Esses três textos são essenciais para compreender a "teologia da morte" dentro dos contos (tardios) de Tolkien:
Athrabeth Finrod ah Andreth
Comentário sobre o Athrabeth Finrod ah Andreth
Conto de Adanel
O primeiro é a o diálogo entre a humana mestre de tradições Andreth e o rei Finrod Felagund, a respeito da morte, do Mal e tudo mais. O segundo é o comentário de Tolkien, como autor onisciente, sobre essas questões. E o terceiro é um análogo da Queda de Adão e Eva dentro do universo tolkienriano.
O que se conclui dos textos é que a separação entre corpo e alma é algo não-natural, e é fruto da natureza caída do mundo, em última instância decorrente da ação de Melkor. Dessa forma, a morte dos elfos pode ser identificada como fruto de mácula física ou espiritual.
A morte dos homens, porém, é mais problemática, porque (a) a morte para os Homens parece algo natural, afinal do contrário como Melkor poderia ter alterado de tal forma o destino dos homens? (b) Diferentemente dos elfos, que amam a vida terrena, isto é, amam tudo que está associado à Terra, os homens logo estão insatisfeitos com essa vida: os homens têm uma tendência ao transcendente, ao espiritual, ao além-mundo.
A solução que Finrod e Andreth encontram é que, primeiramente, esse aspecto da "psicologia humana" é algo natural e desejado por Deus.
Portanto, a passagem de mortais “sobre o mar” após a Catástrofe – que é registrada nO Senhor dos Anéis (...) foi, de qualquer modo, uma graça especial. Uma oportunidade para morrer de acordo com o plano original para os não caídos: eles chegavam a um estado onde poderiam adquirir um conhecimento e paz de espírito maiores, e estando curados de todos os ferimentos, tanto de mente como de corpo, por fim poderiam finalmente entregarem-se: morrer de livre vontade, e mesmo de desejo, em estel. Uma coisa que Aragorn alcançou sem qualquer tipo de auxílio.
Essa não é, porém, a solução perfeita, porque a decadência do corpo e a separação de corpo e alma não eram desejados por Deus - o homem não-caído deixaria o mundo de corpo e alma: em outras palavras, ascenderia aos céus, sem passar pela morte.
Assim, baseando seu argumento no axioma de que a separação de hröa e fëa não é natural e é contrária ao seu desígnio, ele chega (ou se preferir, precipita-se) à conclusão de que o fëa de um homem não caído levaria consigo seu hröa ao novo modo de existência (livre do Tempo). Em outras palavras, esta “suposição” era o fim natural de cada vida humana, embora, até onde sabemos, este foi o fim do único membro “não caído” da humanidade.* Ele tem então uma visão dos homens como os agentes da cura da “desfiguração” de Arda, não meramente ao desfazer a desfiguração ou o mal perpetrado por Melkor, mas ao produzir uma terceira coisa, Arda Refeita – pois Eru jamais simplesmente desfaz o passado, mas gera algo novo, mais magnífico do que o “primeiro desígnio”. Em Arda Refeita elfos e homens encontrarão separadamente alegria e contentamento, uma amizade recíproca, um elo que será o Passado.
* A referência é à Virgem Maria.
Se isso não acontece ocorre devido à Queda do homem, conforme relata o conto de Adanel - fruto de Melkor, sim, mas fruto também de um certo Pecado Original por parte da humanidade. Não parece à toa então que, dentro da Tradição Católica, além da Assunção de Maria, exista o dogma da Imaculada Conceição - Maria estava livre do Pecado Original, o que possibilitaria que seu corpo fosse não-caído e que pudesse ascender aos céus sem mais delongas (e outras proezas, como parir sem sangue, sem dor e sem perder a virgindade).
Isso abre caminho para que meio-elfos (talvez) não morram de velhice, afinal não haveria porque resgatarem esse aspecto caído do corpo dos homens - o que
ajudaria a a explicar certos elementos do conto de Arwen.
Dessa forma a morte de livre vontade dos numenorianos não pode ser comparada ao suicídio, e sim vista como uma vocação, um dom especial garantido por Deus: isso é, o dom de identificar claramente o chamado de Deus para deixar o mundo, e a paz de espírito para ver nisso um presente e não um infortúnio. Se há a separação entre corpo e alma, isso não é fruto da vontade de Deus ou daquele que morre, mas sim fruto do aspecto caído do mundo que aqueles que morrem não conseguiram superar. Essa é uma diferença essencial entre esses casos e o suicídio típico, em que a separação do corpo e alma é causada pelo próprio suicida. Mais importante, a morte de Aragorn é fruto
em primeiro lugar de um convite divino, e não de sua própria vontade, como se ele tivesse meramente decidido quando fosse morrer. Isso se contrapõe, por exemplo, ao suicídio de Denethor:
A autoridade não lhe foi dada, Regente de Gondor, para ordenar a hora de sua morte - respondeu Gandalf – E apenas os reis bárbaros, sob o domínio do Poder Escuro, fizeram isso, matando-se por orgulho e desespero (...) (O Retorno do Rei)
Aqui é uma afirmação mais questionável, mas há até quem interprete que os corpos de Aragorn e outros ficaram preservados do decaimento, isto é, receberam
o dom da incorruptibilidade:
Estel, Estel! — gritou ela, e nesse momento, na hora em que tomou sua mão e a beijou, Aragorn adormeceu. Então revelou-se nele uma grande beleza, tanto que todos os que vieram depois para vê-lo olhavam-no admirados, pois viam que a graça de sua juventude, a coragem de sua virilidade, a sabedoria e a majestade de sua velhice estavam mescladas em seu rosto. E por muito tempo ficou ali deitado, uma imagem do esplendor dos Reis dos Homens, numa glória que não se apagou antes da destruição do mundo. (O Retorno do Rei)
O que é uma interpretação interessante, pois distancia ainda mais a morte de Aragorn de um suicídio típico, na medida em que também o corpo é conservado naquele processo.
Pegando o gancho do tópico e divagando um pouco, é interessante que Tolkien revela que os elfos tem um forte senso de mortalidade, isso é, o conhecimento claro de que o Mundo (e eles próprios) são finitos, inclusive temporalmente. Os elfos, ainda que tenham fëar e sejam filhos de Deus, seriam "criaturas do Mundo" como os animais, e não parece haver meio concebível para eles superarem o fim do mundo. Finrod recebe a esperança de que a salvação dos elfos e do Mundo se dá justamente pelo caráter ascético do homem, isto é, sua tendência de negar esse mundo e se direcionar ao além-mundo, de corpo e alma - de alguma forma, através disso, o homem poderia resgatar e redimir também o Mundo como um todo, incluindo os elfos.
Essa é a mesma solução que Schopenhauer encontra para a salvação dos animais (que dentro de sua filosofia são seres de dignidade igual ou comparável à dignidade do homem), salvação que ocorreria ainda que sejam criaturas incapazes de ascetismo:
Também em Schopenhauer há a distinção entre duas mortes de livre "disposição": a morte do suicida típico, afirmadora da vida e da vontade, e a morte do asceta, daquele que nega a vida e a própria vontade.
E por ser justamente uma negação da vontade, a morte do asceta não aconteceria por "decisão" sua, mas como um dom além da sua vontade, como se vindo de fora de seu próprio ser, ainda que ele tenha uma certa "boa disposição" para receber a morte.
Essa distinção parece ser (razoavelmente) consonante com o cristianismo e com o que discutimos aqui. A diferença é que Schopenhauer foca mais na morte por martírio ou por certa inanição do corpo, não prevendo a morte do tipo "tolkienriano" (ou mariano) em que o sofrimento parece ser atenuado e o corpo preservado. Mas não é uma diferença insolúvel, a meu ver.