Aman, Yví½ marãeí½, Terras-sem-mal

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Escrito por Reinaldo José Lopes

De tão batida nestes tempos de pseudo-espiritualidade, a idéia parece
banal – a de que as mitologias de todos os povos da Terra são,
essencialmente, variações sobre o mesmo tema; manifestações de um
inconsciente comum a todos nós, buscando lidar com algumas
questõezinhas encardidas, mas básicas – o que é ser humano? O que é
preciso fazer para ter vida plena e responsável neste mundo e no outro
[se existir um outro]? Não sei quanto a vocês, mas é isso que me atrai
de forma tão irresistível para a obra tolkieniana. E é incrível
descobrir que, aqui do nosso lado, no chão onde agora pisamos, povos
tão diferentes dos que inspiraram a mitologia de Tolkien enfrentaram
esses problemas de uma forma tão semelhante à dele.
 
 
 
No início da Era Cristã, o interior do continente
sul-americano foi sacudido por uma gigantesca peregrinação, cujos
efeitos se fazem sentir até hoje. Do Paraguai até a fronteira sul da
Amazônia, a nação tupi-guarani avançava para o Leste, liderada por
profetas chamados caraíbas, que a exortavam a atingir o Grande Oceano
e, mais que isso, cruzá-lo. Além do Mar, diziam os caraíbas, estava Yvý
marãeý, a Terra-sem-mal, morada dos deuses, onde a doença, a tristeza e
a morte não existiam. Quando os europeus aportaram aqui em 1500,
praticamente todo o litoral brasileiro, além de muitas áreas do
interior, havia sido tomado pela nação tupi-guarani. Mesmo com a
colonização portuguesa e espanhola, essa raça orgulhosa – que se
auto-denominava Avá, “os Homens” por excelência – continuou a procurar
o Grande Oceano. Já no início do século XX, tribos guaranis ainda
chegavam a São Paulo, vindas do Paraguai. Diante da impossibilidade de
atravessar o Mar em corpo, os caraíbas incitavam seu povo a alcançar a
Terra-sem-mal em espírito, e participar, ainda em vida, da felicidade
dos deuses.

Yvý marãeý, o lugar sem mácula onde os deuses
ainda gozavam da felicidade primitiva, reproduz com perfeição o termo
quenya Aman – “a [terra] abençoada, livre do mal”. Entre os guaranis
modernos, que vivem no Paraguai e nos estados de São Paulo, Rio Grande
do Sul e Paraná, a crença é de que a Terra-sem-mal, a princípio, não
estava separada de nosso mundo. Porém, as faltas dos homens fizeram com
que os deuses desencadeassem o dilúvio, cindindo definitivamente nosso
mundo do deles. O que restou aos homens foi Yvý mbae”meguá – a Terra
Doente, onde nada mais é como fora no princípio. Eis outro conceito
caro a Tolkien, que em sua obra toma a forma de Arda marred, a Arda
Desfigurada, um dos grandes temas do Silmarillion.

Contam
ainda os guaranis que Ñamandu, o Criador – nome que quer dizer “Pai
verdadeiro-primeiro” – criou os homens a partir da sua palavra divina,
pronunciada em forma de canção, antes que qualquer outra coisa fosse
criada. Como Ilúvatar, o “Pai de Todos”, ao dizer Eä!, é a Palavra de
Ñamandu – ayvu – que faz o mundo existir. Dentro de cada ser humano,
como que uma fração dessa grande Palavra, dessa Chama Imperecível,
ainda vive, chamada ñe”ë – a fala, o dom da palavra. Quando uma criança
nasce, dizem os guaranis que “uma palavra tomou um assento”, isto é,
que mais uma das frações do poder criador de Ñamandu tomou forma e
vida, e adentrou o mundo.

Pode parecer irônico o fato de que,
ao chegar às praias do Grande Mar, os tupi-guaranis não se depararam
com sua Aman, sua Terra-sem-mal, mas deram de cara com o fogo e o aço
dos portugueses e espanhóis. O que se seguiu é, entre nós, tristemente
bem conhecido. Contudo, ainda hoje, apesar de tudo o que sofreram, a
esperança ainda vive entre eles, tão pungente quanto a destas linhas:
“Pois os Dúnedain consideravam que até os homens mortais, se tivessem
esse dom, poderiam contemplar outras épocas que não fossem as da vida
de seus corpos. E sempre ansiavam por escapar das sombras de seu
exílio, e de algum modo enxergar a luz que não se apaga. E surgiram
relatos sobre homens perdidos nas águas que haviam encontrado a Rota
Plana, e chegaram a Aman”. Ou a Yvý maräeý.

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