O pessoal do fan site TheOneRing.net divulgou uma antiga mas muito interessante entrevista concedida por Simon Tolkien ao site Mythopoeic Society. Nela, o neto de J. R. R. Tolkien relembra os avós e a época em que seu pai, Christopher Tolkien, começou a reorganizar os textos que compõem hoje O Silmarillion, pouco tempo depois da morte do autor em 1973.
Simon Tolkien é advogado criminal e estudou História Moderna no Trinity College, em Oxford, onde conheceu sua esposa, e hoje é um escritor com uma carreira já sólida, com alguns livros publicados de não-ficção e romances, como The King of Diamonds, The Inheritance, Final Witness e Orders from Berlin (nenhum publicado no Brasil). Durante a entrevista, ele também comenta um pouco sobre sua carreira e influências. Apesar de ganhar mais notoriedade agora, a entrevista foi publicada em dezembro de 2010. Ao fim, você ainda pode ler o quanto foi traumático o lançamento dos filmes de Peter Jackson para a vida pessoal de Simon Tolkien, e como o legado de seu avô quase o “esmagou”.
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Jason Fisher: Você pode nos dizer quais são suas lembranças de seu avô, J. R. R. Tolkien, e de sua avó, Edith? (Peço desculpas por fazer-lhe uma pergunta que você sem nenhuma dúvida deve ter respondido uma centena de vezes, e obrigado por me responder!).
Simon Tolkien: Sim, eu já respondi a essa pergunta muitas vezes, mas deixe-me considerar que você está me perguntando sobre meus avós juntos – uma pergunta que eu nunca respondi. Eles eram pessoas muito diferentes, e havia barreiras entre eles durante todo o seu casamento. Minha avó não era de forma alguma alguém intelectual. Nos primeiros anos de seu casamento em Leeds ela transcreveu algumas das primeiras histórias do meu avô, mas Oxford sempre foi difícil para ela – a universidade era um mundo totalmente dominado pelos homens. Quando menina foi uma boa pianista, mas ela não prosseguiu com isso quando já era casada.
A religião também os separou. Meu avô convenceu minha avó a se converter ao catolicismo romano, quando logo se casaram, mas dentro de alguns anos ela virou as costas para a Igreja. Isso deve ter sido difícil para ele, dado que o ensinamento da Igreja é o de que só os verdadeiros fiéis vão para o céu. Suas vidas nunca foram fáceis. Meu avô tinha que trabalhar muito duro, combinando dois trabalhos, um como autor e outro como professor universitário.
Eles tiveram quatro filhos, e eles viveram duas Guerras Mundiais. Meu avô lutou no Somme, em 1916, e dois de seus filhos lutaram na Segunda Guerra Mundial, com o meu tio Michael sendo marcado permanentemente por suas experiências terríveis sob fogo inimigo. Eles sempre se mantiveram profundamente leais e orgulhosos de cada um deles. Eu acho que o meu avô concordou em deixar Oxford para ir a Bournemouth depois que se aposentou, porque ele sabia que sua esposa seria mais feliz lá e também porque agora era ‘a vez dela’.
Eu acho que eles sempre tiveram um carinho sincero um pelo outro, lembrando-me de que eles eram dois órfãos e da luta que tiveram que superar para se casar depois que o tutor do meu avô os tinha forçado a esperar por anos até que meu avô alcançasse a idade. Seu velho amigo Rob Murray, disse-me há vários anos como ele foi visitá-los de surpresa e ficou hospedado com eles em Bournemouth, no final dos anos 1960, e eles estavam sentados lado a lado lembrando o quão felizes eles estavam. Meu avô era um romântico e sua esposa sempre foi, em parte, Lúthien Tinúviel dançando na floresta em 1917, e por isso seus nomes aparecem como Beren e Lúthien em suas lápides no Cemitério Wolvercote, onde estão sepultados lado a lado.
JF: Quando você leu pela primeira vez O Senhor dos Anéis ? O que você achou?
ST: Eu li cinco vezes, primeiro quando eu era criança e agora novamente para minha filha – que está prestes a subir as escadas de Cirith Ungol. Esta é a primeira vez que leio o livro desde que eu me tornei escritor, e lê-lo me dá uma sensação de quem o meu avô era. Particularmente sou afetado pelo detalhismo extraordinário de sua descrição da paisagem. Isso me lembra de Thomas Hardy no seu melhor, e eu sinto o quanto a natureza deve ter significado para ele. Talvez este seja o lugar onde o seu amor pelas palavras começou – a partir de quando sua mãe lhe ensinou os nomes das árvores e flores do campo em torno de Sarehole quando ele ainda era criança. Também por volta desta época eu estava profundamente comovido com Tom Bombadil e Fruta D’Ouro – Eu acho que isso foi o mais perto que o meu avô poderia ter descrito de um paraíso terrestre – a língua tornando-se poesia e música no vale do Voltavime.
JF: Você consegue se lembrar de algo do momento em que seu pai, Christopher Tolkien, trabalhou na edição de O Silmarillion e outras publicações póstumas de seu avô? Você provavelmente era adolescente na época, mas ele nunca disse nada a você sobre o processo, as dificuldades, ou revelou suas esperanças e medos ao assumir essa tarefa importante?
ST: Havia um velho celeiro, na casa onde meu pai vivia em Berkshire, quando eu era um garoto, e tivemos jogos maravilhosos de tênis de mesa lá juntos. E havia uma escada bamba levando até um loft com vista para dentro da fazenda. Mas então, quando meu avô morreu, o celeiro foi convertido em uma grande sala de trabalho em que todos os manuscritos foram montados para a redação de O Silmarillion. Lembro-me de Guy Kay trabalhando lá fora com meu pai. E quando o projeto foi concluído vários anos depois, meu pai e minha madrasta venderam a casa e mudaram-se para a França, algo que foi perturbador para mim. Como você disse, eu era um adolescente durante estes tempos e O Silmarillion não era o que me afetava, mas eram as mudanças que a morte do meu avô traziam para minha vida o que importava.
JF: Como você decidiu pela carreira literária? Obviamente, a sua educação seguiu um caminho diferente da de seu pai e seu avô (professores de Literatura e Línguas). Mas em algum momento você voltou-se à escrita. Será que alguma parte de você sempre quis ser um escritor? Você tem algum interesse similar em línguas?
ST: Eu escrevi não-ficção até completar quarenta anos. Retrospectivamente acho que eu estava intimidado de fazê-lo pela escala de realização do meu avô. Então, no final da década de 1990 os filmes de Jackson me estimularam a querer criar uma identidade própria para mim, então eu não iria olhar no espelho e ver apenas o neto do autor do O Senhor dos Anéis olhando para mim de volta. No entanto, acho que inconscientemente eu vinha me preparando para essa mudança de carreira por um longo tempo quando comecei a escrever um diário a partir de 1990 e ao longo de dez anos, aos poucos, aprendi a escrever.
JF: Escreva o que você sabe, é o que eles dizem. E, de fato, o seu mais recente romance (como o seu primeiro) é um thriller, não uma história de fantasia. Mas, ao contrário do primeiro, The Inheritance parece ser mais repleto de pessoas, profissões, configurações e Artefatos – professores, códices antigos, posterior às duas Guerras Mundiais, Oxford, Bournemouth, até mesmo uma máquina de escrever Remington – que poderia muito bem ter sido tirada de sua infância. A principal ação de The Inheritance é definida em 1959, o ano em que você nasceu. Quanto do período e configurações de suas histórias vêm de suas próprias memórias de infância, em oposição ao seu estudo mais amplo da História?
ST: História foi o meu primeiro grande amor. Estou um pouco envergonhado em dizer que, quando menino, eu adorava como herói Napoleão Bonaparte e minha maior emoção foi visitar seu enorme túmulo em Paris, quando tinha onze anos. Eu penso que o passado, como outro país, seja tão real quanto o presente, mas para sempre fora de alcance. Em particular, eu fico impressionado com as lutas e sacrifícios colossais que abalaram o mundo durante a Segunda Guerra Mundial – um momento em que a história parece estranha, maior e mais terrível do que a ficção. E assim, em The Inheritance e novamente em meu novo romance, The King of Diamonds, fiz deliberadamente a guerra o pano de fundo para eventos do final dos anos cinquenta e em cada livro meu o inspetor Trave deve voltar ao passado para resolver um assassinato. Suponho que a minha visão do passado seja uma amálgama de memórias de infância e pesquisas históricas.
JF: Eu não pude deixar de notar um personagem menor, Charles Blackburn, advogado imobiliário do falecido professor John Cade. É este um eco deliberado do nome da advogada da Tolkien Estate, Cathleen Blackburn? Ou é apenas uma coincidência surpreendente?
ST: Vários leitores notaram a conexão entre a família Sackville de Final Witness e os Sacola-Bolseiros [Sackville-Bagginses no original], e isso era certamente pura coincidência. Pode haver mais de uma conexão inconsciente aqui, que eu espero que Cathleen não se importe.
JF: Quem são alguns de seus escritores favoritos, no gênero suspense ou em qualquer outro gênero?
ST: Eu fui uma criança que cresceu em uma casa de campo na zona rural de Oxfordshire. Tive que me virar muito com meus próprios recursos, que consistia de livros, livros e mais livros. Costumava pensar que eu era muito deprimido por esta experiência, mas agora eu acho o oposto. Os livros que li deitado em minha cama encheram minha imaginação e eles são o combustível para minha criatividade agora. Acima de tudo eu amava romances que me transportavam inteiramente para um passado fictício – O Conde de Monte Cristo, A Ilha do Tesouro, O Morro dos Ventos Uivantes, Jane Eyre, Gormenghast e O Senhor dos Anéis . Eles me encheram de um sentimento de admiração – (para usar a frase de Van Morrison) – que nunca me deixou desde então.
JF: Há algo que você gostaria de dizer aos leitores da Mythprint interessados em seus romances? Nossos leitores têm uma preferência especial por fantasia e literatura de ficção científica, mas a maioria é composta por vorazes bibliófilos e gostariam de conhecer os seus livros.
ST: Eu não posso vender o meu livro como algo que ele não é. É um conto com seu quinhão de personagens malévolos e um mistério que se destina a manter você interessado até o final. Ele tem uma forte dimensão histórica. Não é ficção científica ou fantasia, mas eu acho que é uma boa leitura e espero que alguns de seus leitores possam gostar.
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Um Tolkien à sombra de Tolkien
Nem sempre o legado do avô J. R. R. Tolkien foi uma bênção para Simon Tolkien. Por algum tempo o nome “Tolkien” foi um enorme fardo para Simon, que depois dos filmes O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson, deixou de ser o advogado Simon Tolkien para ser apenas “o neto de Tolkien”.
Em uma entrevista publicada pelo The Telegraph em 2012, Simon admite que sua família foi esmagada por algo como um “rolo compressor”: “Em um momento eu era Simon Tolkien, um advogado de Londres. Então, eu passei a ser o ‘neto de J. R. R. Tolkien’. Isto pode parecer curioso, mas comecei a deixar de ver quem eu era. Foi como se eu, o Simon, tivesse sumido. Eu me senti asfixiado”. E acrescenta: “Tudo o que eu seria na vida era apenas o neto de um escritor famoso. Nada do que eu fizesse poderia mudar esse título”.
Inicialmente, Simon aceitou cooperar com a produção dos filmes de Jackson, mas a ideia foi abandonada posteriormente. Mesmo assim, ele e seu pai, Christopher Tolkien, tiveram discordâncias e que acabaram culminando numa terrível briga e num doloroso período de silêncio entre ambos. No entanto, Simon e Christopher resolveram suas diferenças e seu último livro foi dedicado ao pai.
“Eu acho que vejo a vida de uma perspectiva diferente agora. Sinto-me um felizardo em ter a chance de acertar as coisas com o meu pai. Tive a chance de dizer a ele que eu o amo e que tenho muito orgulho dele. Mas sou ainda mais grato por ele ter tempo de ler os meus livros e me dizer que gostou deles. Isso fez sentir-me muito contente. Claro, meu avô ainda tem uma enorme presença em nossas vidas, mas a chegada de um blockbuster de Tolkien já não me abala mais como fez da primeira vez”, disse ao se referir aos novos filmes “O Hobbit”.
Muito de sua superação Simon deve a sua esposa, a estadunidense Tracy Tolkien, com quem vive hoje na Califórnia, EUA. Tracy diz que foi muito difícil ver seu marido “se encolher”.
“Para Simon, ele era conhecido apenas por ser o neto de alguém famoso. Ele carregava o sobrenome Tolkien como se fosse uma grande rocha em suas costas. É óbvio que ele sabe que nunca vai ser tão famoso quanto seu avô, nem venderá tantos livros quanto ele, mas pelo menos sabe que conseguiu algo por seus próprios méritos. É ótimo ver que Simon está em um lugar muito melhor agora. Muito mais confortável sendo ele mesmo. Esta história de Tolkien decididamente teve um final feliz”.
Saiba mais sobre Simon Tolkien visitando sua página oficial: www.simontolkien.com