J. R. R. Tolkien, On Fairy-Stories
Grande parte dos leitores de O Senhor dos Anéis fica quase que obcecada pelos complexos detalhes da história. Uma outra parcela desses leitores procura ler as entrelinhas da obra para tentar dissecar quais os objetivos de seu autor ao escrevê-la. O Senhor dos Anéis já atraiu crÃticos ferozes, para quem a obra é um exercÃcio do conservadorismo, bem como defensores audazes em contestar diretamente essa idéia (vide, p.ex. Defending Middle Earth: Tolkien, Myth and Modernity, Patrick Curry). Existe ainda uma outra parcela de leitores que se prende à (eterna ?) discussão sobre a auto-consistência da obra, formando um grande grupo de discussão sobre cada um dos muitos pontos deixado ali em aberto ou então inconsistentes no teor dos vários textos escritos por Tolkien. Muitos desses leitores deixam, assim, de apreciar e observar a obra como o que ela realmente é, um dos melhores romances (ou história fantástica) do século XX. A apreciação da obra merece que seus detalhes possam ser esquecidos face ao conjunto.
Para entender a complexa estrutura da obra de Tolkien relacionada à saga do ‘Senhor dos Anéis’ é necessário compreender o contexto em que cada obra foi criada, com objetivos bem diferentes e na maioria das vezes ocultos ao leitor dessa obra, a forma como o livro foi estruturado e algumas influências sobre o próprio autor.
As Obras da Saga
O Silmarillion (no que toca as versões pré Senhor do Anéis, aquelas existentes no Book of Lost Tales e nos primeiros volumes do History of Middle Earth) foi escrito como um conjunto de ensaios acadêmicos de Tolkien. Seu objetivo era o estudo da evolução da linguagem, como a história (incluindo as respectivas lendas e mitos de cada povo) contribuÃa para a formação das palavras e de suas raÃzes fonética. Para criar o ‘élfico’ Tolkien necessitava da mitologia a ele associada, e os vários ensaios do Silmarillion (muitos na forma de poemas) fazem parte desse processo. Essas histórias e poemas eram apresentados em reuniões com seus colegas, dos quais o grupo mais importante foi o dos Inkling’s, de onde várias sugestões foram recebidas e incorporadas. A versão publicada do Silmarillion é uma versão adaptada após a publicação do Senhor dos Anéis, na qual Tolkien (e depois seu filho como editor) procurou ajustar sua mitologia anterior aos fatos citados no SdA, nem sempre com perfeição. As origens do Silmarillion são bem mais antigas do que aquelas do Hobbit ou do Senhor dos Anéis.
O Silmarillion ainda é a obra mais trabalhada de Tolkien, com sucessivas versões, re-escritura e adaptações ocorridas até sua morte. O caráter acadêmico da obra pode ser percebido, na versão original, pelo teor do inglês utilizado. Tolkien usa uma linguagem elevada, com uso freqüente de estruturas ‘vocativas’ e de palavras no inglês antigo (Old English), cujo uso foi reduzido na versão pós Senhor dos Anéis, mas objeto até mesmo de um pequeno dicionário na edição contida no Book of Lost Tales.
Já o Hobbit, segundo contam alguns biógrafos, baseou-se em histórias que Tolkien contava para seus filhos quando pequenos, que foram sendo elaboradas e registradas. Afirmam que a versão enviada aos editores (Allen & Urwin) o foi às custas de uma colaboradora, já que a primeira submissão (outro editor ?) havia sido recusada e Tolkien não queria insistir. Certamente as histórias tinham uma ligação também com os estudos sobre o ‘élfico’, de onde a presença de elfos, anões, orcs e dragões, embora não seja aparente uma ligação mais forte. O próprio Tolkien menciona em uma carta que a escolha de alguns nomes, como Elrond, foi mais devida à dificuldade em obter ‘bons nomes’ e que foi uma sorte (para o SdA) tais nomes estarem relacionados à antiga mitologia élfica.
O Hobbit apresenta uma estrutura mais simples em termos de roteiro. Sua linguagem é nitidamente mais simples, como o contar de uma história infantil (não o narrar de uma aventura de forma impessoal), embora isso não queira dizer que é mal escrito. Suas qualidades como livro de aventuras, não apenas com o público infanto-juvenil, o tornaram um best-seller e o público ficou ávido por outras histórias sobre hobbits. A narrativa no Hobbit é bastante linear, a história está sempre focada em Bilbo (não existem tramas paralelas) e seus companheiros anões, e também não é detalhista, basta ver o tempo gasto pela comitiva dos anões para atingir a região dos Trolls, que ocorre no interior do mesmo capÃtulo. No SdA, Frodo e seus amigos gastam semanas (e vários capÃtulos) para cumprir o mesmo percurso.
Em paralelo, Roverandom também foi escrito com base em histórias criadas para os filhos. Foi rejeitado quando submetido aos editores, após a publicação do Hobbit,• porque queriam mais histórias sobre eles (hobbits). Acabou sendo publicado postumamente.
Aqui temos um fator primordial para entender a estrutura do Senhor dos Anéis. Ele foi escrito por solicitação dos editores, que estavam por sua vez pressionados pelo público, querendo histórias de hobbits. O SdA não foi escrito, como o Silmarilion, para ser um conjunto mitológico, mas sim para ser uma história (épica) de fantasia. Na sua composição Tolkien utilizou, de forma magistral, os conceitos que ele mesmo havia estudado e definido para as histórias de fantasia, descritos em seu ensaio “On fairy-stories�?, apresentado na Universidade de Saint Andrew em 1938 (alguns atribuem a data exata do seminário em Março de 1939), e considerado pela academia como a melhor das exposições sobre o tema, até hoje.
Aquela pressão popular por mais hitórias de hobbits explica porque o herói da aventura não é um homem, como os desÃgnios do final da terceira era parecem apontar. Podemos pensar que, do ponto de vista ‘humano’ a história poderia ser mais natural se Aragorn fosse o herói a destronar Sauron (Elendil e os seus haviam enfrentado Sauron até em combate corpo a corpo, porque não um herdeiro à altura desse mesmo feito?). A importância de Aragorn s
erá ainda discutida mais adiante e dá subsÃdio adicional à pergunta acima.
Do ponto de vista de um hobbit como herói, a trama torna-se também mais crÃvel. Caracterizados, desde o Hobbit, por suas habilidades de ‘não serem percebidos’ (stealth) certamente teriam mais chances de entrar numa terra inimiga e chegar ao local de destruição do anel. Aqui já percebemos o espÃrito descrito na citação de abertura, retirada do famoso ensaio de Tolkien. A fantasia é mais crÃvel quão mais fácil assumi-la com base na razão. Facilita ao leitor acreditar na existência de um hobbit a levar o Anel Um até sua forja original, permitindo que aquele mundo de fantasia seja assimilado.
Ainda com respeito à aceitação da fantasia, outro aspecto importante do SdA (não presente, por exemplo, no mais antigo Silmarilion) é sua veracidade técnica. Tolkien usou guias militares para basear as distâncias que podiam ser cobertas por homens em marcha, dando um cunho de veracidade à epopéia. A geografia da Terra Média foi desenvolvida para assegurar ao leitor, por exemplo, que a Companhia do Anel deveria cruzar as Montanhas Nevoentas sem aproximar-se do Gap de Rohan. O ‘lembas’ dos elfos ressurge com destaque para garantir a subsistência, já que não é aceitável a duas (meio) pessoas carregar nas costas a comida necessária para uma jornada de mais de mês (e Mordor já havia sido descrito como uma terra inóspita, árida e bastante estéril, onde não seria também fácil de acreditar no encontro da ração diária). Nos estudos sobre a obra mostra-se a preocupação de acertar cronologicamente as várias tramas e mesmo os ciclos lunares (para os interessados, são baseados naqueles de 1942).
O Senhor dos Anéis é apresentado como um trabalho de ‘sub-criação’, um ‘mundo secundário’ da mitologia que se relaciona indiretamente ao mundo real. Na introdução e nos apêndices vem a idéia de que o livro narra, por sua vez, feitos registrados em outro livro (The Red Book), este sim relatando os eventos acontecidos em um passado indefinidamente distante (ou próximo, se considerarmos que foi escrito na própria época dos eventos).
Embora tenha sido extensamente elaborado (incluindo os apêndices) para que tenha uma completeza própria, o Senhor dos Anéis é por demais complexo para que isso possa ocorrer. Tolkien brincou uma vez ao dizer que no livro existiam apenas dois pontos não explicados, que seriam o nome dos outros dois magos, cinco menos Saruman, Gandalf, Radagast (citados por Saruman em Orthanc quando pergunta se Gandalf queria os cajados dos cinco magos) e a questão dos gatos da rainha Beruthiel (mencionados por Aragorn em Moria). No entanto, vários outros pontos podem ser levantados e mostram que a completeza como obra única não existe, por exemplo: como o rei Nazgul não conhecia o Condado, tendo combatido o reino de Anor naquelas regiões? Por que os nazgul tinham medo d’água? – pode-se assumir que o AnduÃno era um rio largo e profundo o suficiente para impedir sua passagem direta, mas eles tiveram que cruzar pelo menos dois vaus (Isen, San Ford) em sua jornada até o Condado. A escolha do nome de Glorfindel realmente está ligada a uma versão em que este elfo, morto em Gondolin, “reencarna�?e volta à Terra Médica? Treebeard é mais velho que Tom Bombadil? O Balrog tinha ou não asas? Não é possÃvel esperar que todas essas questões (e certamente muitas outras) tenham respostas. O livro deve ser considerado como seu todo, uma grande obra literária, e não como sendo um dicionário mitológico, em que cada termo tem uma entrada remissiva explicando sua origem e significado.
O Roteiro do Senhor dos Anéis
Por outro lado, o Senhor dos Anéis foi escrito (re-escrito e revisado um sem número de vezes) durante um longo perÃodo até que viesse a ser publicado. Essa publicação foi também em partes (cada um dos três livros que compõem a saga), com um intervalo de anos entre eles (receita repetida pelo Peter Jackson para o lançamento da trilogia filmada), uma vez que assim eventuais resultados de vendas ruins de um volume poderiam ser compensados pela venda melhor de outro dos volumes. Cortes ‘cinematográficos’ asseguram o interesse pela continuidade.
A interrupção no primeiro volume deixa o leitor ávido de saber o que vai acontecer às duplas de hobbits (Frodo/Sam, Merry/Pippin), mas deixa também outras questões em pé. Uma delas é o próprio destino de Gandalf, não muito assimilado após a queda em Khazad Dum. Outra, que nem todos os leitores percebem na primeira leitura, são as palavras do narrador quando Aragorn e Frodo deixam Cerim Amroth, ainda em Lothlórien: “para nunca mais retornar como um homem vivo�?. O leitor que tenha se identificado com Aragorn como um ‘salvador da pátria’ (ou dos hobbits, nesse caso) fica perplexo querendo saber o que lhe vai acontecer mais à frente, para não retornar (“será que ele também irá morrer?�?).
Naquela visão de roteiro fica mais claro entender, por exemplo, a morte e ressurreição de Gandalf. Ele tinha que sair da trama, pois do contrário não seria crÃvel assistir à dissolução da companhia e à aventura de Frodo e Sam até Orodruin. Como introduzir para que Gandalf deixasse os dois seguirem sozinhos após algum ponto em Ithilien? Também não seria aceitável que um dos portadores dos anéis élficos pudesse entrar em Mordor sem ser detectado por Sauron. A notar que essa retirada de Gandalf da trama já havia acontecido duas vezes. No Hobbit, Gandalf vai ao Conselho de Magos para permitir que Bilbo seja o herói a partir da travessia de Mirkwood (já tentaram imaginar como isso seria possÃvel com o mago por perto?). Mesmo no SdA, Gandalf teve que ser aprisionado em Orthanc para que os hobbits pudessem fugir dos cavaleiros negros ao longo de sua jornada até Rivendell. Como imaginar que Frodo pudesse colocar o anel e ser ferido pela lâmina morgul em Weathertop com Gandalf a seu lado?
Entretanto, Gandalf deve retornar. A construção de sua personagem como um auxÃlio enviado pelos Valar (Olórin, que seja) não facilita seu simples desaparecimento da obra. Gandalf volta para desempenhar um papel importante na Guerra do Anel. Recupera Theóden, subjuga (com auxÃlio dos Ent) Saruman, sustenta Gondor. Novamente seria menos aceitável essa fantasia sem a presença de um poder superior, capaz de transmitir fé e esperança mesmo sob a presença da sombra. Por outro lado, o retorno (ou o enganar) da morte é uma constante em várias mitologias e mesmo em contos de fada (vide Branca de Neve, por exemplo), assim nada mais natural que incorporar essa passagem no texto (depois de um providencial ‘coma’ decorrente da luta com o balrog, para permitir que a companhia deixe Lothlórien sem saber de seu retorno). Perturbações de como justificar esse retorno, seja por meio de hröa ou fëa, somente surgiram após o estrondoso sucesso do livro nos Estados Unidos e ao assédio dos fãs querendo saber sobre todos os detalhes da obra e incapazes de aceitar que numa obra dessa dimensão a coerência total é praticamente inviÃ