Anica
Usuário
Saiu na Época, artigo de Luís Antônio Giron.
[size=large]Os quadrinhos podem destruir a literatura [/size]
[size=small]Como as adaptações banalizam as obras-primas sob pretexto de facilitar a leitura[/size]
Observo um fato cada vez mais frequente: o desprezo dos jovens por certas obras literárias, sobretudo as adotadas nas escolas e exigidas no vestibular. Os estudantes já não têm paciência para lidar com Iracema, de José de Alencar, Dom Casmurro, de Machado de Assis, O Ateneu, de Raul Pompeia, e nem mesmo conseguem tirar proveito das humorísticas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Eles tratam os títulos que acabei de citar com uma falta absoluta de respeito – pior, uma falta de noção de respeito. Não entendem a grandeza desses e outros grandes romances do passado. Os professores, por seu turno, não parecem fazer questão de transmitir um entusiasmo literário que eles próprios não possuem. Os professores jogaram a toalha. Aí tudo se torna rotineiro e entediante como uma lição de casa que não pode ser executada. Quanto mais são obrigados a ler, mais os jovens repudiam os livros. Eles já não veem sentido no ato da leitura, até porque são encorajados pelos mais velhos a se valer da internet, dos videogames e da televisão, em detrimento dos meios tradicionais.
Muitos pensam que ser moderno significa não precisar mais ler. Daí o apelo dos tablets: essas tabuletas altamente tecnológicas são os novos aparelhos de televisão, receptores ideais para analfabetos ou cidadãos pós-alfabetizados. Gente que não precisa mais enfrentar um texto com começo, desenvolvimento e conclusão, que adora a fragmentação. Os mesmos que exaltam os tablets acham que o ensino tradicional não consegue mais acompanhar a evolução tecnológica. Então, o que pôr no lugar da tradição? Claro, como não pensamos nisto antes? Se os estudantes querem diversão, vamos dar-lhes histórias em quadrinhos – de preferência, em monitores de LED, via tablets.
Mas a transposição pura e simples não é o problema. As formas e conteúdos podem migrar à vontade, eternamente. A questão é outra: os quadrinhos andam tão salientes que avançam pelo campo literário com avidez dos bárbaros e autoconfiança dos consagrados. As adaptações em HQ de obras literárias e teatrais têm surgido a cada minuto, para supostamente acrescentar algo aos textos originais. Elas vêm abençoadas pela crítica e aprovadas pelo olhar indulgente dos adultos que desacreditam de tudo, notadamente da capacidade de ler das novas gerações. E os jovens correspondem à expectativa, consumindo quadrinhos literários para evitar dar conta de livros que não têm paciência para ler. Como resultado, essas adaptações têm feito um desserviço à literatura – e à cultura como um todo. São, em geral, transposições de má qualidade, criadas por editores oportunistas, sequiosos de aproveitar a falta de vontade de ler da mocidade. Sob o pretexto de facilitar a leitura, esse tipo de adaptação destrói a vontade de ler. Traz um atalho enganoso. Isso porque, em vez de encurtar o caminho, o atalho elimina uma etapa importante da formação do jovem: a da compreensão, análise e, por consequência, do domínio de textos complexos. Ora, para mim isso configura um crime.
Não vou me deter em exemplos de adaptações infelizes, que são inúmeros. Já me deparei com muitas adaptações, em quadrinhos ou não, porque minhas duas filhas estão se preparando para o vestibular e precisam ler o maior número de obras consagradas no menor tempo possível. Percebi que, nas provas do ensino médio, elas recorriam aos famigerados resumos de obras na internet, copiando nomes e ações sem sentido e sem contextualização. Para obter alguma interpretação das obras, elas recorriam às histórias em quadrinhos, aliás recomendadas pelo colégio. Elas leram assim Os Lusíadas, de Camões, Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, e até Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Não preciso dizer que se tratava de transposições forçadas, mal realizadas e desprezíveis – cheias de erros de português e, pior, erros de interpretação das obras originais. Uma versão de Memórias de um sargento de milícias, por exemplo, traz um vocabulário pobre no final das páginas, sem nenhuma explicação sobre o emprego de determinados termos. As ilustrações são feias e caricatas, limitando-se a servir aos balões e descrições extraídas diretamente do livro. Bom, diante de tanta bandalheira, decidi banir de casa essas HQs. Até entendo algumas adaptações facilitadoras de livros universais, como a que Clarice Lispector fez de Dom Quixote, ou Fernando Sabino de Silvia, de Gerard de Nerval. Esses livrinhos servem como rito de passagem para dificuldades maiores a serem vencidas num estágio posterior. Adaptações literárias em geral geram uma perda de informação. Obviamente, a melhor lei não é a do menor esforço, e esses livros servem como incentivo a futuras viagens de leitura. O que não perdoo são adaptações ruins e quadrinhos malfeitos, que só envergonham o gênero.
Convém não confundir certos quadrinhos oportunistas com a grande arte estabelecida por Will Eisner, Crumb, Frank Miller, Alan Moore e Joe Sacco, entre outros. As HQs nasceram na imprensa e jamais negaram sua vocação popular. Aos poucos, foram experimentando uma ascensão intelectual e artística, graças aos artistas que fizeram delas o seu meio de expressão. Repare que esses grandes artistas dificilmente se submetem a adaptações feitas diretamente de uma obra. Um dos artistas de quadrinhos brasileiros que lidou com a série literária foi o quadrinista carioca Flavio Colin (1930-2002). Colin foi um verdadeiro mestre da transcriação. Ele por exemplo recriou histórias do sertão mineiro no volume Estórias Gerais, uma graphic novel em parceria com o mineiro Wellington Srbek, lançada em 2001 e reeditada pela Conrad em 2007. Ali está a síntese transfiguradora dos mundos de Guimarães Rosa, de João Cabral, de Ariano Suassuna e Dias Gomes. Colin também adaptou, com André Diniz, as aventuras do coronel Fawcett. Fawcett foi lançado pela Devir Livraria, e vale a leitura, mesmo porque a tragédia do explorador inglês em busca do Eldorado vai virar filme - em uma adaptação do livro A cidade perdida, do jornalista David Gann. A HQ de Diniz e Colin é melhor que a pesquisa de Gann no que se refere à narrativa, um exemplo da grandeza a que o gênero pode assumir, sem medo de ser equiparada a obras literárias. Esses artistas são criadores cujos universos hoje são adaptados para outras formas de arte.
Sou um admirador dos quadrinistas. Os gibis e romances gráficos estimulam minha imaginação, algo que nenhum livro seria capaz de proporcionar. Algumas das melhores ideias do cinema vêm hoje dos quadrinhos. O Brasil experimenta uma fase de produção de alta valor nessa área. Não há como negar a influência dos quadrinhos na cultura atual. O problema é o uso que se faz deles. A culpa não é da HQ, mas da qualidade das adaptações. É de quem aceita o recurso fácil de ler tudo depressa. Infelizmente, os quadrinhos são inocentes úteis, pois viraram instrumentos eficientes para a desmoralização da literatura.
[size=large]Os quadrinhos podem destruir a literatura [/size]
[size=small]Como as adaptações banalizam as obras-primas sob pretexto de facilitar a leitura[/size]
Observo um fato cada vez mais frequente: o desprezo dos jovens por certas obras literárias, sobretudo as adotadas nas escolas e exigidas no vestibular. Os estudantes já não têm paciência para lidar com Iracema, de José de Alencar, Dom Casmurro, de Machado de Assis, O Ateneu, de Raul Pompeia, e nem mesmo conseguem tirar proveito das humorísticas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Eles tratam os títulos que acabei de citar com uma falta absoluta de respeito – pior, uma falta de noção de respeito. Não entendem a grandeza desses e outros grandes romances do passado. Os professores, por seu turno, não parecem fazer questão de transmitir um entusiasmo literário que eles próprios não possuem. Os professores jogaram a toalha. Aí tudo se torna rotineiro e entediante como uma lição de casa que não pode ser executada. Quanto mais são obrigados a ler, mais os jovens repudiam os livros. Eles já não veem sentido no ato da leitura, até porque são encorajados pelos mais velhos a se valer da internet, dos videogames e da televisão, em detrimento dos meios tradicionais.
Muitos pensam que ser moderno significa não precisar mais ler. Daí o apelo dos tablets: essas tabuletas altamente tecnológicas são os novos aparelhos de televisão, receptores ideais para analfabetos ou cidadãos pós-alfabetizados. Gente que não precisa mais enfrentar um texto com começo, desenvolvimento e conclusão, que adora a fragmentação. Os mesmos que exaltam os tablets acham que o ensino tradicional não consegue mais acompanhar a evolução tecnológica. Então, o que pôr no lugar da tradição? Claro, como não pensamos nisto antes? Se os estudantes querem diversão, vamos dar-lhes histórias em quadrinhos – de preferência, em monitores de LED, via tablets.
Mas a transposição pura e simples não é o problema. As formas e conteúdos podem migrar à vontade, eternamente. A questão é outra: os quadrinhos andam tão salientes que avançam pelo campo literário com avidez dos bárbaros e autoconfiança dos consagrados. As adaptações em HQ de obras literárias e teatrais têm surgido a cada minuto, para supostamente acrescentar algo aos textos originais. Elas vêm abençoadas pela crítica e aprovadas pelo olhar indulgente dos adultos que desacreditam de tudo, notadamente da capacidade de ler das novas gerações. E os jovens correspondem à expectativa, consumindo quadrinhos literários para evitar dar conta de livros que não têm paciência para ler. Como resultado, essas adaptações têm feito um desserviço à literatura – e à cultura como um todo. São, em geral, transposições de má qualidade, criadas por editores oportunistas, sequiosos de aproveitar a falta de vontade de ler da mocidade. Sob o pretexto de facilitar a leitura, esse tipo de adaptação destrói a vontade de ler. Traz um atalho enganoso. Isso porque, em vez de encurtar o caminho, o atalho elimina uma etapa importante da formação do jovem: a da compreensão, análise e, por consequência, do domínio de textos complexos. Ora, para mim isso configura um crime.
Não vou me deter em exemplos de adaptações infelizes, que são inúmeros. Já me deparei com muitas adaptações, em quadrinhos ou não, porque minhas duas filhas estão se preparando para o vestibular e precisam ler o maior número de obras consagradas no menor tempo possível. Percebi que, nas provas do ensino médio, elas recorriam aos famigerados resumos de obras na internet, copiando nomes e ações sem sentido e sem contextualização. Para obter alguma interpretação das obras, elas recorriam às histórias em quadrinhos, aliás recomendadas pelo colégio. Elas leram assim Os Lusíadas, de Camões, Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, e até Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Não preciso dizer que se tratava de transposições forçadas, mal realizadas e desprezíveis – cheias de erros de português e, pior, erros de interpretação das obras originais. Uma versão de Memórias de um sargento de milícias, por exemplo, traz um vocabulário pobre no final das páginas, sem nenhuma explicação sobre o emprego de determinados termos. As ilustrações são feias e caricatas, limitando-se a servir aos balões e descrições extraídas diretamente do livro. Bom, diante de tanta bandalheira, decidi banir de casa essas HQs. Até entendo algumas adaptações facilitadoras de livros universais, como a que Clarice Lispector fez de Dom Quixote, ou Fernando Sabino de Silvia, de Gerard de Nerval. Esses livrinhos servem como rito de passagem para dificuldades maiores a serem vencidas num estágio posterior. Adaptações literárias em geral geram uma perda de informação. Obviamente, a melhor lei não é a do menor esforço, e esses livros servem como incentivo a futuras viagens de leitura. O que não perdoo são adaptações ruins e quadrinhos malfeitos, que só envergonham o gênero.
Convém não confundir certos quadrinhos oportunistas com a grande arte estabelecida por Will Eisner, Crumb, Frank Miller, Alan Moore e Joe Sacco, entre outros. As HQs nasceram na imprensa e jamais negaram sua vocação popular. Aos poucos, foram experimentando uma ascensão intelectual e artística, graças aos artistas que fizeram delas o seu meio de expressão. Repare que esses grandes artistas dificilmente se submetem a adaptações feitas diretamente de uma obra. Um dos artistas de quadrinhos brasileiros que lidou com a série literária foi o quadrinista carioca Flavio Colin (1930-2002). Colin foi um verdadeiro mestre da transcriação. Ele por exemplo recriou histórias do sertão mineiro no volume Estórias Gerais, uma graphic novel em parceria com o mineiro Wellington Srbek, lançada em 2001 e reeditada pela Conrad em 2007. Ali está a síntese transfiguradora dos mundos de Guimarães Rosa, de João Cabral, de Ariano Suassuna e Dias Gomes. Colin também adaptou, com André Diniz, as aventuras do coronel Fawcett. Fawcett foi lançado pela Devir Livraria, e vale a leitura, mesmo porque a tragédia do explorador inglês em busca do Eldorado vai virar filme - em uma adaptação do livro A cidade perdida, do jornalista David Gann. A HQ de Diniz e Colin é melhor que a pesquisa de Gann no que se refere à narrativa, um exemplo da grandeza a que o gênero pode assumir, sem medo de ser equiparada a obras literárias. Esses artistas são criadores cujos universos hoje são adaptados para outras formas de arte.
Sou um admirador dos quadrinistas. Os gibis e romances gráficos estimulam minha imaginação, algo que nenhum livro seria capaz de proporcionar. Algumas das melhores ideias do cinema vêm hoje dos quadrinhos. O Brasil experimenta uma fase de produção de alta valor nessa área. Não há como negar a influência dos quadrinhos na cultura atual. O problema é o uso que se faz deles. A culpa não é da HQ, mas da qualidade das adaptações. É de quem aceita o recurso fácil de ler tudo depressa. Infelizmente, os quadrinhos são inocentes úteis, pois viraram instrumentos eficientes para a desmoralização da literatura.