… Mas livrai-nos do mal

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Escrito por Fábio Bettega

Nunca fiz uma pesquisa exaustiva sobre as razões que levam as pessoas a
gostarem de O Senhor dos Anéis ou da obra tolkieniana em geral, embora
já tenha tido ocasião de perguntar a isso a especialistas em Tolkien ou
a colegas fãs e amigos em geral. Acho que é mais ou menos seguro
assumir que não há uma razão única ou mesmo geral: toda boa obra de
literatura é polissêmica (jeito afetado de dizer que ela permite vários
níveis e dimensões de leitura e interpretação), e num colosso de mais
de mil páginas como a Saga do Anel essa dimensão ainda é mais clara.
 
 
 
Mesmo assim, gostaria de conversar com vocês sobre
o que talvez seja a faceta que mais ajudou a tornar o livro parte da
minha vida, algo que eu ainda vou entesourar quando estiver desdentado,
careca e incapaz de usar a privada sozinho. Falo da dimensão moral e
espiritual da história e, em particular, do clímax: o “fracasso� de
Frodo nas Sammath Naur e a sua salvação (e a de toda a Terra-média)
pelas mãos de alguém tão aparentemente odioso quanto Gollum.

Nunca é demais dar uma olhada nas famosas cartas do homem do cachimbo,
The Letters of J.R.R. Tolkien, editadas por Humphrey Carpenter e
Christopher Tolkien. É impressionante o grau de dedicação e
seriedadeque Tolkien despende para responder indagações de simples fãs,
e os insights profundos sobre seu trabalho que ele não hesitava em
compartilhar. É em duas dessas cartas, ambas escritas em 1956, que ele
esclarece qual a chave em que devemos ler a cena-clímax do romance: “Eu
diria que, dentro do espírito da história, a catástrofe exemplifica (um
aspecto das) palavras familiares: Perdoai as nossas ofensas, assim como
nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em
tentação, mas livrai-nos do mal�.

“Não nos deixeis cair em tentação etc. é o pedido mais difícil e menos considerado�, diz Tolkien. “O
ponto de vista, nos termos da minha história, é que embora todo evento
ou situação tenha (pelo menos) dois aspectos, a história e o
desenvolvimento do indivíduo (algo do qual ele pode conseguir o bem, o
bem supremo, para si mesmo ou falhar) e a história do mundo (que
depende das ações dele em si mesmas) – ainda assim há situações
anormais em que alguém pode ser colocado. Eu as chamaria de situações
sacrificiais�
.

Posições como essa espelham o que Frodo
sofreu diante das Sammath Naur: um contexto no qual alguém como ele
está fadado a fracassar, porque o que se exige está muito além do que
pode fazer a força de corpo ou de espírito que ele possui. Em certo
sentido, a Demanda estava destinada a falhar desde o começo, confessa
Tolkien: alguém com maior poder natural teria sucumbido à tentação do
Anel muito antes; um sujeito com a humildade e a integridade de Frodo
sucumbiria na hora final. É uma armadilha da qual não há escapatória. O
único resultado possível para o hobbit era a traição, ainda que
involuntária. “E cheguei até receber uma carta selvagem, gritando que
ele deveria ser executado como traidor, e não honrado�, conta Tolkien.

O autor vai além: compara a situação em que Frodo foi colocado aos
sofrimentos das pessoas torturadas por regimes ditatoriais, uma coisa
tristemente comum no mundo que Tolkien conhecera durante a Segunda
Guerra Mundial e a Guerra Fria que se seguiu. “Não imaginei que, antes
que a história fosse publicada, entrássemos numa era sombria em que a
técnica de tortura e de distorção da personalidade passasse a rivalizar
com a de Mordor�, lamenta o Professor.

O resultado final, do ponto de vista da personalidade do herói, pelo menos, é que Frodo falhou inevitavelmente. “É
preciso encarar o fato: o poder do Mal no mundo não pode ser vencido,
em última instância, por criaturas encarnadas, por melhores que elas
sejam�
, diz Tolkien.

Parece uma sentença de desespero irreversível, não é mesmo? Contudo, na mesma frase, Tolkien acrescenta: “E o Autor da História não é um de nós�. É desse jeito, explica ele, que a cena-clímax da saga precisa ser lida.

Para alguns, tal idéia pode parecer decepcionante. Já ouvi um sujeito
dizer que O Senhor dos Anéis o irritava profundamente porque os heróis
sempre pareciam escapar por pura sorte no último momento, e o mesmo se
repetia na cena final no Orodruin. “Eles nunca tem mérito ou capacidade para escapar; só se salvam por puro acaso�,
reclamava esse cara. Tá na cara, contudo, que só uma leitura
superficial pode passar essa impressão. Foi exatamente o mérito de
Frodo, a sua compaixão por Gollum, junto com Algo (ou Alguém) que está
muito acima do acaso, que o salvaram na sua hora final, como explica
Tolkien.

“A salvação do mundo e a salvação do próprio Frodo
é conseguida graças à sua piedade anterior e ao seu perdão anteriores.
Em qualquer momento, qualquer pessoa prudente teria dito a Frodo que
Gollum certamente o trairia, e que poderia roubá-lo no fim. Ter pena
dele, evitar matá-lo, foi um ato de insensatez, ou uma crença mística
no valor último da piedade e da generosidade em si mesmas, mesmo se
elas forem desastrosas no mundo do tempo. Ele [Gollum] realmente o
roubou e feriu no fim – mas por uma graça, essa última traição foi no
momento preciso em que esse ato de maldade final foi a melhor coisa que
alguém poderia fazer a Frodo! Numa situação criada pelo seu próprio
perdão, ele foi salvo, e aliviado de seu fardo�
.

A gente
sabe que o mundo real, aparentemente, não é tão certinho quanto o mundo
da história. O Autor da História às vezes parece distante ou, pior
ainda, parece ter emprestado sua pena a alguém bem menos sábio e justo.

Mesmo assim, a coragem e a força moral que emana dos heróis da ficção
pode servir de fonte de inspiração e firmeza – porque todos nós, mesmo
no nosso pequeno mundo, podemos um dia correr o risco de adentrar as
Sammath Naur.

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