A Valinor/Lothlórien tem a honra de dar continuidade à publicação de O
Livro Negro de Arda, publicando o sétimo capítulo da mesma, chamado A PRIMAVERA DE ARDA. Leia mais sobre esta obra aqui na Valinor.e confira os demais capítulos já publicados, no índice da obra
A PRIMAVERA DE ARDA. ERA DAS LÂMPADAS
Melkor
ainda não recobrou as forças depois da luta com o Único e com os Valar.
Ele agora permanecia além dos limites do mundo, e por um tempo os Valar
obtiveram o poder sobre Arda.
E era noite, mas eles não viram nem a Lua nem as estrelas.
E era dia, mas eles não viram o Sol.
Parecia-lhes que o escuro os rodeia; pois pela vontade do Único seus olhos foram desviados até chegar a hora.
Foi
então que Aulë, o Grande Ferreiro, criou aquilo que Valar chamaram de
Colunas da Luz. Cálices de ouros foram colocados sobre elas, e Varda os
encheu de não-Escuro, e Manwë os abençoou. E os Valar colocaram estas
Lâmpadas: Illuin – no norte e Ormal – no sul. Criadas do Vazio e do
não-Escuro, elas fecharam na casca do Vazio uma parte de Ea – Arda.
Naquele
tempo, germinaram todas aquelas sementes que Valie Yavanna plantou na
Terra-Média, e um sem número de plantas se ergueu, grandes e pequenas:
musgos e liquens, e ervas, e samambaias imensas, e arvores – como
montanhas vivas, cujos topos alcançavam as nuvens, cujas bases estavam
envoltas em penumbra verde; e flores coloridas e suculentas, com
pétalas carnudas saturadas de seiva doce e grossa.
E vieram os animais, e eles passeavam pelos vales cheios de ervas, e povoaram os rios e os lagos, e a penumbra das florestas.
E
não havia em outro lugar uma quantidade tão grande de flores e um
florescer tão impetuoso como ali onde se encontrava e se misturava a
luz das Grandes Lâmpadas. E lá, na ilha de Almaren, a que está no
Grande Lago, foi a primeira morada dos Valar – naqueles tempos em que o
mundo era jovem, e o verde jovem ainda era uma alegria para os olhos
dos criadores. E por muito tempo, eles estiveram bastante contentes.
Era
alegria para os Valar ver os frutos dos trabalhos deles; e eles
chamaram este tempo de Primavera de Arda; e para que nada perturbasse o
sossego do mundo, sem poderes para controlar o fogo de Arda, eles
tentaram o domar, e o encarceraram sob a terra.
Mas Valar
abriram o caminho a Arda para as criaturas do Vazio; e aquelas se
instalaram nas matas intransponíveis e nas cavernas profundas. De
tempos em tempos, elas abandonavam os seus refúgios, e os animais
apavorados fugiam delas, e as plantas murchavam nos lugares por onde
elas passavam – como uma neblina cinzenta se arrastando. Assim o Vazio
entrou no mundo.
…Ele não conseguia respirar; cada
inspiração lhe causava dor – pequenas e afiadas agulhas quentes
espetavam os pulmões por dentro. O suor formava gotinhas no rosto dele.
Parecia-lhe que ele está respirando uma neblina ardente, abafada, úmida
e adocicada…
O que é isso?
Não havia necessidade de perguntar. Ele sabia: Arda. A vida de Arda era a vida dele, a dor de Arda – a dor dele.
Ele
novamente entrou em Arda. Isso não era fácil: como se uma flexível,
elástica muralha invisível o impedisse de passar; como se uma mão
enorme o empurrasse, repelindo-o, pesada e insistente. Ele venceu a
resistência com dificuldade.
E o mundo que o recebeu era assustador, pois o mundo morria; mas mesmo na agonia cruel, ele era belo.
O
eterno dia imutável acordou para a vida as sementes e os esporos de
milhares e milhares de plantas. Enormes árvores estendiam-se na direção
da cúpula em brasas do céu, e ervas nas colinas tinham a altura de um
homem. Mas nas florestas, as heras e as trepadeiras arrastavam-se, com
lentidão e persistência, para o alto, cravando-se na casca áspera e com
saliências, e nenhum raio de luz penetrava através da folhagem pesada.
E sob as árvores gigantescas, ervas e brotos asfixiavam uns aos outros,
nasciam e morriam, mal tendo tempo de florescer. No ar quente e
abafado, as ervas mortas, as flores murchas, as folhas caídas logo
começavam a apodrecer, e o cheiro purulento misturava-se ao aroma das
flores que desabrochavam. O pólen – neblina dourada – estava por toda
parte; tudo estava coberto por uma camada macia e quente dele, e o
gosto doce e enjoativo de mel não desaparecia da boca, e os lábios
estavam sempre pegajosos e doces, e o aroma expresso e pesado das
flores atordoava. O ar quente e úmido preenchia os pulmões. Plantas
esmagavam e devoravam umas às outras, e agarravam-se à vida na agonia
da morte; e trepadeiras de rapina sugavam a vida das arvores, e arvores
estendiam-se insistentemente para o alto, tentando ultrapassar as
outras…
Mundo simétrico, onde reina o eterno não-Escuro.
Mundo simétrico, onde não há montanhas nem depressões.
Aqui
os rios não têm para onde correr, e as lagoas se transformam em
pântanos, cobertos de lodo e lentilhas-d’água, e o florescer destas é
exuberante, e estranhas criaturas escorregadias se remexem ali, e uma
pesada neblina verde-dourada desliza a partir dos pântanos, colada ao
chão: cheiro asfixiante da podridão e aroma expresso, sentido quase
fisicamente, das ervas do pântano…
As plantas se entrelaçam,
se movem, se arrastam, espremendo-se mutuamente num abraço mortal; e na
penumbra florestas fechadas musgos escuros corroem os troncos das
árvores como lepra; e manchas de muco amarelo-venenoso nas raízes delas
são semelhantes a úlceras douradas, e as arvores apodrecem vivas,
tornando-se alimento para outras, e os animais enlouquecem…
Assim foi a Primavera de Arda.
Assim Melkor viu Arda.
Ele apertou as têmporas com as mãos.
O
mundo gritava: o primeiro grito do recém-nascido transformava-se num
berro furioso – e no chiado de agonia. Arda gemia surdamente de dor,
como uma mulher que não consegue dar à luz; o fogo, a vida dela, a
queimava por dentro.
O grito pulsava no cérebro dele no ritmo
dos batimentos do sangue nas têmporas, sem silenciar, sem silenciar,
sem silenciar nem por um minuto.
A dor esmagava o coração dele como uma mão indiferente.
O não-Escuro é mais inimigo do Escuro do que a Luz.
O não-Escuro reinava no mundo.
Por um instante, pareceu ao Senhor do Escuro – tudo está acabado.
Pareceu-lhe – é a destruição.
Para Arda.
Para ele.
E então ele ergueu o braço.
E a terra tremeu sob os pés dos Valar.
E as Lâmpadas ruíram: o Escuro devorou o não-Escuro.
Nas rachaduras da terra surgiu o fogo – como o sangue ardente nas feridas abertas.
Lava
corria pelas encostas dos vulcões, queimando as úlceras deixadas pelo
não-Escuro no corpo de Arda e colunas de fogo com barulho ensurdecedor
erguiam-se até o céu.
Novas terras erguiam-se das profundezas do
mar, nascidas da água e do fogo, e vapor branco fluía sobre as suas
superfícies ainda quentes.
E era noite.
… E sobre a terra noturna em chamas, ele voava, sustentado pelas asas de vento negro, e ria, livre e feliz.
Com
um estrondo, as montanhas ruíram – e cresciam-se novamente, mais altas
que antes. E alguém sussurrou a Melkor: deixe a sua marca…
Ele
desceu e pisou no chão. Ele apertou a palma contra a lava ainda quente,
e o fogo de Ata não queimou a mão dele; ele e o mundo eram uma coisa só.
E
ele navegou pelo rio de fogo no barco negro de lava fria, e Arda ria
com riso de fogo, libertando-se das correntes, e Melkor também ria com
um riso feliz e jovem, a cabeça jogada para trás, alegrando-se com a
própria liberdade e o finalmente descoberto poder.
… E era
dia. E nas colunas de vapor, nas nuvens de fuligem negra que se
precipitava lentamente sobre a terra, nasceu o sol, e a luz dele era
vermelha, rubra, sangrenta.
E houve um eclipse do Sol.
O
Sol transformou-se num semicírculo de fogo, de brilho insuportável, e
depois virou um disco negro – escuridão ardente; e uma coroa de raios o
rodeava, e nos batimentos deles, na dança dos lentos flocos de fuligem
ouvia-se o eco da rebelde e ameaçadora música; nela enlaçava-se o
triste sussurro de gelo e o leve tinir das estrelas, como uma sôfrega,
dolorosamente carinhosa melodia de flauta; e o vento veloz, gélido e
escaldante, soava como as vozes baixas dos instrumentos de cordas; e o
coro abafado dos picos das montanhas – o canto do órgão negro…
…Agora
ele estava no pico da montanha. Ele estendeu os braços para o disco
negro em brasas, e uma espada escura com cabo negro de obsidiana deitou
nas suas palmas, e entrelaçamento de sinais de fogo escorria pela
lâmina num ornamento de serpentes: a Espada do Sol em Eclipse.
Ele
caminhava pela terra, ouvindo a respiração ofegante de Arda. Ele
falava, e suas palavras eram música. E ele pronunciava as Palavras do
Poder, que curam e expulsam a dor – então o coração de fogo de Arda
passou a bater com ritmo e confiança, e a respiração dela tornou-se
calma. E o mundo ficou em silêncio, e o Alado ouviu o baixo murmúrio
das plantas que não nasceram, ocultas pelas camadas de fuligem. E ele
pronunciava as Palavras do Poder, que transformam a morte no sono, para
acordar, no mundo novo, na hora certa, as ervas e as árvores. As
palavras eram Música, que dá vida, que cria o vivo do morto.
Mas
enquanto ele falava, a chama do vulcão ergueu-se até o céu novamente, e
abriu-se, e dela saíram novos seres desconhecidos, assustadoramente
belos. O escuro ardente era a carne deles, e os olhos deles – como
lagoas de fogo. Alado olhou para eles, surpreso; e ele compreendeu que,
sem o desejar, ele mesmo os acordou para a vida, pois elas nasceram do
fogo da terra graças às palavras dele. E ele viu que elas vivem com
vida própria, e vieram ao mundo para permanecer nele. Então Alado
pensou: “Não pela minha vontade, mas graças a mim eles surgiram, e eu
devo responder por eles e não posso deixá-los”. E as novas criaturas
transformaram-se em na corte e no exército dele. Ele deu-lhes o nome de
Achere, Chamas do Escuro. Eles eram de natureza diferente dos Maiar; o
fogo era a essência deles, e ninguém poderia nem subjugar, nem domá-los
completamente. Crianças de Ilúvatar, os Primeiros Nascidos,
chamaram-nos de Valaraukar, e de Balrogs – Demônios da Força. A sua
vida poderia prolongar-se eternamente, mas se alguém conseguisse
matá-los, eles se transformavam em chamas e retornavam ao fogo da
terra, pois não possuíam um espírito imortal, mas eram a encarnação do
elemento fogo, e fogo era sua essência.
E o nome do primeiro dos
Achere era Neere, Fogo; os Mortais e os Elfos o conheceram sob um outro
nome. Ele tornou-se o comandante do exército dos Demônios das Chamas
Escuras quando chegou o tempo de guerra, e os Elfos o nomearam Gothmog.
Os imortais, nas terras de Aman, não souberam como chegaram ao mundo
esses espíritos do fogo, e os consideraram Maiar. Por isso, assim diz
“Valaquenta”:
“Pois, dos Maiar, muitos foram atraídos por seu
esplendor em seus dias de majestade, permanecendo fieis a ele em seu
mergulho nas trevas. E outros ele corrompeu mais tarde, atraindo-os
para si com mentiras e presentes traiçoeiros. Horrendos entre esses
espíritos eram os valaraukar, os flagelos de fogo que na Terra-média
eram chamados de balrogs, demônios do terror”.
Eles eram poderosos e belos. Mas eles não eram humanos.
…Quando
a terra acalmou-se, e a fuligem a cobriu como uma capa negra, e a
pesada penumbra dos nevoeiros dissipou-se, Melkor viu um novo mundo.
A
simetria das águas e das terras foi destruída, e não havia mais
semelhanças com uma máscara congelada na face de Arda. Cadeias de
montanhas ergueram-se no lugar dos vales, o mar alagou as colinas, e
enseadas agudas cortaram as terras emersas. Furiosos rios indomados
espumavam, uivando nas corredeiras, e levavam as águas até o oceano; e
sobre as cachoeiras, nas rendas de gotículas de água, da água e do Sol
nasciam os arco-íris.
Assim o mundo conheceu a morte; e junto com a Arda, aquele que a amou esteve próximo da morte.
Assim o mundo renasceu; e junto com a Arda, aquele que a amou ganhou poderes.
Melkor respirou fundo, com todo o peito, o ar do mundo renovado. E ele sorria, mas a mão dele estava sobre o cabo da espada.
A luta ainda não acabou.
E, para combater as criaturas do Vazio, novos seres foram criados por Melkor. Dragões era o nome deles entre os Homens.
Do
fogo e do gelo, pelo poder da Música da Criação, pelo poder dos
feitiços do Escuro e da Luz, eles foram criados. Arda deu poder e força
aos corpos deles, Noite os dotou de inteligência e de fala. Grande era
a sabedoria deles e, desde aquele tempo, os homens diziam que aquele
que abater um dragão e experimentar o coração dele, tornar-se-á o sábio
dos sábios, e os conhecimentos antigos serão mostrados a ele, e ele
compreenderá a fala de todos os outros seres, mesmo que seja a dos
animais ou dos pássaros, e as palavras dos deuses serão compreensíveis
para ele.
E a Lua emprestou os feitiços dela às criações do Senhor do Escuro, por isso o olhar deles encantava.
Os
primeiros a chegar ao Mundo foram os Dragões da Terra. Pesado era o
passo deles, e a respiração deles era fogo, e os olhos luziam com ouro
furioso, e a ira do Mestre que os criou ardia nos corações deles. O Sol
nascente os vestiu de cobre vermelho, tal que quando eles andavam
parecia que chamas saem de baixo das placas das escamas. E na criação
deles, os Demônios do Fogo, Balrogs, auxiliaram o Senhor. Glaurung, que
é também chamado de Pai dos Dragões, era da casa dos Dragões da Terra.
E
era meio dia, e o Mestre criou os Dragões do Fogo. O sol vestiu os
corpos deles com a armadura dourada de escamas flexíveis, e douradas
eram as asas imensas deles, e olhos eram da cor de safira pálida, cor
do céu do deserto. O vento gerado pelas batidas das suas asas é
ardente, e até mesmo o metal derrete com o calor da respiração deles.
Flexíveis, graciosos, velozes como flechas aladas, eles são belos – e a
beleza deles é mortal. Na criação deles, o Mestre foi auxiliado pelo
seu discípulo Gorthaur, cujo nome significa – “Aquele que possui o
Poder das Chamas”. Da casa dos Dragões do Fogo, se conhece somente o
nome de um dos últimos – Smaug, o Dragão Dourado.
No fim da
tarde da última lua do outono, quando o sussurro gélido das estrelas só
começa a enlaçar-se na lenta melodia da neblina, quando o frágil vidro
do primeiro gelo reveste a água e os flocos de neve faiscantes cobrem
os galhos finos, vieram ao mundo os Dragões do Ar. A cintilação
misteriosa dos fogos fátuos vivia nos olhos deles; estavam cobertos de
aço e prata negra, e as asas deles eram de ardósia, e garras mais
resistentes do que diamante. Silencioso e veloz, mais rápido que o
vento, é o vôo deles; e eles receberam a fria, impiedosa sabedoria dos
guerreiros. Poucos receberam a dádiva de ver a lenta dança encantadora
deles no céu noturno, quando as estrelas refletiam nos inúmeros
espelhos das escamas se, e a luz da lua os lavava. E assim dizem os
homens: aquele que viu esta dança torna-se o servo da Noite, e a luz do
dia não lhe traz mais alegria. E dizem ainda que na hora da dança do
céu dos Dragões do Ar, estranhas ervas e flores germinam das sementes
que dormiram no solo por dezenas de anos, e estendem-se para a Lua
pálida. Aquele que as recolher na Noite da Dança dos Dragões, conhecerá
a grande sabedoria e ganhará imensos poderes; ele tornar-se-á algo
maior do que um homem, mas nunca mais retornará à própria casa. Mas se
a raiva e a sede de poder estiverem no coração dele, ele morrerá, e o
espírito dele se transformará num fogo fátuo; e somente na Noite dos
Dragões ele irá adquirir uma forma espectral, semelhante à humana.
Estes eram os Dragões do Ar, e Melkor criou-os sozinho. Da casa deles,
originou-se Ancalagon, o Negro, o maior dos dragões.
Os Dragões
da Águas eram filhos da Noite. Havia uma lenta beleza nos movimentos
deles, e eram vestidos de bronze negro, e a luz da Lua, de um pálido
dourado, vivia nos olhos deles. A sabedoria antiga do Escuro os atraia
mais do que os combates; escura e bela era a música que os criou. Eles
valorizavam acima de tudo o silêncio, companheiro das reflexões; e
descobrir os segredos ocultos do mundo era o prazer supremo para eles.
Por isso, eles elegeram como morada as profundezas das lagoas escuras
que refletem as estrelas, e os abismos sem fundo dos mares orientais,
desconhecidos e inalcançáveis a Ulmo. Poucos os viram, por isso nada se
diz sobre eles nas lendas dos Elfos; mas as lendas dos homens do
Oriente freqüentemente falam sobre Dragões sábios, Senhores das Águas…