Poucas cenas de O Silmarillion superam a do terrível Juramento de Fëanor em peso dramático. O que pouca gente sabe é que Tolkien “registrou” o texto completo do juramento – em verso.
O que há de mais surpreendente e interessante nos versos é o uso de uma forma modernizada da antiga métrica aliterativa anglo-saxã – o mesmo tipo de poesia presente na obra-prima medieval Beowulf e nas canções dos cavaleiros de Rohan em O Senhor dos Anéis. A tradução para o português é um desafio porque, em vez das rimas no final do verso, comuns na nossa poesia tradicional, usa-se a repetição de sons de consoantes nas sílabas tônicas das palavras (a chamada aliteração), além de uma série de outros recursos formais. Marquei em negrito a aliteração nos dois primeiros versos do original e da tradução para dar uma idéia um pouco mais clara desse estilo poético.
Depois do texto em si, alguns comentários específicos sobre questões da tradução.
Poema original:
Be he foe or friend, be he foul or clean,
brood of Morgoth or bright Vala,
Elda or Maia or Aftercomer,
Man yet unborn upon Middle-earth,
neither law, nor love, nor league of swords,
dread nor danger, not Doom itself
shall defend him from Fëanor’s, and Fëanor’s kin,
Whoso hideth or hoardeth, or in hand taketh,
finding keepeth or afar casteth
a Silmaril. This swear we all:
death we will deal him ere Day’s ending,
woe unto world’s end! Our word hear thou,
Eru Allfather! To the everlasting
Darkness doom us if our deed faileth.
On the holy mountain hear in witness
and our vow remember, Manwë and Varda!
Tradução literal:
Seja ele amigo ou inimigo, seja ele sujo ou limpo,
cria de Morgoth ou brilhante Vala,
Elda ou Maia ou Sucessor,
Homem ainda não nascido sobre a Terra-média,
nem lei, nem amor, nem liga de espadas,
terror nem perigo, nem o próprio Destino
há de defendê-lo de Fëanor, e da raça de Fëanor,
se esconder ou entesourar, ou na mão tomar,
se achar guardar ou se longe jogar
Uma Silmaril. Assim juramos nós todos:
Morte havemos de trazer a ele antes do fim do Dia,
Opróbrio até o fim do mundo! Nossa palavra ouve tu,
Eru Pai-de-Todos! À eterna
Escuridão condena-nos se nosso feito falhar.
Na montanha sagrada ouvi em testemunho
E nosso voto lembrai, Manwë e Varda!
Tradução em verso aliterativo:
Amigo ou imigo, com mácula ou limpo,
cria de Morgoth ou claro Vala,
Elda ou Maia ou a Outra Raça,
Mortal que há de vir na Terra-média,
nem lei, nem amor, nem liga de espadas,
medo ou muro, nem mesmo o Destino
será defesa contra Fëanor, e os filhos de Fëanor,
para o que nas mãos tomar, ou em seu meio ocultar,
consigo guardar ou lançar longe
uma Silmaril. Assim dizemos nós:
Morte lhe traremos quando termine o Dia,
mal até o fim do mundo! O juramento ouvi,
Eru Pai-de-Todos! À treva eternal
condenai a nós se não o cumprirmos.
No sacro monte sede testemunhas
e a promessa lembrai, Manwë e Varda!
No verso 1, para manter a aliteração tripla e a brevidade da frase, usei “imigo”, forma arcaica de “inimigo” que ainda era comum na poesia portuguesa do século XVI (Camões a utiliza, por exemplo).
Pelo mesmo motivo, no verso 3, Aftercomer, “O que vem depois” ou “Sucessor”, virou “a Outra Raça”, que apesar do deslocamento de sentido tem semelhança de tom e ambientação com o original.
Mudei o pronome usado para se dirigir a Eru de “tu” para “vós” pois, além de ele facilitar a aliteração necessária, também é o usual para se dirigir a Deus em português.
Dificuldades à parte, trata-se de um dos poemas mais fortes, e com maior peso dramático, entre todos os escritos por Tolkien.
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