se nessa alameda por uma portinha, encimada por uma tabuleta na qual se lê:
CASA VAUQUER
Pensão burguesa para os dois sexos e outros.”.
Homens e mulheres burgueses está claro. Resta saber os “outros” moradores e frequentadores da pensão. Em primeiro plano está o pai Goriot do título, como é chamado por todos, comerciante de sucesso, abriu mão de sua fortuna para casar bem as duas amadas filhas, que o abandonarão nos seus momentos mais difíceis (Quem hoje não conhece uma história parecida?). Ainda no primeiro plano do enredo, encontramos Eugène de Rastignac, jovem estudante de Direito, de origem nobre porém decadente e, principalmente, pobre, no qual a família investiu tudo o que tinha na esperança de que ele viesse a alcançar sucesso financeiro; Rastignac ainda é ingênuo e puro, mas está a caminho de conseguir um bom passe para penetrar na alta sociedade de Paris, tornar-se-á amante de Delphine (casada com o Barão de Nucingen, banqueiro inescrupuloso), que é uma das filhas ingratas do pai Goriot; com o decorrer dos anos, o nome “Rastignac” tornou-se sinônimo de arrivista, na França, um homem capaz de tudo para atingir seus fins, um escalador social, um tipo de lobo em pele de cordeiro, e que, por ser tão comum nos dias de hoje, poderíamos publicar aqui uma lista de nomes bastante conhecidos. Não muito distante do primeiro plano, encontraremos Vautrin, um corruptor e contraventor nato, um homem misterioso, com muitos nomes, quase uma encarnação satânica, que pratica o bem e o mau com o mesmo prazer, tem envolvimento com a Polícia mas também com o mundo bandido dos criminosos e assassinos, e que hoje poderíamos, salvo a enorme inteligência dessa personagem, compará-lo com políticos locais ou milicianos que trafegam nas bordas do Poder.
Pronto! O lauto jantar já pode ser servido! E a partir daí poderemos experimentar um prazer de ler quase palatável, capaz de rivalizar com aquilo que a gastronomia francesa tem de melhor para nos oferecer. Contudo, embora essas personagens nos sejam muito familiares, não podemos dizer que a obra de Balzac ainda é amplamente atual e que não envelheceu. Sim, envelheceu, como a máquina a vapor de Watt também envelheceu, mas sua razão e significado não. Olhando para as personagens de seus melhores romances e novelas, percebemos nelas não só características que nos são familiares, como nelas também encontramos os antepassados e os mestres dos seres humanos com os quais compartilhamos os dias atuais, nas pequenas e nas grandes cidades, nas ruas, nas casas lotéricas, nas casas de penhores, nos botecos e restaurantes, nas festas e saraus, nos meios de comunicação, nas capas de revistas e jornais, na TV e nas redes sociais. Balzac afirmava categoricamente que suas personagens eram absolutamente reais e que suas histórias eram a pura verdade. E não estamos falando apenas de “O Pai Goriot”, mas também de “Eugenia Grandet”, de “O lírio do Vale”, de “Ursula Mirouët”, de “Ilusões Perdidas”, de “Esplendores e misérias das cortesãs”... Mas real, ou não, verdade, ou não, talvez não sejam de fato importantes. Importante mesmo é poder penetrar nos romances e novelas de Balzac, poder voltar no tempo e logo e então sentir este tempo ali capturado voltar a se mover, e se nos entregamos a esse mover-se do tempo, quase que sentimos os cheiros dos ambientes e aspiramos o pó que paira no ar: creio que é isso que, em Literatura, chamamos de Arte. E por ser Arte, talvez nela sempre estaremos salvos... do presente? e também daquilo que o futuro, em nossos tempos sombrios, na política e na saúde pública, nos proporcionará ou não?
León Goslan, escritor e dramaturgo, amigo de Balzac, conta que, em uma conversa com Vidocq sobre o que é ou não a realidade (Vidocq é o homem verdadeiro que foi o inspirador de Vautrin), Balzac teria dito o seguinte:
“— Sim, sr. Vidocq. Olhe: a verdadeira realidade é este belo pêssego de Montreuil. Aquele que o senhor chamaria real brota naturalmente na floresta, num pé bravo. Pois bem, esse não vale nada, é pequeno, ácido, amargo, impossível de se comer. Eis porém o pêssego real, o que estou segurando, que foi cultivado durante cem anos, que se obteve por certa poda à esquerda ou à direita, por certa transplantação num terreno seco ou leve, por certo enxerto; o pêssego, afinal, que se come, que perfuma a boca e o coração. Este pêssego delicioso fomos nós que o fizemos: é o único real. O meu processo é o mesmo. Obtenho a realidade nos meus romances como Montreuil obtém a realidade nos seus pêssegos. Sou jardineiro em livros.”.
Se verdadeira, e gosto de pensar que sim, mas pouco importa, pois que é muito provável, podemos ver nessa conversa um pouco da Arte salvadora praticada por Balzac. E talvez só nela encontremos por hora a resposta para nossas dúvidas.
Para o leitor interessado, a internet disponibiliza hoje muitos livros gratuitos de Honoré de Balzac, a maioria em francês, inglês e espanhol. Mas em uma busca bem refinada, posso afirmar que o leitor poderá até mesmo encontrar vários livros da “Comédia Humana” em português, e na edição da editora Globo, de 1954, organizada pelo incansável e insubstituível Paulo Rónai (a última edição é de 1992), que contou com a colaboração de cerca de vinte excelentes tradutores e que nos fornece uma verdadeira festa de notas explicativas que, ao invés de tornar a leitura cansativa, torna-a mais apreciável. Essa edição é considerada pelos especialistas franceses a melhor já publicada fora da França, superando em qualidade todas as demais edições estrangeiras. Balzac levou vinte anos para escrever a sua “Comédia Humana”, e Paulo Rónai trabalhou por quinze anos em sua organização editorial no Brasil, o que por si só também já é algo assombroso. Aliás, Balzac não merece menor atenção! E Paulo Rónai também!
João José de Melo Franco é poeta, contista e editor