Bruce Torres
Let's be alone together.
Netflix, pirataria e por que eu não abro mão de meus DVDs
Roberto Sadovski 26/10/2017 03h00
É impossível formar um cinéfilo pelo Netflix. Não me entenda mal. O serviço de streaming surgiu como uma alternativa brilhante para as já jurássicas locadoras, oferecendo um catálogo amplo para que, sem sair debaixo do edredom, o fã de cinema escolha sua diversão na ponta dos dedos. Mais ainda: desde que começou a criar seu próprio conteúdo, o Netflix redesenhou o panorama da produção audiovisual no mundo, oferecendo mais espaço para artistas e mais alternativas inéditas para o público. Mas não muda o fato de ser impossível formar um cinéfilo usando o serviço. O motivo? Os filmes necessários para isso simplesmente não estão lá.
Organizar uma lista dos filmes essenciais para nutrir a paixão pelo cinema é tarefa para uma vida inteira. Então fui atrás de uma relação com pedigree, a dos 100 melhores filmes de todos os tempos do AFI, o American Film Institute. Não é nada definitivo, cobre apenas a produção cinematográfica dos Estados Unidos, mas é um bom ponto de partida. Dos dez filmes no topo, apenas dois estão no catálogo do Netflix: O Poderoso Chefão (o segundo no ranking) e Um Corpo que Cai (o nono). Estiquei a busca para o Top 15 e pintaram mais dois títulos: Star Wars (o décimo-terceiro) e Psicose (décimo-quarto). Sem dar as caras, ficamos com Casablanca, Touro Indomável, Cantando na Chuva, E o Vento Levou, Lawrence da Arábia, A Lista de Schindler, O Mágico de Oz, Luzes da Cidade, Rastros de Ódio e 2001: Uma Odisseia no Espaço. Ah, e Cidadão Kane, que está no topo do ranking, nem sinal.
Daí a gente começa a expandir a busca tendo em vista esse ponto de partida. Não há nada de Chaplin. De John Ford, dois documentários em curta-metragem produzidos durante a Segunda Guerra Mundial. Stanley Kubrick surge com Spartacus e De Olhos Bem Fechados. Nada de David Lean. Ou Michael Curtiz. Ou Victor Fleming. A década de 50 é representada por três títulos (Janela Indiscreta, 1954; Os Dez Mandamentos, 1956; Um Corpo Que Cai, 1958). São onze os títulos da década seguinte. Pouco menos de duas dúzias dos anos 70 – um dos períodos mais criativos, inovadores e sensacionais do cinema ianque. O que transborda no Netflix são filmes do novo século, produções modernas e bacanas. É um ótimo garimpo para descobrir novos nomes, para ver o que o cinema e a TV anda voltando seu olhar. Mas é também uma visão imediatista, voltada para o público consumir que busca produtos, não conhecimento. Não é nenhum pecado, claro. Mas de forma alguma é o ideal para quem gosta de cinema.
Essa pulga veio para trás de minha orelha quando um amigo, antes de assistir a Blade Runner 2049, queria refrescar a memória revendo o original que Ridley Scott lançou em 1982. Não está disponível no Netflix.E também, bizarramente, encontra-se fora de catálogo no mercado (acredito que uma nova versão esteja a caminho). Ele não queria apelar para os cine-torrent da vida e pediu minha cópia emprestada – em bluray, bonitinha, ao alcance da mão em minha estante. E é isso que sobra quando a vontade aperta: piratear ou apelar para os fósseis como eu, que não abrem mão de mídia física. Mas colecionadores são cada vez mais raros. A disponibilidade de DVDs ou blurays com filmes essenciais é cada vez mais restrita. Dessa forma, gerações de cinéfilos estão deixando de existir porque os filmes simplesmente não existem para ser apreciados – em nenhuma plataforma! Tirando os títulos mais óbvios (e olhe lá), uma olhada nas estantes das lojas que ainda resistem na venda da mídia física mostra opções parecidas com o que encontramos em streaming.
Quando eu comecei a levar a sério a paixão pelo cinema, morava em uma cidade com dois cinemas. Ou seja, era impossível matar a sede de novidades a cada semana – férias, então, era Trapalhões, Xuxa e animações. E só. A locadora era meu templo, e de lá eu sempre saia carregado de novidades. Quando as distribuidoras passaram a operar de forma oficial no Brasil, lá atrás nos anos 80, houve uma vontade gigante de colocar o maior número de títulos possível à disposição. Foi uma enxurrada de clássicos de todas as décadas, acompanhados da podreira produzida ao preço de um quiabo que acompanhava cada Rambo ou Conan ou Exterminador do Futuro ou Tubarão da vida. Eu tinha um acordo simples com meu pai: podia alugar meia dúzia de filmes para o fim de semana (pega sexta, devolve segunda, tudo rebobinado!), se sempre trouxesse um clássico no pacote. Foi daí que descobri Rio Bravo. A Marca da Maldade. Laranja Mecânica. O Jovem Frankenstein. Um Estranho no Ninho. Hitchcock. Kubrick. Ford. Chaplin. Leone. Ashby. E os “jovens” Carpenter, Scorsese, Coppola, Lucas, Spielberg, Cimino.
Descobrir o cinema alimenta a paixão. Uma cidade como São Paulo ainda abre espaço para cinemas fora do circuitão comercial, com festivais e mostras e retrospectivas e sessões especiais. Ainda é possível rever filmes fundamentais em tela grande. Mas o que fazer quando o CEP não abriga mais que dois cinemas e, agora, sem a alternativa de videolocadoras com acervos gigantes? O Netflix começou duas décadas atrás como um serviço de aluguel e venda de DVDs pelo correio. Dez anos depois, e com mais de 1 bilhão de discos já circulados nos envelopes vermelhos da empresa, seus fundadores passaram a investir em serviços de streaming e video on demand. O conforto de não ter de lidar mais com a mídia física fisgou o consumidor, e na década seguinte a empresa se tornou o colosso de hoje: se havia um plano para mudar o panorama do mercado de entretenimento mundial, ele foi atingido com louvor. House of Cards foi sua primeira produção, e o objetivo claro é de ter mais e mais conteúdo próprio - com cada estúdio, como a Disney, aos poucos construindo sua própria plataforma.
Essa pulverização, esse momento em que as produtoras se tornem suas próprias distribuidoras para conteúdo via internet, possa ser a esperança do filme clássico. Assim como a oficialização do VHS, a explosão do DVD e o respiro do bluray, cada novo formato traz consigo relançamentos de títulos fundamentais. O tempo, porém, age como filtro. E o público, cada vez mais direcionado ao imediatismo e ao consumo do blockbuster da vez, pode sequer demonstrar interesse – e você não pode desejar aquilo que sequer conhece. Por isso que eu não abro mão nem do garimpo de filmes em mídia física (que eu possa tocar, ler o encarte, colocar na estante) e nem de minha coleção de velharias. Alguns títulos estão perdidos no tempo, preservados pela teimosia de colecionadores que insistem em espalhar sua paixão – e por algumas empresas que ainda colocam a arte à frente do business. Meu amigo, por sinal, assistiu a Blade Runner aqui em casa. Eu não empresto meus filmes.
Fonte: https://robertosadovski.blogosfera....taria-e-por-que-eu-nao-abro-mao-de-meus-dvds/
Roberto Sadovski 26/10/2017 03h00
É impossível formar um cinéfilo pelo Netflix. Não me entenda mal. O serviço de streaming surgiu como uma alternativa brilhante para as já jurássicas locadoras, oferecendo um catálogo amplo para que, sem sair debaixo do edredom, o fã de cinema escolha sua diversão na ponta dos dedos. Mais ainda: desde que começou a criar seu próprio conteúdo, o Netflix redesenhou o panorama da produção audiovisual no mundo, oferecendo mais espaço para artistas e mais alternativas inéditas para o público. Mas não muda o fato de ser impossível formar um cinéfilo usando o serviço. O motivo? Os filmes necessários para isso simplesmente não estão lá.
Organizar uma lista dos filmes essenciais para nutrir a paixão pelo cinema é tarefa para uma vida inteira. Então fui atrás de uma relação com pedigree, a dos 100 melhores filmes de todos os tempos do AFI, o American Film Institute. Não é nada definitivo, cobre apenas a produção cinematográfica dos Estados Unidos, mas é um bom ponto de partida. Dos dez filmes no topo, apenas dois estão no catálogo do Netflix: O Poderoso Chefão (o segundo no ranking) e Um Corpo que Cai (o nono). Estiquei a busca para o Top 15 e pintaram mais dois títulos: Star Wars (o décimo-terceiro) e Psicose (décimo-quarto). Sem dar as caras, ficamos com Casablanca, Touro Indomável, Cantando na Chuva, E o Vento Levou, Lawrence da Arábia, A Lista de Schindler, O Mágico de Oz, Luzes da Cidade, Rastros de Ódio e 2001: Uma Odisseia no Espaço. Ah, e Cidadão Kane, que está no topo do ranking, nem sinal.
Daí a gente começa a expandir a busca tendo em vista esse ponto de partida. Não há nada de Chaplin. De John Ford, dois documentários em curta-metragem produzidos durante a Segunda Guerra Mundial. Stanley Kubrick surge com Spartacus e De Olhos Bem Fechados. Nada de David Lean. Ou Michael Curtiz. Ou Victor Fleming. A década de 50 é representada por três títulos (Janela Indiscreta, 1954; Os Dez Mandamentos, 1956; Um Corpo Que Cai, 1958). São onze os títulos da década seguinte. Pouco menos de duas dúzias dos anos 70 – um dos períodos mais criativos, inovadores e sensacionais do cinema ianque. O que transborda no Netflix são filmes do novo século, produções modernas e bacanas. É um ótimo garimpo para descobrir novos nomes, para ver o que o cinema e a TV anda voltando seu olhar. Mas é também uma visão imediatista, voltada para o público consumir que busca produtos, não conhecimento. Não é nenhum pecado, claro. Mas de forma alguma é o ideal para quem gosta de cinema.
Essa pulga veio para trás de minha orelha quando um amigo, antes de assistir a Blade Runner 2049, queria refrescar a memória revendo o original que Ridley Scott lançou em 1982. Não está disponível no Netflix.E também, bizarramente, encontra-se fora de catálogo no mercado (acredito que uma nova versão esteja a caminho). Ele não queria apelar para os cine-torrent da vida e pediu minha cópia emprestada – em bluray, bonitinha, ao alcance da mão em minha estante. E é isso que sobra quando a vontade aperta: piratear ou apelar para os fósseis como eu, que não abrem mão de mídia física. Mas colecionadores são cada vez mais raros. A disponibilidade de DVDs ou blurays com filmes essenciais é cada vez mais restrita. Dessa forma, gerações de cinéfilos estão deixando de existir porque os filmes simplesmente não existem para ser apreciados – em nenhuma plataforma! Tirando os títulos mais óbvios (e olhe lá), uma olhada nas estantes das lojas que ainda resistem na venda da mídia física mostra opções parecidas com o que encontramos em streaming.
Quando eu comecei a levar a sério a paixão pelo cinema, morava em uma cidade com dois cinemas. Ou seja, era impossível matar a sede de novidades a cada semana – férias, então, era Trapalhões, Xuxa e animações. E só. A locadora era meu templo, e de lá eu sempre saia carregado de novidades. Quando as distribuidoras passaram a operar de forma oficial no Brasil, lá atrás nos anos 80, houve uma vontade gigante de colocar o maior número de títulos possível à disposição. Foi uma enxurrada de clássicos de todas as décadas, acompanhados da podreira produzida ao preço de um quiabo que acompanhava cada Rambo ou Conan ou Exterminador do Futuro ou Tubarão da vida. Eu tinha um acordo simples com meu pai: podia alugar meia dúzia de filmes para o fim de semana (pega sexta, devolve segunda, tudo rebobinado!), se sempre trouxesse um clássico no pacote. Foi daí que descobri Rio Bravo. A Marca da Maldade. Laranja Mecânica. O Jovem Frankenstein. Um Estranho no Ninho. Hitchcock. Kubrick. Ford. Chaplin. Leone. Ashby. E os “jovens” Carpenter, Scorsese, Coppola, Lucas, Spielberg, Cimino.
Descobrir o cinema alimenta a paixão. Uma cidade como São Paulo ainda abre espaço para cinemas fora do circuitão comercial, com festivais e mostras e retrospectivas e sessões especiais. Ainda é possível rever filmes fundamentais em tela grande. Mas o que fazer quando o CEP não abriga mais que dois cinemas e, agora, sem a alternativa de videolocadoras com acervos gigantes? O Netflix começou duas décadas atrás como um serviço de aluguel e venda de DVDs pelo correio. Dez anos depois, e com mais de 1 bilhão de discos já circulados nos envelopes vermelhos da empresa, seus fundadores passaram a investir em serviços de streaming e video on demand. O conforto de não ter de lidar mais com a mídia física fisgou o consumidor, e na década seguinte a empresa se tornou o colosso de hoje: se havia um plano para mudar o panorama do mercado de entretenimento mundial, ele foi atingido com louvor. House of Cards foi sua primeira produção, e o objetivo claro é de ter mais e mais conteúdo próprio - com cada estúdio, como a Disney, aos poucos construindo sua própria plataforma.
Essa pulverização, esse momento em que as produtoras se tornem suas próprias distribuidoras para conteúdo via internet, possa ser a esperança do filme clássico. Assim como a oficialização do VHS, a explosão do DVD e o respiro do bluray, cada novo formato traz consigo relançamentos de títulos fundamentais. O tempo, porém, age como filtro. E o público, cada vez mais direcionado ao imediatismo e ao consumo do blockbuster da vez, pode sequer demonstrar interesse – e você não pode desejar aquilo que sequer conhece. Por isso que eu não abro mão nem do garimpo de filmes em mídia física (que eu possa tocar, ler o encarte, colocar na estante) e nem de minha coleção de velharias. Alguns títulos estão perdidos no tempo, preservados pela teimosia de colecionadores que insistem em espalhar sua paixão – e por algumas empresas que ainda colocam a arte à frente do business. Meu amigo, por sinal, assistiu a Blade Runner aqui em casa. Eu não empresto meus filmes.
Fonte: https://robertosadovski.blogosfera....taria-e-por-que-eu-nao-abro-mao-de-meus-dvds/